A Sociedade da Neve. Olhar o céu à espera de um sinal

A Sociedade da Neve. Olhar o céu à espera de um sinal


Muitas vezes tentamos imaginar-nos em situações extremas: ‘O que faria? Como reagiria?’. O filme A Sociedade da Neve estreou no final do ano passado na Netflix dando a conhecer uma história arrepiante de sobrevivência e amizade. Do realizador Juan Antonio Bayona, venceu a edição desde ano dos prémios do cinema espanhol, Goya, ganhando 12 categorias,…


O que acontece quando o mundo te abandona? Quando não tens roupa e estás a congelar? Quando não tens comida e estás a morrer? A resposta está na montanha. Temos de regressar ao passado, sabendo que o passado é o que mais muda». É com estas interrogações e reflexão que A Sociedade da Neve nos abre a porta para o cenário hostil e assustador onde viveremos essas 2 horas e 40 minutos, e onde um grupo de pessoas viveu 72 dias. É um dos mais recentes êxito da Netflix e já está na corrida aos Óscares. A longa-metragem realizada pelo espanhol Juan Antonio Bayona, aborda a tremenda luta pela sobrevivência da equipa uruguaia de rugby cujo avião se despenhou na Cordilheira dos Andes, em 1972. Um lugar onde viver é impossível, onde nada resta senão olhar o céu à espera de um sinal. Um lugar onde a natureza domina na sua plenitude, mas onde aconteceu um «milagre».

No sábado passado, na cidade de Valladolid, a longa-metragem tornou-se uma das mais galardoadas de sempre pela academia espanhola do cinema, depois de ter vencido 12 prémios na 38.ª edição dos Goya. O seu realizador recebeu o Goya de melhor realização e o filme foi ainda distinguido nas categorias de banda sonora original, direção de produção, direção de arte, som, fotografia, montagem, melhor ator revelação, maquilhagem e cabelo, efeitos especiais e guarda-roupa.

 

A história

O voo despenhou-se com 40 passageiros e cinco tripulantes a bordo. Muitos morreram nesse momento, outros foram definhando com o passar dos dias. No entanto, 72 dias depois, com temperaturas abaixo de zero, feridos, sem roupas adequadas, sem mantimentos e sem medicamentos, dava-se o resgate de 16 sobreviventes, que passaram por coisas que poucos seres humanos imaginam. Até mesmo terem de comer os corpos dos colegas já mortos. Aliás, há quem acredite que essa decisão também os salvou. A decisão foi tomada coletivamente – primeiro, muitos se recusaram, depois, sem outra opção, foram cedendo. «Quando eu morrer, podem utilizar o meu corpo», começaram a dizer uns aos outros a dada altura. O filme é uma adaptação do livro de 2008 de Pablo Vierci com o mesmo nome. Recorde-se que o avião – que partiu de Montevidéu, Uruguai, para Santiago, no Chile – transportava não só a equipa amadora de rugby uruguaia Old Christians, do colégio Stella Maris, como amigos e familiares, para um torneio no Chile.

 

O mais real possível

E o filme não poderia estar mais perto da realidade já que foi tudo pensado ao pormenor. Num documentário, também lançado pela Netflix – Quem éramos nós nas montanhas? –, é possível perceber todo o processo de filmagens, desde os castings aos atores, até ao momento em que o trabalho ficou feito. Um filme que nos transporta, nos agarra, nos desconcerta, nos tira e dá.

A escolha dos atores, por exemplo, foi muito pensada. Queriam que fosse o «mais orgânico possível». Não queriam atores famosos, queriam pessoas que se parecessem com os sobreviventes, tanto fisicamente como em personalidade. Aliás, muitos dos atores só tinham experiência em teatro, ou seja, nunca tinham trabalhado com câmaras. Neste documentário, é possível assistir ao momento em que a equipa de casting lhes confirma que ficaram com o papel. Uns choram, outros saltam da cadeira e atiram-se para o chão, outros ficam chocados, outros sorriem como se estivessem diante da oportunidade de uma vida. E foi. Os atores tiveram um treino físico muito exigente, já que o filme retrata com verdade a forma como os corpos se foram transformando com o passar dos dias.

A equipa foi toda ao local. Na primeira vez não havia muita neve e tiveram de aguardar um ano para lá voltar. Quando aconteceu, diz o realizador, as condições meteorológicas estavam muito parecidas àquela época: muita neve e várias rajadas de vento. A equipa também foi preparada para isso.

A parte mais difícil da fuselagem – camada de proteção exterior da estrutura de uma aeronave, geralmente fabricada em metal – foi transportá-la até à montanha. Esta foi construída em Madrid e levou-se numa peça única para a Serra Nevada. Depois, foi dividida em três e levada pelas encostas até um lugar daquela altitude (na história real, os rapazes viveram a 4 mil metros de altitude). «Todas as cenas foram fisicamente e tecnicamente muito exigentes», realça a equipa, que sublinha que todos os personagens da história, ao longo dos dias, foram perdendo peso gradualmente. Apesar de ser duro, acreditavam que seria um compromisso com as personagens e a história, que isso acrescentaria ao desempenho. Por isso, filmaram cronologicamente para perderem peso, sempre acompanhados por especialistas.

 

Subir a montanha

Na segunda semana de filmagens, a equipa subiu a montanha. Foi a primeira vez que alguns dos atores viram neve. De acordo com os mesmos, o mais difícil foi trabalhar com as condições meteorológicas, que não se podem controlar. Filmaram a mais de 3 mil metros.

Na cena da avalanche – quando os sobreviventes ficaram dois dias soterrados nos destroços do avião –, segundo o realizador, os atores passaram muito mal. Podemos até arriscar a dizer que isso se nota no filme. Foram usados canhões de neve real e de ar. Mais uma vez, as malas eram réplicas de borracha, para segurança dos atores. «Tinham uma série de camadas ocas. Eles só tinham de esperar e sair do chão, mas mesmo assim, tiveram de passar também camadas de neve real», explica.  «É desesperante. Não sei mesmo como sobreviveram», diz Enzo Vogrincic, o protagonista do filme que dá vida a Numa Turcatti. que também narra a história. «A neve queima, sufoca-nos e desespera», acrescenta.

Na história real há diferentes tipos de expedição, onde alguns deles vão em busca de mantimentos. Por fim, tentam mesmo escapar da montanha. A equipa atingiu o pico da Serra Nevada a 3300 metros. No documentário vemos essas imagens. Carregados de equipamentos, todos viveram um bocadinho do terror de 1972. Claro que a caracterização também foi fulcral para a proximidade com a realidade. As queimaduras, a boca seca, os olhos vazios, a carne…

Segundo a produtora Sandra Hermida, o momento do salvamento foi muito emocionante. «A equipa sentiu de perto aquilo que os próprios sobreviventes sentiram», acredita. Ainda havia muito para filmar, mas a parte mais difícil estava feita. Depois disso, seguiram para o Uruguai para filmar o fim do filme.

 

Os sobreviventes

«O filme dá voz aos que ficaram na montanha. Deu resposta às perguntas que ficaram no ar. É uma experiência emocional que é mais do que um filme», afirma no fim do documentário um dos sobreviventes.  «Através deste filme acedemos a camadas ou planos de consciência que desconhecíamos», garante um outro. «Acho que o J.A se comprometeu com a história. Talvez para fazer o melhor filme da sua vida. Quando alguém se compromete com uma história e se preocupa com os detalhes, vemos que há uma ligação inviolável. Para mim o J.A é quase como um dos sobreviventes», admite um outro. «O filme dá-nos espaço para revisitarmos quem éramos».

Estão no elenco principal Enzo Vogrincic, como acima referido, Agustín Pardella, que dá vida a Nando Parrado e Esteban Bigliardi que representa Javier Methol. Além deste trio principal, fazem parte do filme atores como Tomas Wolf no papel de Gustavo Zerbino, Diego Vegezzi que interpreta Marcelo Pérez, Esteban Kukuriczka que dá vida à Adolfo “Fito” Strauch, Francisco Romero que faz de Daniel Fernández Strauch, Rafael Federman como Eduardo Strauch, Felipe González Otaño, que representa Carlitos Páez Agustín, e mais.

Mas afinal quem foram os sobreviventes e qual o papel que cada um teve nesses 72 dias?

José Pedro Algorta não pertencia à equipa rugby que estava no avião. Estudava Economia e, antes do acidente, não tinha muito contacto com os outros passageiros. Era amigo de Arturo Nogueira e Felipe Maquiarrán, que morreram. Quando o avião se despenhou, tinha 21 anos.

Roberto Canessa é talvez o mais conhecido de todos os sobreviventes. Era estudante de Medicina, jogador de rugby do Old Christians e tinha apenas 19 anos. Segundo a CNN, após 72 dias de sobrevivência e de ter caminhado com Fernando Parrado durante 10 dias rumo à salvação, fez carreira como médico.

Alfredo «Pancho» Delgado era estudante de Direito e tinha 25 anos. Embarcou no Fairchild da Força Aérea uruguaia junto com os seus amigos Numa Turcatti e Gaston Costemalle. Era um dos mais velhos do grupo e sobreviveu durante os 72 dias apesar de ter uma perna ferida. Quando os sobreviventes voltaram a Montevidéu e deram uma entrevista coletiva, foi ele quem falou e explicou que haviam sobrevivido por terem comido carne humana. Foi a primeira e última vez que falou sobre o assunto. Posteriormente, remeteu-se ao silêncio e não foi mais visto pela imprensa.

Daniel Strauch viajava com os seus três primos: Eduardo, Fito Strauch e Daniel Shaw (que morreu no acidente). Foi com Fito e Eduardo que formou o grupo de liderança e organização, após a morte do capitão da equipa de rugby, Marcelo Pérez del Castillo. Estes ficaram encarregues, entre outras tarefas, da desagradável tarefa de cortar e secar a carne humana, sem que ninguém soubesse a quem pertencia.

Roberto François era um dos jogadores da equipa e um dos mais jovens do grupo. Tinha apenas 20 anos. Escreve a CNN que, segundo os seus companheiros, poucos minutos após o acidente, este se sentou na neve, acendeu um cigarro e disse: «Estamos mortos».

Roy Harley nunca tinha andado de avião. Após o acidente, teve dificuldades em voar novamente. Era um dos mais jovens e em melhor condição física do grupo, mas no final estava muito magro: tinha ido de 86 kg que pesava antes do acidente para 38 kg, como o próprio afirmou numa entrevista dada ao programa Canal 5, de  uma rede de TV uruguaia. Como era estudante de Engenharia, ficou com a tarefa de arranjar um rádio que que foi ajudando os sobreviventes a se manterem atualizados com as novidades da busca. Além disso, era também ele que possuía a máquina, com a qual tirou fotografias aos colegas.

José “Coche” Inciarte era um dos mais velhos do grupo de sobreviventes. Não fazia parte da equipa de rugby e estudava Engenharia Agronómica. Após a avalanche, o seu pé ficou infetado e passou os últimos dias nas montanhas sem conseguir andar.

Álvaro Mangino não frequentava a escola Stella Maris, nem fazia parte da equipa de rugby. Durante o acidente partiu a perna esquerda (tíbia e fíbula), que ficou «pendurada». Nas primeiras horas, Roberto Canessa reposicionou os ossos da melhor maneira que pôde. Depois de passar 72 dias sem andar, pendurado numa espécie de rede improvisada pelos cintos de segurança do avião, Mangino foi o primeiro a saltar para um dos helicópteros de resgate.

Javier Methol era o mais velho de todos os sobreviventes. Tinha 36 anos e decidiu viajar para o Chile com a esposa Liliana, para comemorar o aniversário de casamento. Infelizmente, Liliana acabou por morrer soterrada pela avalanche.

Carlos Páez era o mais novo do grupo e da equipa de rugby. Tinha apenas 18 anos. O seu pai, o famoso pintor Carlos Páez Vilaró, procurou-o incansavelmente durante os 72 dias e foi ele quem leu a lista de sobreviventes aquando da descoberta do seu paradeiro, segundo o documentário. De acordo com a CNN, durante o período nas montanhas ficou com a tarefa de fazer o grupo rir com as suas piadas e rezar um terço todas as noites antes de dormir.

Fernando “Nando” Parrado tinha 22 anos. Durante os primeiros quatro dias esteve inconsciente. Os seus amigos pensaram mesmo que este estivesse morto. No entanto, este acabou por acordar, mas o mesmo não aconteceu com a sua mãe e dois amigos próximos. A sua irmã estava viva, mas muito ferida. Acabou por morrer nos seus braços poucos dias depois e parece que isso lhe deu mais força para procurar uma saída no meio da neve. Foi assim que se juntou a Roberto Canessa e Antonio Vizintín, com quem fez as expedições para salvar o grupo.

Ramón “Moncho” Sabella estava apenas a acompanhar os seus dois amigos, “Bobby” François e “Carlitos” Páez.

Eduardo Strauch foi jogador e cofundador da equipa Old Christians Club. Era estudante de Arquitetura e já havia viajado pela Europa. Nas montanhas, fez parte do grupo de liderança, juntamente com seus primos “Fito” Strauch e Daniel Fernández.

Adolfo “Fito” Strauch foi colega na faculdade de Daniel Fernández e “Coche” Inciarte. Foi ele quem inventou a máquina de derreter gelo e os óculos de sol, todos feitos com restos do avião.

Antonio “Tintim” Vizintin foi um dos líderes do grupo durante os 72 dias. Foi quem carregou o grupo e a carga mais pesada nas viagens que fez com Parrado e Canessa em busca de mantimentos. Segundo a CNN, a mochila que carregou pesava cerca de 40 quilos. Quando chegaram ao topo e perceberam que a caminhada seria mais longa do que o esperado, Vizintín acabou por voltar sozinho para o avião para receber a sua ração de comida.

Uma das cenas mais emocionantes do final do filme – no momento do resgate – teve Gustavo Zerbino como protagonista. Quando os helicópteros vieram resgatá-los – o resgate demorou 2 dias e não apenas um como vemos na longa-metragem –, Gustavo Zerbino começou a guardar “lembranças” da montanha e levou uma mala com objetos pertencentes aos que morreram, para levar aos familiares. Este também estudava medicina e foi um dos «médicos» durante os 72 dias que passaram num dos ambientes mais hostis do planeta.