Há precisamente cem anos, Lisboa estava embrulhada numa tranquibérnia tremenda e o Diário de Lisboa saiu para a rua impresso em letra de máquina de escrever porque não houve capacidade para recorrer ao chumbo. Na verdade, o país estava mergulhado no caos, uma situação que ganhou o nome de fim do Pão Político. Resuma-se o estado das coisas, tal como se pode ler numa banal consulta a um livro de História: “Pela lei n.º 1294 terminou o regime do Pão Político, tomando-se medidas no sentido do regresso ao proteccionismo face aos produtores nacionais de trigo (31 de Julho). A agitação popular contra os novos tipos de pão foi imediata, com assaltos a padarias. Houve mobilização dos sindicatos em Lisboa. A CGT lançou apelo no sentido da defesa de um tipo único de pão. Durante dez dias houve escaramuças, com alguns mortos. Os tumultos ocorreram em Lisboa, Barreiro, Portalegre, Santarém, Évora, Faro, Olhão, Coimbra e Porto (5 de Agosto). Proclamou-se greve geral em Lisboa, para defesa de um tipo único de pão. Um operário foi morto (7 de Agosto). A polícia encerrou as instalações do sindicato dos metalúrgicos, da CGT e da USOL. Rebentamento de vários petardos. Suspensa a circulação do jornal A Batalha. Decretada a suspensão das garantias (8 de Agosto). O Governo acabou por ceder aos sindicalistas na questão do Pão Político (15 de Agosto). O Presidente do Ministério promete rever o regime cerealífero, nomeadamente garantindo um novo tipo de pão de terceira. Mas as greves continuam com assaltos a padarias durante o mês de Agosto”.
Feito o apanhado dos acontecimentos, vamos ao episódio que obrigou o Diário de Lisboa a chegar às mãos dos seus leitores como se fosse uma folha de couve, com três das suas oito páginas ilustradas com cartoons políticos, mais três de publicidade. O editorial ocupava a maior parte da página principal e tinha, como manchete: “Confusão”. Uma palavra que, nesse dia em particular, andava de boca em boca por entre a baralhada população lisboeta. O desenho que o acompanhava era da autoria de_Almada Negreiros. Com legenda:_“Dois tipos diversos que são, afinal, um tipo único”. De pão e de homens…
A confusão
“Há muito tempo, graças ao enfraquecimento do princípio da autoridade, que a luta entre o indivíduo e o Estado vem atingindo, entre nós, proporções jamais vistas. Cada qual se imagina em condições de se armar contra a lei, como se esta fôsse o interesse de uma classe em prejuízo das outras. Tanto se pregou a indisciplina que, hoje, as multidões se julgam no direito de fazer da rua o seu parlamento e o seu pretório”, avançava o editorial. Depois, o discurso ia endurecendo: “Quando os imbecis tomam posse da cidade e do seu governo, não há garantias sequer para o bom-senso! Todos os erros encontram defensores”.
A justificação
Se espreitarmos a coluna da esquerda encontramos nela a explicação do diretor para o facto de, apesar de obrigado a ser escrito em letra vulgar de máquina, o Diário de Lisboa teimar em sair para a rua fazendo frente ao estado a que a situação tinha atingido: “O Diário de Lisboa, publicando-se desta maneira, como recurso, não pretende forçar o destino que cai sobre as gazetas – que são o esforço literário mais sacrificado de Portugal”. E aqui chegados, o redator está pronto a sublinhar que cem anos decorridos a frase está atual como nunca tendo em conta a terrível espada de Dâmocles que se suspende sobre o jornalismo em papel que tanta falta faz para a manutenção das ideias de liberdade, independência e democracia. Volta a palavra do diretor: “Pretendemos cumprir o nosso dever e manter o contacto com o nosso público. Durante o dia, a cidade vivendo a sua normalidade cantante assemelha-se a uma pessoa fazendo a sua caminhada estrada fora, desconfiada mas alegre. À noite vem o decreto sombrio de recolha às 9 horas e os cidadãos à roda da mesa de jantar fazem o comentário aos acontecimentos com a mesma alegria descuidosa que nunca abandona os que não têm remorsos”. E, depois, mais adiante, já com um toque inequívoco de aflição: “Hoje de manhã ainda rebentaram bombas. O estrondo ecoa sobre a cidade que pergunta: ‘Onde teria sido?’ Os inocentes que ficam feridos interrogam-se: ‘Que mal fiz eu?’ Um homem velho, que nós conhecemos, disse: ‘Penso que a justiça está na razão inversa do barulho’. O Diário de Lisboa, jornal respeitador de todos os credos e aspirações, essencialmente ordeiro e compreendendo as responsabilidades que cabem à imprensa, não entende muito bem que se restabeleça a censura”._Não. Eis algo que ninguém pode entender muito bem, nem hoje nem há cem anos.