A Federação Russa decidiu, neste mês de julho, não prolongar o acordo que permitia a exportação de cereais e fertilizantes através do Mar Negro. A decisão suscitou o medo de uma nova escalada nos preços dos produtos alimentares ou até uma crise alimentar em países mais vulneráveis. Esforços têm sido reunidos para que a única conquista diplomática deste conflito não tenha um final indesejado.
“O celeiro do mundo”
A Ucrânia e a Rússia são os dois países que mais exportam cereais em todo o mundo, sendo responsáveis por cerca de 25% das vendas destes produtos. Porém, aquando do ínicio da ofensiva russa na Ucrânia foi posta em causa a capacidade de fornecimento aos mercados internacionais. Os bloqueios russos aos portos de Yuzhny, Chornomorsk e principalmente de Odessa (porto responsável por 98% das exportações de trigo ucranianas) fizeram com que as exportações da Ucrânia sofressem uma queda abismal, cerca de 75%, só nos primeiros meses. A dificuldade de escoamento conduz sempre a uma retenção, e este caso não fugiu à regra: ficaram 20 milhões de toneladas de cereais presas em território ucraniano. Como seria expectável, o preço dos produtos alimentares, principalmente o dos cereais, subiu substancialmente e começaram a chegar cada vez menos a países muito dependentes: Egipto, Líbano, Tunísia e Iémen são exemplos de países que já pagam o altíssimo preço dos seus conflitos internos, e viram neste episódio internacional mais um forte desestabilizador nacional. Desde o fim do acordo, o preço da tonelada de trigo subiu mais de 8% apenas num dia, já o milho aumentou 5,4%.
Esforços de mediação
Mediante um problema desta dimensão e de olhos postos na segurança alimentar, na redução de preços e no estímulo da economia ucraniana, os organismos internacionais ocidentais procuraram encontrar soluções à altura. A União Europeia criou corredores solidários que ajudariam a Ucrânia não só as exportar cereais como também a importar bens essenciais em tempos de guerra. Foram propostas quatro alternativas e envolviam países vizinhos como a Polónia, Roménia e Lituânia. A primeira proposta passaria pela escolta das embarcações ucranianas no Mar Negro, algo que o presidente turco, Tayyip Erdogan, se disponibilizou a fazer na eventualidade da Rússia sair do acordo. A opção da Polónia caiu por terra devido à incompatibilidade da bitola ferroviária e à lentidão do processo caso fosse feito através de camiões. Através da Roménia, passando em barcaças pelo Danúbio e levadas ao porto de Constança, verificou-se uma operação extremamente difícil, já que se tratava de uma quantidade avultada (20 milhões de toneladas) para ser transportada em pequenas barcaças. Por fim a Lituânia, que passaria também pela Bielorrússia (país alvo de sanções europeias) já que possui a mesma bitola, foi inviabilizada pelo presidente bielorrusso Aleksandr Lukashenko, que exigiu o alívio das sanções em troca da abertura da rota. Ainda que não tenha tido o impacto esperado por todos os problemas que se levantaram, foi um passo simbólico que permitiu reduzir os preços e abriu caminho a negociações futuras que resultariam na fundamental Iniciativa dos Cereais do Mar Negro. Este acordo, assinado em agosto de 2022, foi mediado pela ONU e pela Turquia e permitiu a volta à normalidade na vida comercial do Mar Negro. Consoante dados do Conselho Europeu, durante este acordo, que foi sendo periodicamente validado, foram exportadas 30 milhões de toneladas de milho e trigo, principalmente, e levou a Ucrânia a atingir índices de exportação semelhantes aos do pré-guerra. Para além de voltar a por em marcha a economia ucraniana, este acordo foi fundamental para garantir a segurança alimentar e a queda dos preços. Porém, fica a dúvida se o acordo foi cumprido na sua totalidade por todas as partes envolvidas, sendo os alegados incumprimentos o principal argumento da Rússia para o ter suspendido quase 1 ano depois.
Motivos da decisão russa
No dia 17 de julho, a Rússia decidiu sair temporariamente do acordo. Que fatores determinaram esta decisão?
O Kremlin, através do próprio Vladimir Putin e do seu porta-voz Dmitry Peskov, enumerou os motivos pelos quais garantem não ter condições para continuar na iniciativa, porém, não descartam uma possível readesão assim que as suas exigências sejam acedidas.
O principal motivo é a alegada dificuldade de escoamento dos produtos alimentares russos, principalmente os fertilizantes. Moscovo exige um alívio de sanções: o regresso do Banco Agrícola da Rússia ao SWIFT, sistema internacional de pagamentos, do qual a Rússia foi interdita em 2022, a agilização de acordos com seguradoras marítimas, fundamentais para estas exportações e ainda o descongelamento de ativos. O Kremlin responsabiliza a Ucrânia pela explosão do gasoduto de Tolyatti-Odessa, o maior do mundo a transportar amoníaco, um fertilizante exportado em larga escala pela Rússia. Serguei Lavrov, chefe da diplomacia russa, afirmou que a Ucrânia comercializou o acordo, fugindo ao seu carácter humanitário original. Putin tinha vindo a alertar para o desrespeito das condições russas presentes no acordo ao longo dos últimos meses, e alegou que as renovações foram «milagres de resistência, paciência e tolerância».
Acusados de usar a crise alimentar e a fome como armas de guerra, os russos rebateram, afirmando que a Europa tem sido a maior beneficiada deste acordo, não fazendo chegar a maioria dos produtos a países realmente necessitados. Já em março deste ano, período em que a cessação do acordo esteve iminente, a Rússia comprometeu-se a enviar gratuitamente cereais a países africanos, e Peskov voltou a frisá-lo, uma medida estratégica a ser discutida na Cimeira África-Rússia. Compromisso este que se enquadra na estratégia de Moscovo para intensificar relações com o continente africano. Tem Putin razões legítimas para suspender, ainda que temporariamente, o acordo, ou será um ato desesperado para debilitar a Ucrânia?
Reações e consequências
Não é surpresa que a decisão russa cause preocupação e uma procura rápida de soluções.
A reação dos países e organismos ocidentais foi semelhante, partindo de acusações à postura “desumana” da Rússia, que trará consequências devastadoras a vários níveis. O Secretário de Estado americano Antony J. Blinken afirma que «O contínuo uso dos alimentos como arma pelo Governo russo prejudica milhões de pessoas vulneráveis (…)» e rebate ainda o argumento russo garantindo que «a ONU facilitou níveis recorde de exportações russas de alimentos, coordenando com o sector privado e com os EUA, UE e Reino Unido para esclarecer quaisquer preocupações levantadas pela Rússia.». O Conselho da UE segue a mesma linha e fez ainda um apelo ao fim do bloqueio ilegal dos portos marítimos ucranianos no seu comunicado oficial.
Josep Borrell, o principal diplomata da UE caracteriza a decisão russa como “atitude bárbara” e propõe a intensificação do apoio militar à Ucrânia e das exportações pelos corredores solidários. Esta última proposta não é vista com bons olhos pelos países da UE que partilham fronteira com o território ucraniano, principalmente a Polónia, que garante fechar as fronteiras (caso não sejam levantadas as restrições às importações) como forma de proteger os produtores locais, uma vez que sofreriam prejuízos consideráveis dado ao elevado volume de cereais que entraria no país. É de lembrar que antes do acordo e com a utilização destas rotas, a Europa deu entrada a uma quantidade fora do normal destes produtos, e a UE chegou até a criar um pacote de ajuda monetária de 100 milhões de euros destinado aos produtores locais de cereais com vista a colmatar os prejuízos sofridos pela “inundação” de cereais ucranianos. Borrell acrescentou ainda que se têm verificado ataques contínuos ao porto de Odessa desde o término do acordo, tendo não só consequências humanas, com a morte de civis e a destruição de produtos alimentares, mas também materiais com a degradação das infraestruturas.
A Turquia, um dos atores fundamentais deste acordo, mostra a sua insatisfação com este rompimento do contrato. Erdogan, um assumido amigo pessoal de Putin, garante que fará de tudo para que a Iniciativa volte a entrar em vigor. O Ministro dos Negócios Estrangeiros turco já comunicou com o seu homólogo russo em busca de soluções e garantem continuar a trabalhar em prol daqueles que mais necessitam dos produtos alimentares.
Da parte da ONU, António Guterres lamentou o fim do acordo e os ataques aos portos dos dias seguintes. O Secretário-Geral das Nações Unidas propôs um novo acordo ao Presidente russo, no qual salienta o crescimento das exportações russas e a estabilização do mercado dos fertilizantes durante a iniciativa, utilizando dados do Sindicato Russo de Exportadores de Cereais e da Associação Russa dos Produtores de Fertilizantes. Tal como Blinken, Guterres alega que em conjunto com os EUA, Reino Unido e UE, foram facilitadas as importações de fertilizantes russos bem como o descongelamento de ativos. Na carta da ONU ao Kremlin é relembrada a criação de um mecanismo de pagamento para o Banco Agrícola Russo, através do banco norte-americano J.P. Morgan, fora do SWIFT, rebatendo assim um dos argumentos russos. O Kremlin rejeitou: Pode assim evidenciar a falta de influência e eficácia das Nações Unidas ou simplesmente as resoluções diplomáticas não são as prediletas de Moscovo?
Já o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky mostra-se confiante na continuação do acordo mesmo sem a Rússia, tendo já apresentado formalmente uma nova variante de “forma trilateral” a Erdogan e a Guterres. Esta medida está a ser cautelosamente analisada pelas partes envolvidas, já que a Rússia garantiu que não é segura, assumindo que qualquer navio que se dirija aos portos ucranianos tenha carregamento militar e está sujeito a ser atacado.
Estamos perante uma crise que afeta não só os envolvidos como todos aqueles que os rodeiam ou dependem deles, e espera-se que a diplomacia, que se tem mostrado impotente neste conflito, saia vencedora.