Pintado em 1888, Doze girassóis numa Jarra é uma das obras mais conhecidas de Vicent Van Gogh: foi com este quadro que o mestre pós-impressionista começou a utilizar com mais intensidade os efeitos de cor e de luz que se tornariam a sua marca d’água. Curiosamente, o sucesso póstumo do seu trabalho contrasta com o drama da vida do autor, que sempre viveu à margem da sociedade. Ao longo do seu trajeto, o artista não vendeu mais do que um quadro.
O reconhecimento veio demasiado tarde. E mesmo mais de 130 anos após o seu suicídio em Auvers-sur-Oise, no Sul de França, a fama global de Van Gogh tem o seu reverso. Hoje, se há quem anseie por contemplar as suas obras-primas espalhadas pelo mundo – em particular os famosos Girassóis – também há quem acredite que vandalizá-las pode ser uma boa forma de protesto.
Recentemente, duas ativistas da Just Stop Oil, atiraram sopa de tomate para cima da pintura da National Gallery, em Londres. O objetivo: pôr fim a novos projetos de exploração de petróleo ou gás no Reino Unido. Conhecido por querer que o Governo britânico decrete o fim imediato de qualquer novo projeto de petróleo ou gás, o movimento Just Stop Oil tem chamado atenção precisamente por direcionar as suas ações contra obras de arte em museus.
“O que vale mais, a arte ou a vida? Estão mais preocupados com a proteção de uma obra do que com a do planeta e das pessoas?”, questionaram as ativistas. “Milhões de famílias com fome e frio não podem pagar petróleo, não conseguem sequer aquecer uma lata de sopa”, disseram.
Segundo o The Guardian, a equipa da National Gallery limpou rapidamente a sala. Desde então, a galeria confirmou que a pintura não foi danificada, contando em comunicado que, depois do incidente, a sala foi evacuada e a polícia foi imediatamente chamada. O ato de protesto aconteceu na passada sexta-feira e, de acordo com o museu, apesar da pintura estar intacta, “há pequenos danos na moldura”.
As duas ativistas ambientais foram formalmente acusadas, no sábado, do crime de vandalismo e invasão agravada, tendo sido presentes ao Tribunal de Magistrados de Westminster.
Os milionários atrás das organizações Esta não foi a primeira vez que manifestantes pelo clima recorreram a ações com obras de arte para protestarem. Em julho, estes ativistas colaram-se à moldura de uma cópia de A Última Ceia de Leonardo da Vinci, na Royal Academy of Arts de Londres, e ao quadro The Hay Wain, de John Constable, outro dos pontos altos da National Gallery.
Além disso, também bloquearam pontes e ruas em Londres durante duas semanas de protestos. Três dias antes do “banho de tomate” do quadro de Van Gogh, ativistas do Extinction Rebellion – outro movimento de protesto pelo clima –, invadiram a National Gallery of Victoria, em Melbourne, na Austrália, e colaram as mãos ao Massacre na Coreia, de Pablo Picasso.
De acordo com o jornal britânico, a onda de manifestações ocorre quando o Governo abre uma nova ronda de licenciamento para a exploração de petróleo e gás no Mar do Norte, apesar das críticas de ambientalistas e cientistas, que dizem que a medida “prejudica o compromisso do país com o combate às mudanças climáticas”.
Mas de onde vêm estas pessoas? Como se organizam? Quem os financia? Segundo o El Confidencial, os fundos do grupo Just Stop Oil vêm do Climate Emergency Fund (CEF), organização fundada por americanos ricos, em 2019, em Los Angeles.
Por isso, a organização, embora tenha aberto um canal de doação – possuindo 323 doadores e arrecadando pouco mais de 2.000 libras desde a ação contra a pintura – recebe fundos dessa organização que, segundo o seu site oficial, distribuiu até quatro milhões de dólares entre 39 grupos de ativistas “corajosos e ambiciosos”. O CEF também financiou a Extincton Rebellion e a Insulate Britain.
Os nomes dos fundadores deste fundo e o seu conselho de administração são “impressionantes”, diz o jornal espanhol.
Uma das promotoras é Aileen Getty, que também lançou a Fundação Aileen Getty, em cujo site pode ler-se que uma das suas preocupações é o clima. O apelido está longe de ser desconhecido: ela é filha de John Paul Getty Jr., filantropo e milionário, e neta de John Paul Getty, um dos homens mais ricos de todos os tempos e fundador da Getty Oil Company. O pai de John Paul, George Franklin Getty, foi um dos pioneiros do negócio petroquímico dos EUA.
Ou seja, estamos diante de uma família paradoxal: enquanto o avô montou uma empresa para explorar petróleo, a neta quer fechá-la. A família de Aileen, além do negócio do petróleo, está entre as maiores colecionadoras do mundo da arte. O avô, John Paul, criou o Getty Museum em Los Angeles e, no momento da sua morte, em 1976, doou 661 milhões de dólares para a instituição. Uma coleção que conta com telas de Rubens, Ticiano, Gainsborough, Renoir, Tintoretto, Degas ou Monet, entre outros mestres.
O passado da principal financiadora Segundo o El Mundo, o facto de Aileen Getty ser membro de uma família milionária dedicada ao negócio do petróleo fez com que muitas pessoas apresentassem uma “teoria da conspiração” segundo a qual essa ação ambiental – que enfureceu grande parte da sociedade – pode ser “uma montagem destinada a desacreditar o movimento anti-petróleo”. Evidentemente, não há quaisquer provas que sustentem essa hipótese.
De acordo com o site da CEF, Aileen Getty, de 65 anos, “dedicou a maior parte do seu tempo e recursos para apoiar projetos focados em fornecer soluções urgentes para a emergência climática”. Na página oficial lê-se também que a herdeira “apoiou várias causas, incluindo na habitação – fundou a Gettlove, uma organização sem fins lucrativos criada para identificar, acolher e manter residências para inúmeros sem-abrigo que fazem parte da comunidade de Los Angeles”.
E é ainda membro de várias associações sem fins lucrativos, como a AIDS Research Foundation, e embaixadora da Elizabeth Taylor AIDS Foundation.
Filha de Jean Paul Getty II e da sua primeira esposa, Abigail Harris, Aileen tem quatro irmãos, John Paul, Tara, Mark e Ariadn e a sua infância foi marcada pela presença de drogas em casa e pelo sequestro do seu irmão mais velho em Roma pela máfia calabresa em 1973.
Nessa altura, para resolver o drama, o seu avô só concordou em dar parte do dinheiro do resgate, cobrando juros ao próprio filho para o resto da vida. John Paul foi libertado – sem uma orelha, que os raptores tinham enviado como prova de que o tinham em seu poder –, mas o pesadelo não acabou. Aos 25 anos, o rapaz sofreu um derrame que o deixou debilitado para sempre.
Enquanto tudo isso acontecia, Aileen crescia numa casa que, apesar de bem financeiramente, era desequilibrada. Em algumas entrevistas, a empresária chegou mesmo a revelar que sofreu abuso sexual por parte de um companheiro da sua mãe.
O tempo que passou na Universidade do Sul da Califórnia foi marcado pelo aparecimento da preocupação por causas humanitárias – tornou-se ativa nos protestos contra a Guerra do Vietname, por exemplo –, e por muito sexo e drogas, especialmente cocaína. Segundo a própria, o uso de substâncias tornou-se “uma maneira de fugir e ignorar os traumas que vivera enquanto pequena”.
Depois dos estudos, Aileen teve uma relação com um pianista de jazz e com um cineasta, mas foi com Christopher Wilding Jr., filho da atriz Elizabeth Taylor, que acabou por casar-se em 1981. Tiveram dois filhos, Caleb e Andrew, mas devido ao constante uso de drogas por parte de Getty, acabaram por separar-se sete anos depois. Foi Christopher Wilding Jr. quem acabou por ficar com a guarda dos filhos.
Depois do primeiro casamento, Aileen teve mais dois: um com Scott Padilla e outro com o ator italiano Bartolomeo Ruspoli, de quem atualmente está divorciada. Segundo o El Mundo, atualmente a empresária está limpa de todos os vícios.
Colar as mãos nos vidros Os protestos contra o uso de combustíveis fósseis e de alerta para as alterações climáticas têm-se espalhado um pouco por todo o lado, com as ações da Just Stop Oil a especializarem-se no “ataque” a obras de arte em diversos países do mundo.
Em agosto, dois outros ativistas da afiliada alemã Generation Letzte colaram-se à moldura da Madona Sistina, do artista italiano Rafael Sanzio, na Galeria de Pintura dos Antigos Mestres, em Dresden, Alemanha. Em Itália, dois ativistas da Ultima Generazione – a filial italiana da Extinction Rebellion– atingiram a estátua de Laocoonte, nos Museus do Vaticano. Em julho fizeram o mesmo com o vidro que protege a Primavera de Sandro Botticelli, nos Uffizi, em Florença.
Em declarações aos meios de comunicação, alguns desses ativistas indicaram que não têm nada contra a arte. “É importante para nós valorizar a arte em vez de prejudicá-la, como fazem os nossos governos com o único planeta que temos”, disse um deles. Outros insistiram que são ações “dissidentes e iconoclastas” que são “cuidadosamente planeadas para causar o menor dano possível às obras selecionadas”.
Depois dos atos de vandalismo, o governo do Reino Unido deve apresentar, ainda esta semana, um projeto de lei para ampliar penas para “ativistas que causem algum tipo de distúrbio à população”. A informação foi transmitida pela ministra do interior britânica, Suella Braverman, nas suas redes sociais.
Além disso, na semana passada, a ministra assinou um artigo no jornal britânico Daily Mail em que acusava as manifestantes de serem “bandidas e vândalas” que utilizavam de “táticas de guerrilha”. No texto, anunciou ainda que enviaria um projeto de lei ao Parlamento Britânico que daria mais poderes às autoridades, para que possam barrar protestos que causem perturbação na sociedade.
Além destes, também em Londres, ativistas veganos derramaram litros de leite no chão de supermercados, instando os clientes a comer apenas alimentos à base de plantas e vegetais. No artigo publicado no Daily Mail, a ministra britânica também menciona ativistas que se colam, literalmente, em vias de trânsito: “Um pequeno número de pessoas pode causar engarrafamentos”, afirma, e descreve as ações como “monstruosamente egoístas”.