Entrámos em período de campanha eleitoral e, de algum modo, no da discussão dos programas das forças políticas concorrentes.
No que se refere à Justiça, de um lado, temos as propostas dos partidos que alinham no arco constitucional.
Do outro, as dos que não se reveem, nem cabem, na lei fundamental do país: destas não cuidaremos.
Em matéria de Justiça, a divisão clássica entre direita e esquerda – sendo real e, talvez, hoje, mais evidente do que nunca em muitos outros aspetos – não é, todavia, a que melhor caracteriza e diferencia as propostas dos partidos democráticos concorrentes às eleições.
Temos, pois, propostas diferentes, mas, por norma, respeitadoras da Constituição.
Importa, por isso, analisá-las, tendo em vista, sobretudo, saber se permitem, ou não, uma melhor e mais rápida resposta da Justiça às necessidades dos cidadãos.
Delas se devem, por conseguinte, e por obviamente não responderem a tais necessidades, excetuar as propostas concernentes à mais do que duvidosa participação do Estado em tribunais arbitrais e à, ainda mais nublosa, pretensão de legalizar o lobbying.
Entre outras razões de fundo, por, simplesmente, tais propostas não serem e adequadas à defesa dos direitos dos cidadãos e, em alguns casos, servirem mesmo – e, por experiência profissional, sabemos do que falamos – para os escamotear.
O que se exige do lado da cidadania, isso sim, é que as forças democráticas, que apresentam propostas para aperfeiçoar a Justiça, se esforcem por as enquadrar, coerentemente, no sistema constitucional e jurídico-judiciário existente.
Só assim se evita que as suas propostas – como não raro acontece – resolvam num lado o que confundem no outro.
Só assim se evitará, também, que medidas desgarradas, mesmo que aparentemente adequadas à solução dos problemas específicos que as motivam, transtornem, ainda mais, a coerência sistémica que deve existir entre as leis substantivas, processuais e orgânico-judiciárias.
Mesmo que não tenha sido evidente para as partes envolvidas e menos ainda para os cidadãos, em alguns casos atuais – que tantas e tão graves consequências políticas causaram – foi a não revisão atempada de certos preceitos do nosso Código de Processo Penal que contribuiu decisivamente para os estrondosos efeitos políticos gerados à margem da específica função e atuação da Justiça.
Qualquer cidadão que, motivado pelas, daí advindas, discussões televisivas, tenha consultado o Código de Processo Penal (CPP), de imediato deparará, todavia, com uma incongruência patente.
Referimo-nos a um sistema que, incoerentemente, acautela mais a relevância intrusiva de determinadas medidas de investigação ou de coação de natureza material, do que assegura as que respeitam às garantias relacionadas com a liberdade pessoal dos cidadãos.
Referimo-nos à indispensável autorização antecipada de um juiz para que se realizem determinadas buscas e apreensões em lugares sensíveis e, bem assim, para que se executem escutas telefónicas, enquanto o seu consentimento prévio não é – mesmo em casos normais – exigível para a emissão de mandados de detenção contra um suspeito.
Tal incongruência é, hoje-em-dia, tão mais absurda quanto o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) já veio, em acórdãos sucessivos, dizer que a emissão de tais mandados – os europeus (MDE) e, por consequência, os nacionais (MDN) – deve, em circunstâncias não excecionais, ser da exclusiva competência de autoridades judiciais.
Significando com isso, autoridades cuja decisão – ao contrário do que acontece com o MP – admite imediatos mecanismos de controle, reapreciação superior (recurso) e remédio processual.
Por outras palavras, o TJUE exige, na prática, que seja um juiz a emitir mandados de detenção.
O mesmo TJUE considera, aliás, que o MDE não é mais do que a extensão necessária do MDN.
Não pode, por isso, o legislador nacional ignorar, no plano interno, os limites inultrapassáveis que o Direito Europeu desenhou para a emissão de um mandado de detenção.
O nosso país é, aliás, um dos poucos que, a nível europeu e em consequência, não reformulou a sua legislação sobre esta matéria.
Tal atraso pode, contudo, vir a causar-nos surpresas e trazer-nos amargos de boca em futuros casos de criminalidade grave, violenta ou, mesmo de terrorismo.
O que é mais extraordinário é o facto de os diversos órgãos do poder judicial e do poder político não poderem dizer que não foram tempestivamente alertados para os riscos de tal situação: foram-no todos, e por várias vezes.
E, na realidade, se tivessem já sido tomadas medidas neste sentido -atribuindo-se, em primeira mão ao juiz, como defende o TJUE, a competência para emitir os mandados de detenção – não teriam acontecido muitos dos incidentes recentemente noticiados e que tanto e justificado escândalo público motivaram.
Um outro padrão deste nosso modo, algo leviano, de atuar perante as dificuldades detetadas na aplicação das leis é o que diz respeito aos «megaprocessos«.
Mesmo que, ainda sem um abrangente balanço crítico dos resultados dos casos mais relevantes em que tal estratégia processual foi usada, a verdade é que são patentes, sem mais, as consequências negativas que algum do seu uso comportou para a imagem de eficiência, rigor e confiança que a Justiça deve transmitir.
E, no entanto, pesem, a tal respeito, as constantes críticas ao MP, a resolução de tal questão está – sempre esteve – nas mãos do poder legislativo.
É ele – só ele – que pode alterar, ponderada e articuladamente, o dispositivo legal que fundamenta tal tipo de opções processuais.
Todavia, nenhuma ação foi tomada, nem a nível governamental, nem a nível do parlamento, para, racionalmente, condicionar o uso, por vezes menos justificado, de tal opção processual por parte da acusação pública.
0 MP dispõe, no entanto, de um órgão consultivo prestigiado, capaz de analisar a questão, de forma neutra e objetiva, se isso lhe for pedido.
O parecer de tal órgão poderia servir, precisamente, para que a PGR sugerisse ao poder político – como se prevê no Estatuto – uma medida clarificadora e corretiva de tal dispositivo legal.
Mais, tal parecer poderia, igualmente, dotar a PGR de uma argumentação avalizada que, na falta de uma solução legal, lhe permitisse emitir uma diretiva interna.
Uma diretiva que clarificasse internamente as margens de interpretação e aplicação de tal normativo e definisse as diferentes opções que, em cada caso, o procurador titular do processo poderá seguir.
E, todavia, mesmo falando-se ainda muito sobre tal questão nos palcos políticos e mediáticos, que se saiba, até hoje, nenhum destes órgãos constitucionais tomou alguma iniciativa deste tipo.
Regressemos, porém, à análise das propostas dos partidos democráticos respeitantes às áreas do Direito penal e processual penal.
Apesar das generalidades sempre vertidas neste tipo de programas e propostas políticas, nada, na verdade, parece obstar, antes pelo contrário, a que, em conjunto e consonância de vontades, os futuros órgãos do poder legislativo discutam e aprovem medidas que possam, rapidamente, melhorar o desempenho da Justiça.
Fundamental, neste caso, é que, sobre elas, possa incidir – ainda antes da sua aprovação política definitiva – um olhar científico, clarividente, crítico e unificador, que, se necessário, as contextualize e sincronize mais adequadamente com os princípios e sentido geral da Constituição, das leis nacionais e do Direito europeu.
Muitas das leituras mais rebuscadas da lei – umas do MP e outras dos juízes – resultam, na verdade, das contradições e hiatos constantes de muitos diplomas legais, sucessiva e cirurgicamente, reformados e, deste modo, desconjuntados.
Chamar, pomposamente, ao necessário conjunto integrado de medidas corretoras de dispositivos legais «Reforma da Justiça» é, todavia, e só – além de uma questão de marketing político – uma opção de puro gosto literário: e gostos não se discutem.
O que realmente importa é explicar ao país a verdadeira razão de ser e as vantagens reais de tais alterações e, portanto, a sua adequação a resolver, em cada área, os problemas da Justiça – e apenas os que ela padece enquanto Justiça – restituindo-lhe, pois, a credibilidade e a autoridade que, numa Democracia e num Estado de Direito, ela deve ter.