Uma BD intervalar

Uma BD intervalar


As épocas de transição, as zonas de fronteira, os grandes impasses históricos e sociais, o que está a deixar de ser sem que se anteveja uma configuração nítida, são períodos que exercem sempre interesse, quando não fascínio.


As épocas de transição, as zonas de fronteira, os grandes impasses históricos e sociais, o que está a deixar de ser sem que se anteveja uma configuração nítida, são períodos que exercem sempre interesse, quando não fascínio. É por isso que a Alta Idade Média é muito mais apelativa nas suas zonas de sombra, na tentativa secular que durará séculos de sair do caos que os bárbaros infligiram ao Império Romano, que um século XV refinado de civilização, prestes a entrar no Renascimento. 

“Chamo-me Marquez, Nevada Marquez. / Às vezes perguntam-me o que faço na vida. É complicado responder. Encontro pessoas desaparecidas, entrego coisas. Meto actores no caminho certo, na Yellow Brick Road que leva ao mundo mágico de Oz… / Ou seja, Hollywood! / E sabem que mais? Nunca me falta trabalho. Se vos contasse a vida das estrelas do grande ecrã, as ligas da decência mandavam logo fechar essa Babilónia! Mas não o vou fazer… Não é nada convosco.” É neste tom deliciosamente pulp e até anacrónico (“grande ecrã”, quando não havia pequeno, ou seja, a televisão – faz parte do encanto), que somos confrontados com um novo herói de BD, criado em 2021 por Fred Duval (Rouen, 1965), Jean-Pierre Pécau (Paris, 1955) e o neo-zelandês Colin Wilson (Christchurch, 1949), este mais conhecido do público português pelo trabalho desenvolvido em A Juventude de Blueberry, tendo igualmente assinado um Tex, num já longo percurso. O Oeste não lhe é estranho, mesmo se se trata de um Oeste, digamos, impuro… 

Nevada, em edição nacional pela chancela A seita, é pois, um western intervalar. Estamos no pós-Grande Guerra, e Hollywood desponta como Meca do cinema, enquanto os arredores continuam no século XIX, tirando um ou outro pormenor, entre os quais a ocorrência de veículos motorizados. Observar o protagonista entrar de Harley-Davidson numa qualquer rua principal poeirenta, onde antes chegavam caravanas para abastecer ou dois pistoleiros se enfrentaram num duelo ao sol, tem um ar estranhamente steampunk. Mas não se trata disso; as cidades são as mesmas e os habitantes também. Os índios, melancólicos; os mexicanos, sonolentos; actores e actrizes, estúpidos e viciosos; pregadores de Bíblia numa mão e um colt na outra. Realismo, portanto. A história de Nevada Marquez apenas se deixa entrever neste álbum inicial. Tiro certeiro, punhos temíveis, adivinha-se mulheres e cadáveres deixados pelo caminho, e um pundonor evangélico no cumprimento das missões, dão-nos a garantia de uma boa, ainda que diferente coboiada, e leitura para qualquer época do ano, devendo ainda salientar-se o tom justo da colorização de Jean-Paul Fernandez, um artista experimentado, tanto no trabalho com Philippe Druillet nos estúdios da Disney, que acrescenta bastante ao todo.