Quando o Covid era a lei


“Tant bien que mal temos aprendido a viver com o Covid. Mais difícil tem sido o convívio com a epidemia legislativa homónima”.


Os malefícios do Covid longo que atacou o legislador têm, felizmente, merecido activa vigilância democrática por parte da Provedora de Justiça. Na semana passada, e por ela rogado, o Tribunal Constitucional deu o seu contributo para erradicar alguma má legislação. De caminho fez prova de saudável diversidade  doutrinal, distanciando-se das previsões dos habitués em matéria de alinhamento do voto dos diversos juízes, e fazendo-nos felizes por Washington ter passado a estar tão longe da rua de O Século.

Invocando a pandemia foram estabelecidas restrições a determinados direitos fundamentais, nuns dias por acto legislativo parlamentar, noutros por legislação governamental quase sempre carente de habilitação parlamentar no segmento dos direitos, liberdades e garantias e, nas muitas darkest hours, por regulamentos governamentais. Os vícios formais das normas produzidas ao abrigo de uma desconhecida habilitação pandémica (a modos de necessitas non habet constitutionem…) têm vindo a ser denunciados e corajosamente julgados como inconstitucionais pelos tribunais de primeira instância.

Já o conteúdo das normas admonitio morbi começa agora a ser objecto de escrutínio judicial. Com a generalização das restrições às actividades económicas o legislador parlamentar encontrou terreno fértil junto de um Governo minoritário. Na semana passada o TC declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do nº 5 do artigo 168º-A da Lei 2/2020, de 31 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redacção que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de Julho, que aprovou o OE Suplementar: “Nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de Dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns.” Em 2020 a generosidade do legislador, praticada à custa dos proprietários das lojas, pouco atentou na realidade, desde logo na relativa normalidade do funcionamento daquelas lojas que foram autorizadas a permanecer abertas ou na proporcionalidade que deveria existir entre a diminuição da renda e uma eventual redução das vendas.

Volvidos menos de 5 meses o artigo 439.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2021) aditou à Lei n.º 4-C/2020, de 6 de Abril, o respectivo artigo 8.º-D, em cujo n.º 1 se estatuiu que “a remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas de estabelecimentos abertos ao público inseridos em centros comerciais é reduzida proporcionalmente à redução da faturação mensal, até ao limite de 50% do valor daquela, quando tais estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos últimos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, ou de período inferior, se aplicável.”

O TC, com alguma criatividade, aplicou ao ano de 2020 o parâmetro legislativo para 2021, reduzindo alguma da desproporcionalidade de que enfermava a restrição do direito de propriedade.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Quando o Covid era a lei


“Tant bien que mal temos aprendido a viver com o Covid. Mais difícil tem sido o convívio com a epidemia legislativa homónima".


Os malefícios do Covid longo que atacou o legislador têm, felizmente, merecido activa vigilância democrática por parte da Provedora de Justiça. Na semana passada, e por ela rogado, o Tribunal Constitucional deu o seu contributo para erradicar alguma má legislação. De caminho fez prova de saudável diversidade  doutrinal, distanciando-se das previsões dos habitués em matéria de alinhamento do voto dos diversos juízes, e fazendo-nos felizes por Washington ter passado a estar tão longe da rua de O Século.

Invocando a pandemia foram estabelecidas restrições a determinados direitos fundamentais, nuns dias por acto legislativo parlamentar, noutros por legislação governamental quase sempre carente de habilitação parlamentar no segmento dos direitos, liberdades e garantias e, nas muitas darkest hours, por regulamentos governamentais. Os vícios formais das normas produzidas ao abrigo de uma desconhecida habilitação pandémica (a modos de necessitas non habet constitutionem…) têm vindo a ser denunciados e corajosamente julgados como inconstitucionais pelos tribunais de primeira instância.

Já o conteúdo das normas admonitio morbi começa agora a ser objecto de escrutínio judicial. Com a generalização das restrições às actividades económicas o legislador parlamentar encontrou terreno fértil junto de um Governo minoritário. Na semana passada o TC declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do nº 5 do artigo 168º-A da Lei 2/2020, de 31 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2020, na redacção que lhe foi dada pela Lei 27-A/2020, de 24 de Julho, que aprovou o OE Suplementar: “Nos casos em que sejam aplicáveis formas específicas de contratos de exploração de imóveis para comércio e serviços em centros comerciais, não são devidos quaisquer valores a título de rendas mínimas, até 31 de Dezembro de 2020, sendo apenas devido aos proprietários dos centros comerciais o pagamento da componente variável da renda, calculada sobre as vendas realizadas pelo lojista, mantendo-se ainda a responsabilidade, da parte dos lojistas, pelo pagamento de todas as despesas contratualmente acordadas, designadamente as referentes a despesas e encargos comuns.” Em 2020 a generosidade do legislador, praticada à custa dos proprietários das lojas, pouco atentou na realidade, desde logo na relativa normalidade do funcionamento daquelas lojas que foram autorizadas a permanecer abertas ou na proporcionalidade que deveria existir entre a diminuição da renda e uma eventual redução das vendas.

Volvidos menos de 5 meses o artigo 439.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2021) aditou à Lei n.º 4-C/2020, de 6 de Abril, o respectivo artigo 8.º-D, em cujo n.º 1 se estatuiu que “a remuneração mensal fixa ou mínima devida pelos lojistas de estabelecimentos abertos ao público inseridos em centros comerciais é reduzida proporcionalmente à redução da faturação mensal, até ao limite de 50% do valor daquela, quando tais estabelecimentos tenham uma quebra do volume de vendas mensal, face ao volume de vendas do mês homólogo do ano de 2019 ou, na sua falta, ao volume médio de vendas dos últimos seis meses antecedentes ao Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, ou de período inferior, se aplicável.”

O TC, com alguma criatividade, aplicou ao ano de 2020 o parâmetro legislativo para 2021, reduzindo alguma da desproporcionalidade de que enfermava a restrição do direito de propriedade.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990