Como seres humanos não podemos ficar de modo algum indiferentes perante a morte e o sofrimento do povo ucraniano, sendo necessário todo o auxílio humanitário. Importa sublinhar a responsabilidade primeira da Rússia na decisão da invasão da Ucrânia – aliás errada e contraproducente mesmo face à militarização da NATO a leste. Porém, importa também indagar causas próximas e remotas deste conflito político-militar no quadro geoestratégico da competição entre potências.
Em 2014 o Presidente eleito da Ucrânia Yakunovich é ilegalmente derrubado por um movimento pseudorrevolucionário apoiado pelo então vice-presidente Joe Biden e liderado por um grupo de extrema-direita na Praça Maïdan – tudo isto no quadro da estratégia expansionista dos EUA/NATO a leste, à revelia de um acordo verbal de não expansão em 1990 entre Gorbatchev e Bush e do próprio entendimento diplomático de Kissinger e Kennan de uma Ucrânia neutral. Os EUA, seus governos ora republicanos ora democratas, seus serviços de inteligência (CIA, Pentágono) e think tanks como a Rand Corporation e o Atlantic Council, além de dezenas de intervenções e apoios a golpes de Estado na América Latina, na Ásia, na Europa e no Médio Oriente, à revelia do Direito Internacional e da própria ONU, têm planeado e desencadeado guerras por procuração em sucessivas arenas regionais.
Se a invasão militar russa apresenta contornos de uma estratégia nacionalista e imperial do Kremlin, de Putin e seus oligarcas, seria ingénuo não considerar as estratégias do imperialismo norte-americano e seus interesses económico-industriais-petrolíferos, militares e imobiliários-financeiros, nomeadamente dos plutocratas das multinacionais, provocando, no quadro da operação Defender a Europa 1921, a Rússia na escalada e utilizando a Ucrânia para o efeito e apoiando os interesses dos oligarcas ucranianos, com suas milícias neonazis (Batalhão Azov, Dnipro2, Shaktarsk, Poltava), integradas desde 2014 no exército e na Guarda Nacional.
Discursos maniqueístas entre os ‘bons’, ‘civilizados’, ‘’liberais-democratas’ no Ocidente e os ‘maus’, ‘bárbaros’ ou autocratas-oligarcas no Oriente, no Médio Oriente ou nas regiões eslavas do leste nomeadamente na Rússia não colhem e, neste caso, reproduzem amiúde velhos preconceitos russófobos misturados com um paradoxal anti-comunismo ‘primário’ perante um regime russo capitalista, autoritário e avesso a qualquer ideia de socialismo e/ou comunismo.
Para obter a desejada paz será preciso mobilizar as pessoas, pressionar as potências imperiais e imperialistas a negociar pela via diplomática o conflito e pugnar pelo cessar-fogo pela Rússia e pelo desarmamento por parte EUA/UE/NATO, esta aliás desnecessária desde a dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991. Hoje o imperialismo norte-americano, não estando interessado em negociar a paz mas em alimentar uma eventual guerra de guerrilhas na Ucrânia, visa romper a relação comercial dos países europeus sobretudo da Alemanha em relação à Rússia no que concerne a importação do gás pela Nord Stream II e demais energias fósseis, minerais e cereais russos. O falso aceno dos EUA à Ucrânia para se integrar na NATO foi de facto a ‘isca’ para o despoletar da guerra e, assim, torpedear e/ou neutralizar qualquer aproximação da Alemanha e da Europa à Rússia sob o lema ‘dividir para reinar’. Os líderes da Grã Bretanha e da UE têm-se comportado como vassalos subalternos, sem estratégia própria, disponibilizando os ‘seus’ países como sucursais de dispositivos militares da NATO, fazendo declaração seguidista pró-EUA no rearmamento da Ucrânia e sanções contra a Rússia sem a percepção dos efeitos de ricochete sobre empresas e consumidores sobretudo os mais pobres (crise energética, inflação). Mais grave ainda é o facto de partidos ‘sociais-democratas’, ‘socialistas’ e outros ditos de esquerda subscreverem uma resolução no Parlamento europeu a apoiar a entrada da UE no carro de guerra. A UE prepara-se para aumentar orçamento militar em prejuízo de políticas sociais e alinha incondicionalmente com os EUA e suas ‘dores’ perante o seu declínio e uma nova ordem mundial multipolar, com ascensão de potências intermédias (Rússia, Índia) e a sobreposição da nova superpotência mundial hegemónica – a China.
Sociólogo, professor universitário