Uma revisão constitucional para restringir o direito à liberdade?


É pena que a nossa classe política não consiga entender que a tutela da saúde pública não permite aos governos de países democráticos adoptar medidas contrárias aos direitos humanos.


O país viveu durante a pandemia totalmente à margem da Constituição vigente. O Governo criou crimes de desobediência por simples decreto ou por resolução do Conselho de Ministros, quando a matéria é da competência do Parlamento, e as autoridades de saúde, sem qualquer base constitucional, sujeitaram os cidadãos a períodos de confinamento obrigatório, mesmo quando os mesmos não tinham comprovadamente qualquer doença contagiosa. Por isso o Tribunal Constitucional já veio afirmar que dos 32 casos que teve que decidir sobre medidas tomadas durante a pandemia, declarou a inconstitucionalidade em 23, uma média de 72%. Estas decisões de inconstitucionalidade só foram possíveis porque houve Advogados que corajosamente requereram nos tribunais providências de habeas corpus em defesa dos seus constituintes, dado que nenhuma das entidades com competência constitucional para exercer a fiscalização da constitucionalidade destas medidas alguma vez o veio a fazer.

Nos termos do art. 22º da Constituição e da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, o Estado é responsável pelos danos causados aos cidadãos por violação inconstitucional dos seus direitos, liberdades e garantias. Qualquer cidadão que tenha visto os seus direitos, liberdades e garantias violados por estas medidas inconstitucionais tem assim legitimidade para reclamar a competente indemnização pelos prejuízos causados. 

Sucede, porém, que em lugar de ser preparado um relatório sobre a violação dos direitos fundamentais ocorrida durante a pandemia, que naturalmente pudesse garantir que essas situações não se repetissem, o que agora se pretende é fazer uma revisão constitucional para constitucionalizar as gravíssimas violações dos direitos fundamentais ocorridas durante este período. É assim que os projectos do PS e do PSD convergem na proposta de alteração do art. 27.º da Constituição, que regula o direito à liberdade, passando esta norma a prever a possibilidade de as pessoas serem privadas da liberdade em caso de doença ou infecção graves, ou mesmo havendo uma simples suspeita das mesmas. 

O projecto do PS fala eufemisticamente em “separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. Para o PS bastará assim uma suspeita de doença ou infecção grave para que as pessoas sejam “separadas” por simples decisão administrativa, sem tempo determinado, não se sabendo para onde irão esses “separados”, havendo apenas possibilidade de recurso para o tribunal, o que nada garante os seus direitos, pois já existe a providência de habeas corpus.

Já o projecto do PSD é menos eufemístico, mas ainda mais vago, prevendo a consagração na Constituição da “possibilidade de confinamento ou internamento de pessoa infetada com grave doença contagiosa, se necessária por razões de saúde pública, em condições a determinar por lei, necessariamente incluindo a confirmação por autoridade judicial”. Para o PSD, em caso de grave doença contagiosa, fora de qualquer estado de emergência, os cidadãos podem ser privados da sua liberdade, sendo remetida para a lei ordinária as condições em que essa privação ocorrerá. Os cidadãos ficarão assim sujeitos à aprovação de qualquer lei que os poderá privar da sua liberdade a qualquer momento, invocando meras razões sanitárias.

É pena que a nossa classe política não consiga entender que a tutela da saúde pública não permite aos governos de países democráticos adoptar medidas contrárias aos direitos humanos. Se tal fosse permitido, poderíamos chegar ao extremo descrito por José Saramago, no seu romance Ensaio sobre a Cegueira: Um Ministro, invocando que uma quarentena tanto pode durar quarenta dias como quarenta anos, determina a prisão sem limite de tempo de todos os indivíduos afectados por uma cegueira contagiosa, os quais são guardados de longe por soldados, que os abatem a tiro quando se aproximam das paredes do muro da sua prisão. Em Portugal gostaríamos de continuar a ter uma Constituição que nos garanta que esse cenário nunca se verificará.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção 

das regras do acordo ortográfico de 1990

Uma revisão constitucional para restringir o direito à liberdade?


É pena que a nossa classe política não consiga entender que a tutela da saúde pública não permite aos governos de países democráticos adoptar medidas contrárias aos direitos humanos.


O país viveu durante a pandemia totalmente à margem da Constituição vigente. O Governo criou crimes de desobediência por simples decreto ou por resolução do Conselho de Ministros, quando a matéria é da competência do Parlamento, e as autoridades de saúde, sem qualquer base constitucional, sujeitaram os cidadãos a períodos de confinamento obrigatório, mesmo quando os mesmos não tinham comprovadamente qualquer doença contagiosa. Por isso o Tribunal Constitucional já veio afirmar que dos 32 casos que teve que decidir sobre medidas tomadas durante a pandemia, declarou a inconstitucionalidade em 23, uma média de 72%. Estas decisões de inconstitucionalidade só foram possíveis porque houve Advogados que corajosamente requereram nos tribunais providências de habeas corpus em defesa dos seus constituintes, dado que nenhuma das entidades com competência constitucional para exercer a fiscalização da constitucionalidade destas medidas alguma vez o veio a fazer.

Nos termos do art. 22º da Constituição e da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, o Estado é responsável pelos danos causados aos cidadãos por violação inconstitucional dos seus direitos, liberdades e garantias. Qualquer cidadão que tenha visto os seus direitos, liberdades e garantias violados por estas medidas inconstitucionais tem assim legitimidade para reclamar a competente indemnização pelos prejuízos causados. 

Sucede, porém, que em lugar de ser preparado um relatório sobre a violação dos direitos fundamentais ocorrida durante a pandemia, que naturalmente pudesse garantir que essas situações não se repetissem, o que agora se pretende é fazer uma revisão constitucional para constitucionalizar as gravíssimas violações dos direitos fundamentais ocorridas durante este período. É assim que os projectos do PS e do PSD convergem na proposta de alteração do art. 27.º da Constituição, que regula o direito à liberdade, passando esta norma a prever a possibilidade de as pessoas serem privadas da liberdade em caso de doença ou infecção graves, ou mesmo havendo uma simples suspeita das mesmas. 

O projecto do PS fala eufemisticamente em “separação de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial”. Para o PS bastará assim uma suspeita de doença ou infecção grave para que as pessoas sejam “separadas” por simples decisão administrativa, sem tempo determinado, não se sabendo para onde irão esses “separados”, havendo apenas possibilidade de recurso para o tribunal, o que nada garante os seus direitos, pois já existe a providência de habeas corpus.

Já o projecto do PSD é menos eufemístico, mas ainda mais vago, prevendo a consagração na Constituição da “possibilidade de confinamento ou internamento de pessoa infetada com grave doença contagiosa, se necessária por razões de saúde pública, em condições a determinar por lei, necessariamente incluindo a confirmação por autoridade judicial”. Para o PSD, em caso de grave doença contagiosa, fora de qualquer estado de emergência, os cidadãos podem ser privados da sua liberdade, sendo remetida para a lei ordinária as condições em que essa privação ocorrerá. Os cidadãos ficarão assim sujeitos à aprovação de qualquer lei que os poderá privar da sua liberdade a qualquer momento, invocando meras razões sanitárias.

É pena que a nossa classe política não consiga entender que a tutela da saúde pública não permite aos governos de países democráticos adoptar medidas contrárias aos direitos humanos. Se tal fosse permitido, poderíamos chegar ao extremo descrito por José Saramago, no seu romance Ensaio sobre a Cegueira: Um Ministro, invocando que uma quarentena tanto pode durar quarenta dias como quarenta anos, determina a prisão sem limite de tempo de todos os indivíduos afectados por uma cegueira contagiosa, os quais são guardados de longe por soldados, que os abatem a tiro quando se aproximam das paredes do muro da sua prisão. Em Portugal gostaríamos de continuar a ter uma Constituição que nos garanta que esse cenário nunca se verificará.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção 

das regras do acordo ortográfico de 1990