Todo o dia era dia de índio


A ideia base, claramente explicitada, é a de que o divórcio do ser humano do mundo natural engendra monstros – e monstruosidades


Iniciado em 2012, com o Astronauta, o projeto Graphic MSP consiste na “entrega” de personagens de Maurício de Sousa a autores modernos e fora do seu universo, mantendo, porém, fidelidade à índole de cada figura. Horácio, Jeremias e Penadinho transfigurados já marcaram uma breve presença nestas páginas. Hoje, o protagonista é o Papa-Capim, um indiozinho da Amazónia, criado por Maurício em 1963, a que se juntaram Cafuné, o melhor amigo, e Jurema, por quem o nosso herói se apaixona. O texto é de Marcela Godoy (São Paulo, 1973), ficcionista e argumentista de quadrinhos, e desenhos do também paulista Renato Guedes (1980), com um já longo percurso profissional, nomeadamente nos comics, assinando episódios do Super-Homem e Wolverine. 

Em Papa-Capim – Noite Branca, publicado pela Panini Brasil, em 2016, Godoy, inspirou-se no folclore indígena, a partir das lendas recolhidas pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), nos míticos Tatus Brancos, canibais e cavernícolas que atacariam os bandeirantes, construindo uma história de horror em que uma espécie de zombies empreendem durante a noite incursões nas malocas como aquela em que vive o Papa-Capim, em plena harmonia com a natureza. O mesmo não se verificava com esta tribo agora maldita, desde que, muito tempo havia, um homem desconhecido e fantasmático, chegado a bordo de um barco enorme, como os indígenas nunca haviam visto até aí, demasiado forte e transportando consigo um mal não explicitado desde o princípio dos tempos, mas que vamos sabendo ser o da cupidez e vontade de dominação, se conjuga com o afastamento do mundo natural, tal como era vivido pelos índios. A criatura portadora de todo esse mal é um navegador português (a esquálida caravela com a cruz de Cristo indica-o), que, apoderando-se do corpo do cacique, habita-o e transforma, qual vampiro, os supostamente simpáticos tatus brancos nestas criaturas de pesadelo com quem Papa-Capim terá de se haver.

A ideia base, claramente explicitada, é a de que o divórcio do ser humano do mundo natural engendra monstros – e monstruosidades, acrescento. No entanto, creio que o livro falha rotundamente, se estivermos à espera de uma abordagem mais madura do universo indígena, uma vez que o que aqui está patente é o mito do bom selvagem, estribado numa visão idílica, fantasiosa e até infantil do período pré-colonial no continente americano. A guerra com o seu propósito de dominação do outro e a violência mais bárbara, incluindo a escravização, eram realidades que não foram trazidas pelo pérfido homem europeu. Não pretendo com isto sustentar a estultícia de que a conquista e a colonização não foram trágicas – obviamente que o foram; mas infantilismo por infantilismo é preferível o do Maurício, por mais verdadeiro. Não é este o local para ensaiar sobre o problema índio, mas registe-se que ele não se resolve com sentimentos pios ou pensamento mágico, e muito menos com o paternalismo de quem os vê de fora e pretende que estejam numa bolha, como que encerrados em parque natural. Como diria alguém, noutro contexto, a emancipação dos índios será obra dos próprios índios, mas isso são outras cavalarias, que não as de um leitor de BD.

Com esta crónica, dou por encerrada a minha colaboração, agradecendo a paciência dos leitores e o acolhimento da direção, num espaço de liberdade que este jornal é. A manchete da última sexta-feira, porém, e a forma como alguns artistas que muito admiro foram tratados pela sua participação na Festa do Avante!, obriga-me a tomar esta atitude, de solidariedade e protesto.

Todo o dia era dia de índio


A ideia base, claramente explicitada, é a de que o divórcio do ser humano do mundo natural engendra monstros – e monstruosidades


Iniciado em 2012, com o Astronauta, o projeto Graphic MSP consiste na “entrega” de personagens de Maurício de Sousa a autores modernos e fora do seu universo, mantendo, porém, fidelidade à índole de cada figura. Horácio, Jeremias e Penadinho transfigurados já marcaram uma breve presença nestas páginas. Hoje, o protagonista é o Papa-Capim, um indiozinho da Amazónia, criado por Maurício em 1963, a que se juntaram Cafuné, o melhor amigo, e Jurema, por quem o nosso herói se apaixona. O texto é de Marcela Godoy (São Paulo, 1973), ficcionista e argumentista de quadrinhos, e desenhos do também paulista Renato Guedes (1980), com um já longo percurso profissional, nomeadamente nos comics, assinando episódios do Super-Homem e Wolverine. 

Em Papa-Capim – Noite Branca, publicado pela Panini Brasil, em 2016, Godoy, inspirou-se no folclore indígena, a partir das lendas recolhidas pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), nos míticos Tatus Brancos, canibais e cavernícolas que atacariam os bandeirantes, construindo uma história de horror em que uma espécie de zombies empreendem durante a noite incursões nas malocas como aquela em que vive o Papa-Capim, em plena harmonia com a natureza. O mesmo não se verificava com esta tribo agora maldita, desde que, muito tempo havia, um homem desconhecido e fantasmático, chegado a bordo de um barco enorme, como os indígenas nunca haviam visto até aí, demasiado forte e transportando consigo um mal não explicitado desde o princípio dos tempos, mas que vamos sabendo ser o da cupidez e vontade de dominação, se conjuga com o afastamento do mundo natural, tal como era vivido pelos índios. A criatura portadora de todo esse mal é um navegador português (a esquálida caravela com a cruz de Cristo indica-o), que, apoderando-se do corpo do cacique, habita-o e transforma, qual vampiro, os supostamente simpáticos tatus brancos nestas criaturas de pesadelo com quem Papa-Capim terá de se haver.

A ideia base, claramente explicitada, é a de que o divórcio do ser humano do mundo natural engendra monstros – e monstruosidades, acrescento. No entanto, creio que o livro falha rotundamente, se estivermos à espera de uma abordagem mais madura do universo indígena, uma vez que o que aqui está patente é o mito do bom selvagem, estribado numa visão idílica, fantasiosa e até infantil do período pré-colonial no continente americano. A guerra com o seu propósito de dominação do outro e a violência mais bárbara, incluindo a escravização, eram realidades que não foram trazidas pelo pérfido homem europeu. Não pretendo com isto sustentar a estultícia de que a conquista e a colonização não foram trágicas – obviamente que o foram; mas infantilismo por infantilismo é preferível o do Maurício, por mais verdadeiro. Não é este o local para ensaiar sobre o problema índio, mas registe-se que ele não se resolve com sentimentos pios ou pensamento mágico, e muito menos com o paternalismo de quem os vê de fora e pretende que estejam numa bolha, como que encerrados em parque natural. Como diria alguém, noutro contexto, a emancipação dos índios será obra dos próprios índios, mas isso são outras cavalarias, que não as de um leitor de BD.

Com esta crónica, dou por encerrada a minha colaboração, agradecendo a paciência dos leitores e o acolhimento da direção, num espaço de liberdade que este jornal é. A manchete da última sexta-feira, porém, e a forma como alguns artistas que muito admiro foram tratados pela sua participação na Festa do Avante!, obriga-me a tomar esta atitude, de solidariedade e protesto.