Dona de casa é responsável pelo maior embuste de sempre na Wikipédia

Dona de casa é responsável pelo maior embuste de sempre na Wikipédia


Ao longo de mais de uma década, uma dona de casa arquitectou um vastíssimo enredo com centenas de artigos falsos relatando na Wikipédia chinesa uma elaborada ficção envolvendo a vida na Rússia Medieval tardia.


A partir de um certo ponto, a nossa ignorância em relação ao passado acaba por fazer deste algo como um território nebuloso e tão expansivo ou mais que o futuro, sobretudo quando este parece ameaçado. A partir de um certo ponto, os manuais de História podem ser lidos como ficção. E pode imaginar-se, num futuro não tão distante como isso, que o trabalho dos historiadores seja desacreditado a favor de narradores melífluos que saibam urdir os factos mais convenientes de modo a que a atenção, sendo cada vez mais frágil, não se perca entre a articulação dos eventos e a moral ao serviço de um estreito entendimento das coisas. Afinal, que peso se pode atribuir a um desses factos reputados como verídicos? Não pode uma invenção pesar mais na nossa consciência?

A história que temos para contar parece-se muito com tantas das narrativas de Borges, e isto a um ponto tal que mais parece um plágio, mas com a vantagem de extravasar dos limites da imaginação e se exercer com essa disciplina que faz da vida uma conspiração atraindo-nos pela capacidade de nos comover perante uma devoção que, parecendo resultar de um capricho, se prolonga pelos anos até adquirir esse revelo das coisas que, de tão improváveis, se parecem mais com a realidade. Vamos falar de um pastiche barroco e muito sofisticado a partir das hipóteses lançadas pela obra de Borges, de tal modo que, às tantas, parece que fomos enredados num desses relatos em que a paródia paranoica prova a sua astúcia e competência, servindo-se dos procedimentos rigorosos e solenes, usando materiais culturais e históricos para fazer transparecer a qualidade delirante que há nas intrigas que estão por trás das nossas crenças mais profundas.

No centro deste relato temos uma mulher nascida na China e conhecida por “Zhemao” que, ao longo de mais de uma década, através de uma série de entradas, em larga medida ficcionais, na versão chinesa da Wikipédia, arquitectou um vastíssimo enredo, exasperando e levando ao limite essa apropriação de pontas soltas na narrativa histórica para produzir um relato fantasioso da vida na Rússia Medieval tardia. Na série de vinhetas que escreveu compareciam figuras políticas inventadas, toda uma indústria de extracção de prata e grandes batalhas pelo seu domínio, as quais nunca tiveram lugar. Zhemao foi ao ponto de fornecer descrições detalhadas de elementos como a moeda em circulação, aspectos sobre o vestuário ou os utensílios que carregam de verosimilhança as histórias, numa forma de insistência habilidosa nos detalhes para tornar o relato mais credível, o mesmo processo pelo qual Borges produziu uma série de relatos bastante impressivos a partir de estruturas artificiais, as quais estão, hoje, no centro da narrativa contemporânea. E este que é com toda a probabilidade o mais genial embuste da história da Wikipédia, acabou enfim por ser desmontado por Yifan, um autor de literatura fantástica chinês, que tinha o hábito de percorrer a Wikipédia como um salteador em busca de inspiração para um novo romance. Foi então que se deparou com uma entrada relativa à imensa mina de prata de Kashin, a qual tinha começado a ser explorada pelo principado de Tver, um estado independente que persistiu entre os séculos XIII e XV, vindo a tornar-se um dos mais poderosos e ricos, estendendo-se como uma cidade industrial moderna que contava com cerca de 30 mil escravos 10 mil trabalhadores livres.

A assombrosa riqueza que se extraiu da mina fez dos príncipes de Tver uma das dinastias mais influentes da região, o que não deixaria de atrair a atenção da aristocracia de Moscovo, que se empenhou em fundar uma série de campanhas que obrigaram o principado a investir num exército para travar uma série de guerras para proteger o domínio da mina. Por fim, Tver acabaria por cair, e a exploração da mina prosseguiu, com os seus recursos a aumentarem a riqueza do Grão-ducado de Moscovo e o regime que lhe sucedeu, isto até à exaustão dos recursos e subsequente encerramento, já no século XVIII. Yifan ainda esteve entretido por um largo período descendo às profundidades da toca do coelho, investigando tudo o que se relacionava com a mina de Kashin e as guerras entre o principado e os duques de Moscovo, lendo sobre as sucessivas batalhas e as personalidades da aristocracia e até o papel específico de alguns engenheiros entre outros elementos da trama envolvendo a mina entretanto caída no esquecimento. O percurso através desse vasto labirinto estava semeado por centenas de artigos ligados entre si e que traziam luz sobre aquele obscuro período da história eslava, o qual adoptava o tom clínico e o registo de condensação típico da literatura de divulgação e usado pelos enciclopedistas. Mas Yifan não era um mero curioso, mas procurava desenterrar algum elemento que lhe servisse de inspiração e, às tantas, começou a dar-se conta de alguma coisa não batia certo. As versões dos artigos em língua russa relativos àquele período eram bem menos desenvolvidas do que as chinesas, ou, nalguns casos, simplesmente não existiam. E depois havia erros de palmatória, como uma nota de rodapé que oferecia contexto para uma das passagens sobre os métodos de exploração usados na mina, sendo que esta referência provinha de um artigo académico relativo a regimes de automatização usados no século XXI. Não demoraria muito para que Yifan se apercebesse de que tudo o que envolvia a tal mina de prata não passava de um elaborado logro. Como revela a reportagem da revista Sixth Tone, ele relatou as suas descobertas num fórum online, e não demoraria muito até que a Wikipédia encetasse a sua própria investigação de modo a perceber como é que aquele enredo se tinha aguentado e desenvolvido sem ser detectado e denunciado pela comunidade. O que descobriu é que o autor deste enredo havia criado quatro contas falsas e fora disseminando e articulando uma série de entradas sobre a Dinastia Qing e a história russa desde 2010. Cada uma dessas contas, reforçava a credibilidade das outras, e ao longo de um período de um pouco mais de uma década, o autor escreveu milhões de palavras, criando um total de 206 artigos e contribuindo em centenas de outros que existiam já, para assim entretecer essa excêntrica ficção envolvendo a mina de Kashin, acrescentando detalhes bastante imaginativos sobre as batalhas e aspectos da vida económica do principado de Tver, sempre com o cuidado de esvaziar a narrativa do género de componentes dramáticos e de ênfases que contrastam excessivamente com o tom bastante aborrecido daquela enciclopédia. Não demoraria muito para que começassem a referir-se ao autor deste embuste como o Borges chinês, mas foi o nome de uma das quatro contas falsas que pegou, e passou a ser referido como “Zhemao”. Se esse perfil se destacou entre os outros três, entretanto apagados pela Wikipédia, juntamente com os artigos da sua lavra, talvez tenha sido por se tratar daquele que se mostrava mais revelador sobre a biografia da mulher que tinha fabricado essa engenhosa teia misturando factos e ficção. O perfil referia que se tratava da filha de um diplomata chinês que integrava o consulado russo, sendo formada em História russa e que adquiriu a cidadania após casar-se com um russo. Esta mulher começou a sua carreira enquanto ficcionista da Wikipédia chinesa, em 2010, criando artigos que vinham dar espessura a uma série de rumores envolvendo Heshen, um oficial da Dinastia Qing que obteve os favores do imperador Qianlong e ficou para a história como a personificação de todos os vícios em termos de corrupção e imoralidade associados às elites degeneradas. Zhemao foi-se deixando instigar pelo processo, e, a partir de 2012, ter-se-á aproveitado dos seus estudos, e começou a editar artigos sobre o Czar Alexandre I da Rússia, e gradualmente começou a colorir nos contornos e para lá deles, começando a tecer a sua teia e a criar relevos cada vez mais significativos inventando uma série de histórias, servindo-se uma rivalidade real entre dois estados eslavos como base para o seu enredo e testando a tese de Borges de que, não havendo uma memória própria nem recordações verdadeiras, à medida que se engrossam as narrativas sobre o passado, este se transforma numa matéria incerta e impessoal, em muitos aspectos indistinguível da própria ficção.

Depois de ter sido exposta, Zhemao publicou um pedido de desculpas na sua conta da Wikipédia em inglês, insistindo que a sua verdadeira motivação foi levar mais longe os conhecimentosque tinha sobre História, e que os seus excessos não podem ser tidos como um plano malévolo, mas que foram apenas os devaneios de uma dona de casa que não tem mais que o ensino médio e que passa a maior parte do seu tempo a aborrecer-se com os afazeres domésticos. Nesta carta, Zhemao esclarece que a maioria das entradas falsas foram como uma engenharia a que se viu forçada pela própria coerência da narrativa que iniciara nas primeiras entradas que editou e que deixaram uma série de lacunas a pedir resolução. “Como diz o ditado, para se contar bem uma mentira, aquele que lhe deu origem não demora a perceber que esta exige a companhia de outras que a sustentem. Uma vez que senti relutância em apagar centenas de milhares de palavras que já havia escrito, acabei por ceder ao artifício que eu própria criara, e acabei por escrever milhões de palavras e, entretanto, um círculo de relações que criei com base nesta suposta erudição colapsou.”

Não é difícil entender os motivos que levaram esta mulher encerrada na lide doméstica a procurar um regime de valorização da sua capacidade de articular factos, e estando confinada a uma existência em comum com as tantas bovarinhas de que vamos ouvindo falar, chega a ser comovente que, faltando-lhe mais estudos, se tenha inclinado sobre a imaginação para continuar a participar no processo de relatar histórias “verídicas”, que são essas que se organizam segundo essa sintaxe das coisas que tomamos por reais e são lidas já com uma espécie de pátina e geram no leitor o tipo de credulidade que só os grandes ficcionistas, através de um sem número de artifícios, estão em condições de provocar. Afinal, a literatura não pretende senão fazer-nos acreditar em algo que de partida sabemos ser uma mentira. Como já alguém o disse, trata-se do ofício de chegar à verdade por meio de mentiras. “Sei que os problemas que causei tornam difícil que possa encontrar uma forma de me redimir, e aceito que uma expulsão permanente possa ser o castigo mais ajustado. Uma vez que o conhecimento que tenho das coisas não é tão profundo que me permita ganhar a vida pelos meus meios, imagino que, no futuro, venha a dedicar-me a algum ofício de artesão, de modo a que me possa dedicar agora de forma honesta em vez de estar envolvida em relações nebulosas como as que até aqui me ocuparam.”

A construção desse manto nebuloso que no mesmo sentido em que assenta na realidade também lhe cobre os contornos, torna-os mais fantasmáticos, menos concretos, como se os mastigasse para que neles penetrasse o sonho. É justa a comparação entre Zhemao e Borges,, sendo que os relatos deste último giram muitas vezes em torno da incerteza das recordações pessoais, de vidas perdidas, de experiências artificiais. A chave deste universo não é a amnésia ou o olvido, mas a manipulação da memória e da identidade. Que outra coisa poderá ser mais ajustado a um Estado quase barbaramente entregue ao artificialismo da retórica de propaganda, com o alardear de valores que de todo não pertencem ao quadro da experiência humana, mas nos fala de um ser construído a partir de ilusões, absurdamente manipulado, regendo por uma moral de fábula, num regime que infantiliza toda uma comunidade e um povo. Num certo sentido, o discurso oficial do Kremlin forma uma narrativa que é própria de uma imensa máquina paranoica e ficcional, e, deste modo, há algo de provocatoriamente poético numa espécie de romance que se entretece na trama daquilo que damos como a memória através dos tempos, a relação dos acontecimentos que se deram no passado, a História. Mas se são cada vez maiores as dúvidas sobre a verdadeira natureza desses relatos, se o Estado é a origem de uma produção de falsificações e a própria política se dirige à fragilidade e ao inconsciente, podemos entender como tudo isso não passa da trama de um sonho enlouquecido em que está imersa a civilização. À medida que são postas em causa as grandes narrativas históricas, o próprio olhar e a perspectiva que escolhe enfatizar certos factos e olvidar outros, leva-nos a esta sensação de nos termos extraviado numa rede que nos devolve sempre a um mesmo centro cuja arquitectura parece cada vez mais malévola. Segundo Ricardo Piglia, o que resulta claro na leitura de um conto de Borges como “A lotaria na Babilónia”, é que este entende a um função do Estado como um aparato de vigilância, e a inteligência ou o sistema de informações do Estado trabalha de modo a inventar e construir uma memória incerta e uma experiência impessoal, a qual permite aos decisores políticos manipular a percepção pública em relação a um dado acontecimento. De acordo com Piglia, “a cultura de massas (o melhor seria dizer a política de massas) foi encarada de forma muito clara por Borges como uma máquina de produzir recordações falsas e experiências impessoais. Todos sentem o mesmo e recordam o mesmo, e o que sentem e recordam não é o que viveram.”

Talvez passando por cima da História, talvez reforçando a leitura que questiona todos os aspectos daquilo que lê, uma leitura que assume uma postura crítica, possa relembrar-nos dessa necessidade de se construir uma experiência íntima das relações que estão para lá dessa interpretação do facto histórico que permite opor heróis a vilões, e definir um bem comum, que não passa de uma estrutura narrativa condicionada pelos interesses de uma elite. Assim, no entender de Piglia, “a prática arcaica e solitária da literatura é uma resposta (seria talvez melhor falar em universo paralelo) que Borges ergue para servir de contrapeso ao horror do real. A literatura reproduz as formas e os dilemas desse mundo estereotipado, mas segundo outro registo, noutra dimensão, como num sonho.” No seu livro “Formas Breves”, Piglia vinca ainda que a leitura é a arte de construir uma memória pessoal a partir de experiências e recordações de outros, sendo que as cenas que lemos nos livros permanecem em nós com o mesmo encanto que lembranças íntimas. “A tradição literária tem a estrutura de um sonho no qual se recebem as recordações de um poeta morto”, defende Piglia, remetendo-nos para aquele conto de Borges que, dada a perfeição do seu final, ele elege como o seu último, e que se chama “A Memória de Shakespeare”.