Depois do grande sucesso crítico de Antwerpen e de uma presença no Festival da Canção, Surma, nome artístico de Débora Umbelino, está de volta com o seu segundo disco, Alla, um trabalho onde tentou surpreender os seus fãs ao apresentar as músicas mais vulneráveis e transparentes da sua carreira.
Alla é o sucessor do aclamado Antwerpen, lançado em 2017. Qual foi a motivação para lançar agora este disco?
Já queria ter começado a trabalhar neste disco em 2019, a questão foi a falta de tempo para começar a preparar as músicas e pensar calmamente no seu conceito. Quando a pandemia chegou, isso deixou o álbum em pausa e só consegui regressar ao estúdio em 2021, num processo repartido em diversos meses.
Sente que este desenvolvimento pausado ajudou no desenvolvimento deste disco?
No fim, acabou por correr tudo bem, uma vez que me ofereceu a disponibilidade para perceber aquilo que quero enquanto artista, permitiu-me fazer a maturação de uma persona que pretendia explorar há algum tempo e aprofundar alguns temas que acabam por ser centrais em Alla, como a androginia, o bullying e o facto de termos de nos encaixar num certo “pacote” para nos enquadrarmos na sociedade. Queria que este álbum tivesse este lado humanitário, de esperança e que fosse uma luz. Mas a vontade de lançar música é algo que existe sempre dentro de mim. Tenho sempre vontade de criar novas composições. Aliás, até já estou a pensar como vai ser a estética do terceiro disco, já tenho um bloco de notas cheio de ideias (risos).
Estava a falar sobre a pausa que a covid lhe ofereceu. Este foi um período fértil em termos criativos ou existiu um bloqueio devido ao facto de estar sempre presa em casa?
Não quero ser egoísta, porque foi um período (e ainda é) horrível, mas os meses de confinamento foram essenciais para o Alla e para toda a sua estética. Permitiu-me ver muitos filmes, ler muitos livros, ter algumas crises existenciais pelo meio (risos). Tudo isto ajudou-me a criar toda a atmosfera que envolve o disco.
Entre o Alla e o Antwerpen passaram-se cinco anos onde não lançou música nova. Como é que passou este interregno?
Felizmente, desde que o Antwerpen saiu tem sido uma loucura em termos de concertos, de projetos fora de Surma, como os Concertos Para Bebés, os 5ª Punkada, a criação de bandas sonoras para filmes e teatro… tenho estado envolvida em tudo e mais alguma coisa. Para mim, é essencial ir beber a outras artes, isso é o que me traz inspiração e criatividade para fazer coisas diferentes.
Apesar de não estar a lançar música nova, é óbvio que esteve sempre ocupada, inclusive, encontrei um título que se chamava “De onde vem a Surma e porque está em todo o lado?”. Foi complicado gerir todos estes projetos e atividades?
Sem dúvida. não tive tempo para criar nada nestes últimos cinco anos. Muitas vezes, chegava a casa com vontade de trabalhar em ideias novas, mas não me sentia na disposição certa e com a cabeça cheia de ideias que não queria trazer para este novo álbum. Esta pausa permitiu-me limpar a mente e começar de novo. Apesar de também terem existido momentos complicados, como estar em casa sem fazer nada. Estava habituada a um ritmo de trabalho muito intenso e, do nada, houve uma interrupção do dia para a noite.
E também teve inúmeros concertos ao longo destes anos.
Sim, é verdade. Estava sempre ocupada, passei a deixar de ter tempo para pensar em criar num segundo álbum.
O Antwerpen foi um disco muito bem recebido pela crítica, isso colocou alguma pressão adicional no seu sucessor?
Ainda há e haverá sempre. É impossível não pensar se as pessoas vão gostar ou não do que estou fazer. Se estou a fazer algo muito “fora” ou demasiado “normal”. A certa altura começas a questionar tudo e mais alguma coisa. Nessas alturas, o meu produtor, o Rui Gaspar, diz-me sempre para sair do estúdio e para voltar uns tempos depois. É engraçado porque isto aconteceu algumas vezes neste disco e sempre que regressava sentia que as músicas tinham um significado diferente, mas num bom sentido.
Esta situação é algo que a deixa ansiosa?
Existe sempre alguma pressão e stress na altura de lançar trabalhos novos. Fiz uma listening party para apresentar o disco e estava muito nervosa. Não consegui comer nada e estava a tremer. É o meu segundo bebé e, apesar de já ter uma certa estaleca e saber como funciona este processo, continuo a sentir muita pressão.
Esta pressão ajuda-a a ser mais produtiva?
Quando estou a criar sinto que fujo deste mundo. Não trabalho para agradar ninguém, em primeiro lugar preciso de estar satisfeita com aquilo que estou a fazer e de ser fiel a mim mesma. Estou no estúdio com o Rui e somos apenas amigos a criar música juntos, isso é o mais essencial. Só depois do álbum estar preparado é que começo a sentir e a pensar na pressão.
Estava a falar sobre não saber se devia seguir um registo mais “fora” ou mais “normal”, normalmente o segundo disco dos músicos é sempre mais experimental, quase como um “tira-gosto” do seu primeiro trabalho. Que caminho é que sente que seguiu em Alla?
Não foi premeditado, mas, sem sombra de dúvida que é mais experimental. Isto foi algo que também aconteceu com o Antwerpen. Quando entro em estúdio não penso que vou fazer um disco de um género específico. Seja de jazz, rock ou pop. É algo que sai no momento. Este álbum foi muito divertido de se fazer no momento. Estávamos numa sala repleta de instrumentos perdidos e havia a liberdade para experimentar com uma grande variedade de sons. Gravámos sons na rua com o telemóvel, com microfones velhos… este é um álbum muito interessante de ouvir com phones porque é possível ouvir muitos detalhes diferentes e inesperados.
Como descreveria essa experiência?
É um disco muito genuíno, tem poucos efeitos e é muito mais cru que o Antwerpen, em termos de composição e produção. Experimentámos muitos microfones, alguns muito velhos e sem qualquer tipo de equalização, instrumentos cheios de pó e sem pilhas… Na música Islet existe uns sons que foram feitos por um teclado da Casio que tive de ir de propósito comprar pilhas para o ligar. Existem muitas sonoridades que entraram no disco de forma inesperada e sinto que isso torna o Alla muito mais interessante.
Onde é que o disco foi gravado?
Foi gravado no Espaço Serra, em Leiria, na sala de ensaios dos First Breath After a Coma, que é um espaço muito acolhedor, onde estávamos apenas eu e o Rui a trabalhar. Foram umas sessões muito divertidas.
Ainda a falar sobre este tempo entre discos, uma das experiências que passou neste período foi ter participado no Festival da Canção, em 2019. Depois destes anos, como é que avalia essa aventura?
Foi intensa de início ao fim, mas se me voltassem a convidar participava novamente. Em primeiro lugar, pelo “statement” que a RTP está a ter, e tiro-lhes o chapéu nesse aspeto, por estarem a convidar artistas mais emergentes e bandas mais alternativas de forma a mudar o estigma de que o festival é feito só de “baladas”. Desde que o Salvador Sobral ganhou a Eurovisão, tenho adorado o percurso que tem sido efeito neste evento.
Quais foram as maiores dificuldades que sentiu nesta participação?
Na altura, foi um desafio cantar em português. Criar a minha própria equipa, constituída por doze pessoas. Estar na televisão foi pesado, mas, ao mesmo tempo, uma experiência incrível, muito gratificante. Os artistas que vão concorrer ao Festival da Canção não estão com um espírito de concorrência. A certa altura, estávamos todos numa festa e fomos surpreendidos porque estava a acontecer a votação (risos). Criámos uma comunhão de pessoas unidas pela música, foi muito bonito.
A Surma vem de um meio mais “underground”, como foi confrontar-se com este evento normalmente representado por música mais popular e comercial?
Eu não senti isso. Estávamos todos no mesmo barco. Não existia grande divisão. Conheci pessoas como a Ana Moura, estava tão nervosa na altura, e não existia distinção entre nós. Havia uma grande união, estávamos todos sentados na mesma mesa a comer, não sentia que existia uma grande competição. Gostei muito desta experiência porque existia este ambiente de comunhão entre todos os músicos e com os técnicos e apresentadores.
Essa edição foi marcada pela presença do Conan Osíris, que estava na boca de todas as pessoas. Como é que foi viver este momento ao lado dele?
Já conhecia o Conan e somos amigos há muitos anos, conhecemo-nos nas Caldas da Rainha. Na altura, até gozei com ele – aleluia, estava finalmente a receber o reconhecimento que merecia. Sempre fui grande fã do Conan, tanto a nível musical como pessoal, porque ele tem uma maneira muito bonita de levar a vida. Desde o início do festival que todos diziam “ele vai ter de ganhar”. Muitos de nós votávamos nele às escondidas (risos). Estou muito orgulhosa de tudo aquilo que ele alcançou.
Acha que ele foi injustiçado na Eurovisão?
Acho que todos são injustiçados na Eurovisão. Há pessoas que são muito más. É do “oito ao oitenta”. Ou és adorado ou te odeiam ao ponto de receberes ameaças de morte e isso foi algo que aconteceu ao Conan, foi horrível. É difícil, mas temos que nos abstrair de todas estas críticas e fazer aquilo de que gostamos.
Trouxe alguma coisa desta experiência para a sua carreira e para a sua música?
Cantar em português, por exemplo, fez-me perceber que conseguia cumprir este desafio. Nunca tinha sequer pensado trazer músicas em português para este álbum e conta, inclusive, com uma letra em português da Ana Deus, dos Três Tristes Tigres. O Festival da Canção ajudou-me a abrir um leque e perceber que consigo fazer muitas coisas novas e de não ter tanto medo de estar em público. Ajudou-me a conseguir criar uma estética mais predefinida para um momento específico. Nunca tinha pensado nisso, mas estou a falar de diversos elementos do Alla que são um reflexo da minha participação do Festival da Canção.
Imagino que, por exemplo, para a criação de um espetáculo deve ter sido muito útil.
Sem dúvida, nem que seja para a formação de uma equipa para me ajudar. Por exemplo, quando tive de gravar um videoclip já foi muito mais fácil, já sabia o que queria. Inclusive, trabalhei com a equipa que colaborou comigo no Festival.
Depois de todas estas experiências que estivemos aqui a falar chega a Alla, pode explicar o significado deste nome?
O nome do disco apenas chegou muito tempo depois, foi um processo muito complicado. Tinha imensas possibilidades, enchi três páginas de um bloco de notas com possíveis nomes e Alla não era um deles (risos). Foi uma epifania que surgiu depois de uma grande pesquisa numa altura que estava à procura de um significado para dar ao álbum. Alla é uma palavra sem género sueca, que significa “todos”. Queria que este álbum refletisse uma identidade sem género, sem barreiras, sem riscos e que fosse de uma transparência e vulnerabilidade como nunca tinha explorado na vida. Fez todo o sentido usar esta palavra como a palavra-geral do álbum.
Este é um dos tópicos que fala no single de introdução do disco, Islet. Foi esta a altura certa para abordar todas estas questões?
Nestes cinco anos, cresci muito como pessoa. Era muito nova quando fiz o Antwerpen, tinha 23 anos. Não pensava tanto neste temas na altura, mas, agora, queria libertar tudo isto de mim e tirar esta máscara e mostrar quem realmente sou eu.
Sente que chega a este disco como uma pessoa diferente?
Óbvio que sou a Surma de há cinco anos atrás, apesar de menos retraída, mas agora consigo mostrar realmente quem sou. Era importante mostrar este lado mais vulnerável, não há problema nenhum com isso. Durante muito tempo pensei que isto fosse algo mau, mas não podia estar mais enganada. Sinto-me muito mais leve neste álbum em termos pessoais e psicologicamente e queria oferecer isso às pessoas que me ouvem. O videoclip da Islet fala sobre este tema: o libertar de um passado que não sabes para onde vai, nem te interessa, porque o futuro é muito mais interessante do que aquilo que viveste. O presente e o futuro interessam-me muito mais do que o passado.
Acha que esta música pode ser uma inspiração e pode ajudar pessoas que se sintam da mesma forma?
Sim, o videoclip encaixa nesta narrativa de, depois de termos passado por tanta coisa má, existe sempre a oportunidade de encontrarmos um grupo de pessoas que nos quer bem e que não nos vai deixar sozinho, mesmo que demoremos algum tempo a chegar lá. Isto é um processo e, a falar por experiência própria, a sofrer bullying e outros momentos menos bons, deram-me força. Hoje sinto que tenho uma carapaça de tartaruga que me ajuda a proteger em momentos mais negativos.
É quase um processo de música como terapia.
Sim, é isso que quero oferecer às pessoas.
Qual é o significado da palavra Islet?
‘Islet’ quer dizer ilhéu. É uma formação rochosa que é formada por um processo de erosão, onde rochas antigas são levadas para um sítio desconhecido para dar lugar a rochas novas. Esta também a definição da música, levar o nosso passado para um sítio desconhecido para dar lugar a um novo presente.
Além das temáticas que distanciam Alla de Antwerpen, uma grande diferença é a presença de tantos convidados nas músicas, quão importante foi fazer o disco com a colaboração de tantos músicos diferentes?
No início não estava a pensar ter colaborações no disco, mas depois de tanto tempo sozinha e sem trabalhar com outros artistas pensei que podia ser uma ideia interessante. Todos os colaboradores deste disco são pessoas que me aspiraram a um nível pessoal e artístico e já tinha uma grande vontade de colaborar com eles. Foi muito divertido e ajudou a oferecer mais personalidade ao disco porque todos os convidados ofereceram a sua própria essência.
Uma das minhas músicas favoritas do disco é a Tout Les Nuages, com o Cabrita e o Vitor Torpedo, porque mostra uma abordagem mais crua e agressiva do que os seus trabalhos anteriores.
É uma música que exemplifica o espírito do álbum. Não sei muito bem descrever essa música porque tem influências de jazz, rock psicadélico… É isso que me dá motivação, não existir um estilo definido de música e ficarem surpreendidas com todos os elementos inesperados da música. Não acredito em linhas definidas quanto à criação musical. As pessoas podem odiar ou gostar, o que me interessa é que crie impacto. É lógico que algumas músicas não entrem à primeira, nem a mim entraram (risos), mas acho que a piada do disco é essa.
Há pouco falou da música que fez com a Ana Deus e que é cantada em português. Porquê ter uma música em português no meio de todas estas faixas?
Foi algo que me fez sentido. Regravei algumas letras para o disco, mas achei que não estava a ser fiel ao meu trabalho. Mas, no caso da Ana Deus, senti que encaixava bem. Ela até sugeriu fazer apenas fonética, mas queria que ela estivesse a representar aquilo que ela é. A Ana escreveu uma letra muito boa e atual, sobre a fase que a arte está a passar e a sofrer, e aconteceu de uma forma bastante natural.
Ainda nesta composição andrógina do disco e de mistura de estilos, também contou com uma colaboração da Selma Uamusse, uma artista que parece pertencer a um universo completamente distinto.
A Selma é uma grande amiga, temos uma química muito forte e em estúdio isso também se refletiu, parecia que fazíamos música juntas há anos. Já tínhamos o instrumental gravado e não sabíamos o que é que iríamos contar da Selma. Ela gravou mais de cinquenta takes de voz e, desde que me lembro desse dia, fico com arrepios da cabeça aos pés. Ela tem uma voz muito intensa a cappela [só voz, sem acompanhamento]. Até pensámos em esquecer a música e deixar só a sua voz, mas optámos por misturar os nossos estilos. Apesar de sermos de mundos completamente opostos, ligámos completamente bem. É importante entrarmos no mundo uns dos outros. Ela canta em changana, um dialeto de Moçambique, fez-me todo o sentido ter esta voz no álbum. Quero que seja um álbum de todo o mundo.
Outra música que achei fascinante foi a Did I Drop Acid and This Is My Ego Death?, fez-me lembrar algumas composições dos Flaming Lips. Qual foi a inspiração desta música?
Surgiu de um livro de contos que estava a ler do escritor britânico, Saki, e fiquei muito impressionada com essa frase. Achei que fazia todo o sentido com a atmosfera da música porque parece que estou num caldeirão de ácido (risos). Fiz essa música com a Ecstasya e dei-lhe a liberdade para ela acrescentar elementos que fossem típicos dela, não queria que se estivesse a adaptar ao meu registo. O título faz todo o sentido porque estou a colocar o meu ego de parte para dar espaço a outra artista.
Não foi inspirada numa experiência com LSD?
Não, sou muito aborrecida para esse tipo de coisas (risos). Drogas e álcool não são para mim. Isto é mais uma imagem metafórica.
A Surma está aqui para matar a imagem da rockstar?
Não sou nada rockstar. Sou mais o tipo de pessoa que se deita às onze da noite depois de comer chá e bolachas (risos).
Agora com o novo disco lançado, como é que está a pensar apresentá-lo ao vivo?
Está a ser uma experiência complexa. Por enquanto, vou tocar em trio, acompanhada pelo João Hasselberg e o Pedro Melo Alves, porque é muito complicado de tocar ao vivo sozinho, apesar de querer continuar a fazer concertos a solo. Estamos a tentar perceber como é que vamos recriar estas músicas ao vivo porque algumas são muito elaboradas, tem mais de quatrocentas faixas. Mas vai-se fazer.
Vai fazer mudanças no espetáculo ao vivo?
Vai ser o oposto do Antwerpen, vai ter cenografia, vai funcionar em jeito de performance e vou assumir uma personagem ao vivo.
Como é que vai ser a personagem?
É um bocado inspirada no David Bowie, vai ser uma personagem andrógina, mas ainda estou a tentar encontrar o nome para ela. Não sei como vai ser, mas tem de soar a nome de super-herói da Marvel. Quero que seja um escape da minha personagem diária.
É importante ter este escape?
Sim, a parte de palco e de performance é muito intensa. Às vezes saio de palco zonza. É uma descarga de adrenalina muito forte, nem me lembro de metade das coisas que faço. Para mim, é uma hora e dez minutos de terapia. Saio sempre de palco bem comigo.