As Corporações Contra as Ordens Profissionais


O resultado é que nós que trabalhamos e pagamos impostos iremos ter um médico sem qualificações. Os gestores/políticos que definem esta política irão, nem que seja de avião, a um especialista de topo. O país perderá a formação e a qualificação que existe num serviço de saúde com escala público, os melhores vão ser forçados…


Raquel Varela,
Professora FCSH-UNL, Presidente do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho-Associação Científica, historiadora.

Foi anunciado pelo Governo e pela EU – e editores de jornais juntaram-se a essa política – que o novo estatuto das Ordens Profissionais prestava um serviço à sociedade, acabando com as “corporações”. É exatamente o contrário.

A desregulação das Ordens Profissionais deixar-nos-á a todos, população que vive do seu trabalho, em risco acrescido de vida em áreas vitais – saúde, justiça, construção civil. Vai-nos tornar mais vulneráveis ao encobrimento, à mentira, ao erro, ao tráfico de influências e à corrupção.

Um erro na justiça, na engenharia, na arquitetura e na saúde pode levar à morte, incapacidade ou perda da liberdade. Caiu há uns anos uma ponte em Itália – não era da época romana.

O novo estatuto, que a EU impôs como contrapartida do PRR – PRR que não é uma dádiva, mas um empréstimo que sufocará crescentemente o país e acelerará a reconversão produtiva para a automação – vai retirar (ainda mais) aos profissionais a capacidade de executar com brio e em equipa, com domínio técnico-científico, o seu trabalho. Nós, cidadãos, vamos ficar mais vulneráveis porque com o novo Estatuto a profissão passará a ser definida por uma minoria de médicos e advogados, contabilistas e arquitetos, não eleitos-escrutinados pelos seus pares. Mas sim nomeados pelas empresas e o Estado, e que dominarão todos os seus colegas. É uma decisão contra a democracia.

Este novo estatuto foi aprovado para garantir o poder das corporações reais que existem hoje no século XXI, e que não são as ordens profissionais. Só mobilizando todo cinismo se pode chamar corporações às Ordens. E chamar “empresas”, “Mercado” e “investidores” às corporações que ligam, como uma máquina, a vida das grandes empresas e dos Bancos (que entraram em coma em 2008) e estas ao Estado, que as financia através da dívida pública, paga com o corte nos salários e pensões, com a destruição dos serviços públicos.

O Estado e o Mercado exigem que o já proletarizado trabalho de médicos, advogados, engenheiros, contabilistas, psicólogos, farmacêuticos, arquitetos, enfermeiros, seja “polivalente” (isto é, desprofissionalizado). Para isso exigem que eles deixem de participar ativamente na definição, regulação e exame do que é a sua profissão.

Acabar com as qualificações, substituí-las por competências; acabar com a segurança do saber, substituí-la por executar e obedecer sem conhecer. Contra quem domina os “ossos do ofício” escolhe-se agora o “pau para toda a obra”. O resultado é que nós que trabalhamos e pagamos impostos iremos ter um médico sem qualificações. Os gestores/políticos que definem esta política irão, nem que seja de avião, a um especialista de topo. O país perderá a formação e a qualificação que existe num serviço de saúde com escala público, os melhores vão ser forçados a emigrar porque não desejam ser desqualificados. Tudo isto nos é oferecido demagogicamente como um progresso contra “os senhores feudais das ordens profissionais”.

Esta demagogia apoia-se na ignorância da história, na iliteracia económica e no desconhecimento do que se denomina “trabalho vivo ou trabalho real”, que não é o trabalho prescrito pelos gestores. Venham comigo desvelar um mistério…o mistério do trabalho destes profissionais.

Na Idade Média havia mais democracia num trabalho oficinal, artesanal, do que há hoje nos locais de trabalho. As formas de trabalho impunham uma democracia no trabalho que hoje está ausente nas sociedades capitalistas modernas. Nas sociedades civis burguesas há sim sufrágio universal, mas ao mesmo tempo um monopólio económico de uma pequena minoria sobre a ampla maioria – garantido pela ausência de democracia no acesso à propriedade (não somos donos de hospitais, máquinas, matérias-primas, comunicações, transportes) e pela ausência de democracia nos locais de trabalho – não somos chamados a dizer o que devemos produzir, para quem e como. Um gestor pensa, organiza, gere força de trabalho. O trabalhador executa e trabalha. Esta dissociação entre pensar e fazer é anti-humana e anti social.

A nossa origem ontológica como ser-social, a nossa humanização como espécie, que nos separa dos animais e do restante da natureza, é mobilizar em prévia-ideação um projecto, planear um serviço, um bem, uma obra e executá-la com afinco; e a não-mobilização leva à dissociação com o objecto, ao distanciamento, à alienação, depressão, etc. Aquilo que se conhece no senso comum como “burnout”, medido pela alienação (desrealização e despersonalização) é na verdade um mecanismo psíquico de médicos, enfermeiros, professores, arquitetos, engenheiros de se afastarem emocionalmente de um trabalho que os faz sofrer porque os afastou de pensar, conceber – criar – e, por isso, de fazer o trabalho com qualidade, brio e realização. O chamado sofrimento ético dá-se quando somos cúmplices com os procedimentos errados – que nos mandam fazer, mas que sabemos que são errados.

Seguir um protocolo padronizado que vai colocar o doente em risco; acelerar a decisão de um processo jurídico sem garantir a qualidade da decisão; ensinar mal um aluno; aprovar um projeto de um edifício com defeitos, tudo isto leva os profissionais a um sofrimento profundo, ainda que inconsciente.  Não se resolve com aulas de ioga, antidepressivos, e 10 episódios da mesma série ao Domingo – é preciso dizer “Não!” como recordava o psiquiatra Coimbra de Matos. O local de trabalho tem que ser um lugar de prazer no trabalho.

Essa maior-democracia na oficina da Idade Média era real, não era formal. Ela era garantida pelo poder de facto de saber-fazer. Não havia gestores nas oficinas de trabalho medieval – eram os próprios que autoregulavam a profissão. O aprendiz, para progredir na carreira, e chegar a mestre, era inserido num processo de trabalho colectivo em que saber e fazer estavam juntos, pensar e executar – ao aprendiz não era retirado o saber, ele a pouco e pouco devia adquirir todos os “segredos” do trabalho. A prova final que lhe dava uma garantia de autonomia era a obra-prima, sujeita à avaliação dos pares (a obra-prima era a primeira obra, resultado de um esforço colectivo, com o tempo obra prima passou a designar obra de excelência, como se a excelência caísse do céu no indivíduo  a solo). Não por acaso a Maçonaria (que sempre foi dominada por médicos, advogados, arquitetos, etc.) era a “corporação das corporações” na Europa Ocidental, e estava envolvida em rituais secretos – é uma transposição simbólica e ritualística do trabalho vivo e real. Nela reuniram-se aqueles que resistiam à marcha da expropriação capitalista por dominarem o segredo do seu trabalho.

 

Pagava-se a estes profissionais liberais e suas respectivas artes honorários e não salário. Uma vez que o seu trabalho é inquantificável em tempo de trabalho, não é mercantilizável, como nos recorda o professor Alain Supiot, uma figura cimeira da filosofia do direito do trabalho. Jamais poderemos pagar a um médico ou advogado que nos salva a vida. Uma ponte que cai mata, a vida não tem preço. O honorário é assim uma honraria.  Em lugares como o SNS chegou-se, a partir de 1974-75, a uma paulatina definição de carreiras médicas, bem remuneradas, que garantiam estes “honorários” pagos com impostos públicos. A vida não se mede em tempo, paga-se em qualidade do trabalho, de autonomia e fruição dos que prestam esse trabalho.

Nos hospitais empresa (que são hoje os privados, mas também os públicos) paga-se a tempo de trabalho, à peça ou empreitada, como aos operários do século XIX.

 

Embora o Mercado tenha capturado a subjetividade dos trabalhadores – impondo um modelo de trabalho assente na quantificação dos atos (necessária à automação, uma distopia) ignorando a qualidade deles. E para tal trouxeram os modelos de gestão das fábricas para os serviços públicos, industrializando os mesmos – sobrava ainda, porém, um mistério imune ao Estado e às empresas, esse mistério é trabalho vivo ou trabalho real. Há anos que procuramos estudar e investigar este mistério, fascinante.

 

O real do trabalho penetra até no corpo, há uma inteligência corporal autónoma que os profissionais sequer sabem verbalizar, o real do trabalho é encantador, ele expressa-se em tudo, desde a forma como os trabalhadores se organizam sindicalmente às relações familiares, tudo é trabalho vivo. E tudo pode ser trabalho-morto (máquinas, ecrãs, algoritmos, folhas de Excel). A desmotivação, a alienação, a tristeza, a falta de prazer no trabalho é a substituição cada vez maior do trabalho vivo por máquinas que impõem métodos de trabalho que destroem a humanização, as relações, e a qualidade dos serviços e obras.

 

Ouvir alguém que tem prazer no trabalho, perceber como os seus músculos e cérebros são mobilizados para realizar uma obra, um serviço, uma consulta, é mágico e arrebatador. Como me disse uma vez um médico internista, Bernardino Páscoa, sobre o serviço médico à periferia, “as pessoas descobriram necessidades que não sabiam que tinham”. As que ele tratava, como médico; e ele, como médico, ao tratá-las – ambos se transformaram. As pessoas passaram a ser mais tratadas/curadas, ele passou a saber mais do mistério do seu trabalho ao poder tratá-las; e ao poder passar esse segredo do trabalho vivo através da formação, gestão democrática, autoregulação e equipas aos seus pares o país criou uma saúde de escala que esteve entre as melhores do mundo. Somos o que fazemos com os outros para mudar aquilo que somos.

Hoje, quando vemos urgências fechadas, percebemos o declínio catastrófico a que assistimos.

A polivalência é apenas uma forma de extrair mais lucro do trabalho destes profissionais, esgotando as suas forças vitais, o seu compromisso, o seu entusiasmo.

O segredo da profissão existirá sempre. Não vamos acabar com o segredo de médicos e advogados ou farmacêuticos, vamos colocar esse segredo na mão de meia dúzia de profissionais, que serão testas de ferro técnicos de gestores, em aliança com o Estado e as empresas, que definirão critérios de produtividade/lucro. E que, como afastam os profissionais reais das decisões reais, serão cada vez de pior qualidade, com mais erros. Dos quais nascerão mais e não menos ocultações.  

Para que passem a ser uma espécie de “pau para toda a obra” há que lhes retirar o último sopro de autonomia democrática, que era o nosso último garante de qualidade – a autonomia técnica do seu trabalho, definida em Ordens eleitas por todos os pares.

No essencial, o capitalismo, para se afirmar, precisa de separar o produtor do produto do seu trabalho (alienando-o também do sentido do seu trabalho ao separar pensar de executar, trabalho intelectual de manual), simplificando em tarefes simples, repetitivas, realizadas massivamente num processo coletivo. A porção mágica do saber fazer o trabalho desaparece assim da mão do trabalhador, e com ela o seu interesse pelo trabalho, que lhe é estranho (alienado). Um sapateiro passa a operário de colar solas, um cozinheiro que fazia alquimias gastronómicas passa a descascador de batatas, um professor passa de educador a transmissor de informações espartilhadas e previamente definidas, um médico deixa de ser um cuidador, que compreende a totalidade da saúde, e transforma-se num prescritor de receitas segundo protocolos.

O argumento de quem está contra as Ordens é que estas impõem o segredo destes profissionais contra a sociedade – o meu argumento é que o modelo das ordens deve estender-se a toda a sociedade. Cada profissão deve ter o seu sentido do trabalho e organização definido pelos seus pares, eleitos. Não existe qualidade de trabalho nem prazer no trabalho quando as regras não são definidas democraticamente por quem trabalha. Seriedade conquista-se com gestão democrática, equipas, bons salários, autonomia e carreiras justas, que criam um ambiente de confiança entre pares, sentido de justiça, reconhecimento e realização. Não se conquista silenciando quem trabalha e afastando que exerce a profissão das decisões.

A questão cimeira é esta: porque precisamos de mais lucro? Precisamos de lucro ou de prestar serviços com qualidade? Porque ao trabalho que produzimos chama-se  “custo” e ao lucro “necessidade” ou “compromisso assumido”? Não é o lucro um custo insustentável para a humanidade? Que projecto político regressivo é este, que derrocada civilizacional é esta, que nos diz todos os dias que é preciso cortar salários e pensões para a sociedade ser sustentável? Que projeto político é este que luta contra o prazer no trabalho e faz dele uma tortura? Que suga a energia e paixões vitais de quem trabalha. Qual é o trabalho real e vivo, o contributo social, de quem quer impor este modelo catastrófico à sociedade? E, por último, o que faz exatamente um gestor?

 

*Este artigo só foi possível graças aos anos de estudo e investigação, com autonomia e democracia com os meus colegas do Observatório, a quem sou grata. Os erros ou imprecisões são meus naturalmente.

As Corporações Contra as Ordens Profissionais


O resultado é que nós que trabalhamos e pagamos impostos iremos ter um médico sem qualificações. Os gestores/políticos que definem esta política irão, nem que seja de avião, a um especialista de topo. O país perderá a formação e a qualificação que existe num serviço de saúde com escala público, os melhores vão ser forçados…


Raquel Varela,
Professora FCSH-UNL, Presidente do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho-Associação Científica, historiadora.

Foi anunciado pelo Governo e pela EU – e editores de jornais juntaram-se a essa política – que o novo estatuto das Ordens Profissionais prestava um serviço à sociedade, acabando com as “corporações”. É exatamente o contrário.

A desregulação das Ordens Profissionais deixar-nos-á a todos, população que vive do seu trabalho, em risco acrescido de vida em áreas vitais – saúde, justiça, construção civil. Vai-nos tornar mais vulneráveis ao encobrimento, à mentira, ao erro, ao tráfico de influências e à corrupção.

Um erro na justiça, na engenharia, na arquitetura e na saúde pode levar à morte, incapacidade ou perda da liberdade. Caiu há uns anos uma ponte em Itália – não era da época romana.

O novo estatuto, que a EU impôs como contrapartida do PRR – PRR que não é uma dádiva, mas um empréstimo que sufocará crescentemente o país e acelerará a reconversão produtiva para a automação – vai retirar (ainda mais) aos profissionais a capacidade de executar com brio e em equipa, com domínio técnico-científico, o seu trabalho. Nós, cidadãos, vamos ficar mais vulneráveis porque com o novo Estatuto a profissão passará a ser definida por uma minoria de médicos e advogados, contabilistas e arquitetos, não eleitos-escrutinados pelos seus pares. Mas sim nomeados pelas empresas e o Estado, e que dominarão todos os seus colegas. É uma decisão contra a democracia.

Este novo estatuto foi aprovado para garantir o poder das corporações reais que existem hoje no século XXI, e que não são as ordens profissionais. Só mobilizando todo cinismo se pode chamar corporações às Ordens. E chamar “empresas”, “Mercado” e “investidores” às corporações que ligam, como uma máquina, a vida das grandes empresas e dos Bancos (que entraram em coma em 2008) e estas ao Estado, que as financia através da dívida pública, paga com o corte nos salários e pensões, com a destruição dos serviços públicos.

O Estado e o Mercado exigem que o já proletarizado trabalho de médicos, advogados, engenheiros, contabilistas, psicólogos, farmacêuticos, arquitetos, enfermeiros, seja “polivalente” (isto é, desprofissionalizado). Para isso exigem que eles deixem de participar ativamente na definição, regulação e exame do que é a sua profissão.

Acabar com as qualificações, substituí-las por competências; acabar com a segurança do saber, substituí-la por executar e obedecer sem conhecer. Contra quem domina os “ossos do ofício” escolhe-se agora o “pau para toda a obra”. O resultado é que nós que trabalhamos e pagamos impostos iremos ter um médico sem qualificações. Os gestores/políticos que definem esta política irão, nem que seja de avião, a um especialista de topo. O país perderá a formação e a qualificação que existe num serviço de saúde com escala público, os melhores vão ser forçados a emigrar porque não desejam ser desqualificados. Tudo isto nos é oferecido demagogicamente como um progresso contra “os senhores feudais das ordens profissionais”.

Esta demagogia apoia-se na ignorância da história, na iliteracia económica e no desconhecimento do que se denomina “trabalho vivo ou trabalho real”, que não é o trabalho prescrito pelos gestores. Venham comigo desvelar um mistério…o mistério do trabalho destes profissionais.

Na Idade Média havia mais democracia num trabalho oficinal, artesanal, do que há hoje nos locais de trabalho. As formas de trabalho impunham uma democracia no trabalho que hoje está ausente nas sociedades capitalistas modernas. Nas sociedades civis burguesas há sim sufrágio universal, mas ao mesmo tempo um monopólio económico de uma pequena minoria sobre a ampla maioria – garantido pela ausência de democracia no acesso à propriedade (não somos donos de hospitais, máquinas, matérias-primas, comunicações, transportes) e pela ausência de democracia nos locais de trabalho – não somos chamados a dizer o que devemos produzir, para quem e como. Um gestor pensa, organiza, gere força de trabalho. O trabalhador executa e trabalha. Esta dissociação entre pensar e fazer é anti-humana e anti social.

A nossa origem ontológica como ser-social, a nossa humanização como espécie, que nos separa dos animais e do restante da natureza, é mobilizar em prévia-ideação um projecto, planear um serviço, um bem, uma obra e executá-la com afinco; e a não-mobilização leva à dissociação com o objecto, ao distanciamento, à alienação, depressão, etc. Aquilo que se conhece no senso comum como “burnout”, medido pela alienação (desrealização e despersonalização) é na verdade um mecanismo psíquico de médicos, enfermeiros, professores, arquitetos, engenheiros de se afastarem emocionalmente de um trabalho que os faz sofrer porque os afastou de pensar, conceber – criar – e, por isso, de fazer o trabalho com qualidade, brio e realização. O chamado sofrimento ético dá-se quando somos cúmplices com os procedimentos errados – que nos mandam fazer, mas que sabemos que são errados.

Seguir um protocolo padronizado que vai colocar o doente em risco; acelerar a decisão de um processo jurídico sem garantir a qualidade da decisão; ensinar mal um aluno; aprovar um projeto de um edifício com defeitos, tudo isto leva os profissionais a um sofrimento profundo, ainda que inconsciente.  Não se resolve com aulas de ioga, antidepressivos, e 10 episódios da mesma série ao Domingo – é preciso dizer “Não!” como recordava o psiquiatra Coimbra de Matos. O local de trabalho tem que ser um lugar de prazer no trabalho.

Essa maior-democracia na oficina da Idade Média era real, não era formal. Ela era garantida pelo poder de facto de saber-fazer. Não havia gestores nas oficinas de trabalho medieval – eram os próprios que autoregulavam a profissão. O aprendiz, para progredir na carreira, e chegar a mestre, era inserido num processo de trabalho colectivo em que saber e fazer estavam juntos, pensar e executar – ao aprendiz não era retirado o saber, ele a pouco e pouco devia adquirir todos os “segredos” do trabalho. A prova final que lhe dava uma garantia de autonomia era a obra-prima, sujeita à avaliação dos pares (a obra-prima era a primeira obra, resultado de um esforço colectivo, com o tempo obra prima passou a designar obra de excelência, como se a excelência caísse do céu no indivíduo  a solo). Não por acaso a Maçonaria (que sempre foi dominada por médicos, advogados, arquitetos, etc.) era a “corporação das corporações” na Europa Ocidental, e estava envolvida em rituais secretos – é uma transposição simbólica e ritualística do trabalho vivo e real. Nela reuniram-se aqueles que resistiam à marcha da expropriação capitalista por dominarem o segredo do seu trabalho.

 

Pagava-se a estes profissionais liberais e suas respectivas artes honorários e não salário. Uma vez que o seu trabalho é inquantificável em tempo de trabalho, não é mercantilizável, como nos recorda o professor Alain Supiot, uma figura cimeira da filosofia do direito do trabalho. Jamais poderemos pagar a um médico ou advogado que nos salva a vida. Uma ponte que cai mata, a vida não tem preço. O honorário é assim uma honraria.  Em lugares como o SNS chegou-se, a partir de 1974-75, a uma paulatina definição de carreiras médicas, bem remuneradas, que garantiam estes “honorários” pagos com impostos públicos. A vida não se mede em tempo, paga-se em qualidade do trabalho, de autonomia e fruição dos que prestam esse trabalho.

Nos hospitais empresa (que são hoje os privados, mas também os públicos) paga-se a tempo de trabalho, à peça ou empreitada, como aos operários do século XIX.

 

Embora o Mercado tenha capturado a subjetividade dos trabalhadores – impondo um modelo de trabalho assente na quantificação dos atos (necessária à automação, uma distopia) ignorando a qualidade deles. E para tal trouxeram os modelos de gestão das fábricas para os serviços públicos, industrializando os mesmos – sobrava ainda, porém, um mistério imune ao Estado e às empresas, esse mistério é trabalho vivo ou trabalho real. Há anos que procuramos estudar e investigar este mistério, fascinante.

 

O real do trabalho penetra até no corpo, há uma inteligência corporal autónoma que os profissionais sequer sabem verbalizar, o real do trabalho é encantador, ele expressa-se em tudo, desde a forma como os trabalhadores se organizam sindicalmente às relações familiares, tudo é trabalho vivo. E tudo pode ser trabalho-morto (máquinas, ecrãs, algoritmos, folhas de Excel). A desmotivação, a alienação, a tristeza, a falta de prazer no trabalho é a substituição cada vez maior do trabalho vivo por máquinas que impõem métodos de trabalho que destroem a humanização, as relações, e a qualidade dos serviços e obras.

 

Ouvir alguém que tem prazer no trabalho, perceber como os seus músculos e cérebros são mobilizados para realizar uma obra, um serviço, uma consulta, é mágico e arrebatador. Como me disse uma vez um médico internista, Bernardino Páscoa, sobre o serviço médico à periferia, “as pessoas descobriram necessidades que não sabiam que tinham”. As que ele tratava, como médico; e ele, como médico, ao tratá-las – ambos se transformaram. As pessoas passaram a ser mais tratadas/curadas, ele passou a saber mais do mistério do seu trabalho ao poder tratá-las; e ao poder passar esse segredo do trabalho vivo através da formação, gestão democrática, autoregulação e equipas aos seus pares o país criou uma saúde de escala que esteve entre as melhores do mundo. Somos o que fazemos com os outros para mudar aquilo que somos.

Hoje, quando vemos urgências fechadas, percebemos o declínio catastrófico a que assistimos.

A polivalência é apenas uma forma de extrair mais lucro do trabalho destes profissionais, esgotando as suas forças vitais, o seu compromisso, o seu entusiasmo.

O segredo da profissão existirá sempre. Não vamos acabar com o segredo de médicos e advogados ou farmacêuticos, vamos colocar esse segredo na mão de meia dúzia de profissionais, que serão testas de ferro técnicos de gestores, em aliança com o Estado e as empresas, que definirão critérios de produtividade/lucro. E que, como afastam os profissionais reais das decisões reais, serão cada vez de pior qualidade, com mais erros. Dos quais nascerão mais e não menos ocultações.  

Para que passem a ser uma espécie de “pau para toda a obra” há que lhes retirar o último sopro de autonomia democrática, que era o nosso último garante de qualidade – a autonomia técnica do seu trabalho, definida em Ordens eleitas por todos os pares.

No essencial, o capitalismo, para se afirmar, precisa de separar o produtor do produto do seu trabalho (alienando-o também do sentido do seu trabalho ao separar pensar de executar, trabalho intelectual de manual), simplificando em tarefes simples, repetitivas, realizadas massivamente num processo coletivo. A porção mágica do saber fazer o trabalho desaparece assim da mão do trabalhador, e com ela o seu interesse pelo trabalho, que lhe é estranho (alienado). Um sapateiro passa a operário de colar solas, um cozinheiro que fazia alquimias gastronómicas passa a descascador de batatas, um professor passa de educador a transmissor de informações espartilhadas e previamente definidas, um médico deixa de ser um cuidador, que compreende a totalidade da saúde, e transforma-se num prescritor de receitas segundo protocolos.

O argumento de quem está contra as Ordens é que estas impõem o segredo destes profissionais contra a sociedade – o meu argumento é que o modelo das ordens deve estender-se a toda a sociedade. Cada profissão deve ter o seu sentido do trabalho e organização definido pelos seus pares, eleitos. Não existe qualidade de trabalho nem prazer no trabalho quando as regras não são definidas democraticamente por quem trabalha. Seriedade conquista-se com gestão democrática, equipas, bons salários, autonomia e carreiras justas, que criam um ambiente de confiança entre pares, sentido de justiça, reconhecimento e realização. Não se conquista silenciando quem trabalha e afastando que exerce a profissão das decisões.

A questão cimeira é esta: porque precisamos de mais lucro? Precisamos de lucro ou de prestar serviços com qualidade? Porque ao trabalho que produzimos chama-se  “custo” e ao lucro “necessidade” ou “compromisso assumido”? Não é o lucro um custo insustentável para a humanidade? Que projecto político regressivo é este, que derrocada civilizacional é esta, que nos diz todos os dias que é preciso cortar salários e pensões para a sociedade ser sustentável? Que projeto político é este que luta contra o prazer no trabalho e faz dele uma tortura? Que suga a energia e paixões vitais de quem trabalha. Qual é o trabalho real e vivo, o contributo social, de quem quer impor este modelo catastrófico à sociedade? E, por último, o que faz exatamente um gestor?

 

*Este artigo só foi possível graças aos anos de estudo e investigação, com autonomia e democracia com os meus colegas do Observatório, a quem sou grata. Os erros ou imprecisões são meus naturalmente.