Tenho uma imagem difusa do dia 25 de Abril de 1974, mas recordo-me de que não fui à escola. Fixei melhor o dia seguinte, pois lembro-me das contínuas, era assim que se chamavam na altura, a retirarem as imagens do Presidente da República, Américo Thomaz, enquanto riam não sabiam muito bem do quê. Nessa época, tinha oito anos e os rapazes não se misturavam nas salas de aulas com as raparigas e penso mesmo que no intervalo também existia um muro que dividia os meninos das meninas. Antes dessa data havia uma rigidez no ensino que assustava, e os mais pobres eram discriminados em quase todas as vertentes: até nas filas onde se sentavam existia a dos muito bons e bons, suficientes, medíocres e burros. Assim mesmo. Os invernos eram, para os mais desfavorecidos dos desfavorecidos, um tormento pois eram obrigados a ir à escola mesmo quando chovia torrencialmente e fazia um frio de rachar. Nunca me esqueci de um ‘desgraçado’ que mesmo de collants se fez à escola, mas como chegou atrasado levou tareia de criar bicho da famosa reguada da professora. Tenho ideia que o tratávamos por Tó Mané.
Não posso precisar se foi nesse ano ou no seguinte, mas o caos tomou conta da escola e os filhos das professoras e de algumas funcionárias começaram a ser perseguidos, coisa que sempre achei miserável, apesar da tenra idade. Não gostava dos privilégios que tinham, mas também nunca gostei de ‘vendetas’ à olivalense. O que mais me surpreendeu no ano seguinte, ou no final desse, foi a chegada de professoras ditas retornadas que chegavam a ser espancadas por alunos que se queriam vingar do que tinham sofrido às mãos de professoras como Beatriz, diretora da escola. Nunca gostei de julgamentos populares e nunca estive ao lado desses rebeldes de costas protegidas. Com o 25 de Abril deixámos de ter de fugir à Polícia quando jogávamos à bola no Bloco 9, em casa, ou fora, no Bloco 10, ou ainda na Praceta. 49 anos depois ainda há muita gente com vontade de se vingar não se sabe muito bem do quê. Para começar, vingança é uma coisa horrível, e depois o 25 de Abril não é de um grupo que se diz dono da data, até porque antes da Revolução dos Cravos a esmagadora maioria ‘jogava’ quase toda na ‘equipa do sistema’, e passaram a ser os maiores democratas ou comunistas no 26 de Abril. Diga-se o que se disser, antes do 25 de Abril de 1974 só existiam uns poucos milhares que se opunham à ditadura, nomeadamente estudantes universitários e os operários com ligações a partidos como o PCP. A larga maioria dos portugueses era indiferente ao Estado Novo. Basta ver os arquivos da RTP para recordar os banhos de multidão que recebiam Marcello Caetano e até Américo Thomaz. Felizmente hoje vivemos em democracia e muitas avantesmas podem autointitular-se donos da liberdade… Mas, cá para mim, nunca estivemos tão próximos de uma nova ditadura determinada pelo mundo do wokismo.