Luzes da Ribalta. 70 anos do filme mais sombrio de Charlie Chaplin

Luzes da Ribalta. 70 anos do filme mais sombrio de Charlie Chaplin


O universo da sétima arte comemora o septuagésimo aniversário de Luzes da Ribalta, um dos filmes mais celebrados de Chaplin. Conta a história de um comediante abandonado pelo sucesso e pelo público que se entrega à bebida. Segundo o biógrafo do ator e cineasta, inspira-se num romance de 1948, o único escrito pelo cineasta, e incorpora episódios…


Os seus filmes, que marcaram a era do cinema mudo, combinaram de forma exímia a crítica social, a genialidade dos desempenhos, a criação exímia das personagens. E depois, claro, há a imagem de marca: o bigode, a cartola e a bengala que tantas gargalhadas arrancaram a todos aqueles que acompanharam o seu trabalho.

Um dos pontos altos da longa carreira de Charlie Chaplin, Luzes da Ribalta, lançado em 1952, comemora este ano o seu septuagésimo aniversário. Inspira-se no único romance que o cineasta escreveu ao longo da sua carreira – Footlights –, e que funciona como um prelúdio para o filme em questão. Apesar de ter sido escrita em 1948, a obra só foi publicada em 2014, depois de estar mais de 60 anos esquecida entre os arquivos do cineasta – o livro foi resgatado pela Cineteca di Bologna e contou com a ajuda do biógrafo do The Guardian, David Robinson. Além disso, o filme destaca-se na carreira de Chaplin por ter sido o último antes da sua deportação dos EUA no início dos anos 50 por causa da implacável perseguição de Edgar Hoover, então diretor do FBI, por considerá-lo simpatizante comunista. De acordo com o biógrafo, Chaplin foi um “grande alvo” de Hoover, chegando ao ponto de “uma grande parte da classe média dos EUA se ter voltado contra ele”: “A situação causou uma grande comoção por ele ter sido o homem mais amado do mundo durante 30 anos”, acrescentou Robinson.

Filme vs Livro O enredo centra-se na história de Calvero, um palhaço já velho que tem problemas com álcool, mas que ganha motivação após salvar uma bailarina do suicídio, interpretada pela atriz Claire Bloom. O livro, por sua vez, conta a história de um comediante que percebe que está a perder o seu público. Em ambos os trabalhos o protagonista é o mesmo, apesar das suas motivações serem diferentes. Além disso, tanto no livro como no filme, o cenário onde decorrem os acontecimentos é a cidade de Londres. “Eu sei que sou engraçado, mas os agentes acham que o meu tempo passou. Deus! Seria fantástico conseguir que engolissem as suas palavras. Isso é o que mais odeio em envelhecer, o desprezo e a indiferença que te mostram. Pensam que não sirvo… É por isso que seria maravilhoso voltar… Quero dizer que seria sensacional, conseguir que morressem de rir…”, diz Calvero numa das passagens mais emblemáticas do livro.

Chaplin disse que baseou o personagem em personalidades de palco da vida real que viu perderem os seus dons e o seu público – o comediante americano Frank Tinney (1878-1940) e o palhaço espanhol Marceline (1873-1927) com quem ele próprio trabalhou em criança. Contudo, claramente também se inspirou na sua própria vida. Por alturas da publicação, uma das diretoras dos arquivos Chaplin em Bolonha, Cecilia Cenciarelli, reforçou ao jornal britânico que o romance conta a história de um comediante que perdeu o contacto com o seu público, que tem pesadelos e está “desencantado com a sua carreira”. Por isso, explicou, trata-se de um livro que nos mostra “um lado mais sombrio e triste de Chaplin”, uma obra em que discute a respeito da forma como os artistas são ou não descartáveis na sociedade. Além disso, Robinson contou que o livro não foi escrito com a intenção de ser publicado, mas era algo “muito pessoal para Chaplin”. De acordo com o biógrafo, o romance mostra a linguagem de um homem que se viu obrigado a ser autodidata em muitos campos, já que crescera num bairro pobre de Londres, e que, por isso, andava sempre com um dicionário. “Assim que aprendia uma palavra que gostava, começava a usá-la, mesmo que se não fosse a correta para a situação. No entanto, escreve de maneira incrível! Com os seus filmes, ele trabalhava e trabalhava até que saíssem bem, o mesmo aconteceu com esse livro. É estranho, mas bom!”, admitiu Robinson.

Já na película Luzes da Ribalta, Charlie Chaplin é um velho comediante, que no passado fizera bastante sucesso, mas o seu esquecimento leva-o a entregar-se à bebida. Porém, tudo muda quando, numa tarde, ao voltar para a pensão onde vive, sente um estranho cheiro a gás vindo de um dos outros quartos. Ao arrombar uma das portas, Carvero encontra uma jovem, Thereza Ambrose, inconsciente. Chama um médico e ambos acabam por levá-la até o quarto do comediante. Ao despertar, pergunta-lhe a razão pela qual esta tentou o suicídio. Theresa explica-lhe que sempre sonhou ser uma grande bailarina, mas que as suas pernas estão paralisadas. Calvero promete fazer de tudo para ajudá-la, mas o que não imagina é que, em pouco tempo, será ela a ajudá-lo.

Segundo Robinson, esta história radica no momento, em 1916, em que Chaplin conheceu a dançarina russa Vaslav Nijinsky, que “o impressionou muitíssimo”. E, ao que parece, não só Calvero salvou Thereza, como Chaplin salvou a atriz que deu vida à personagem, Claire Bloom. A artista, atualmente com 91 anos, admitiu recentemente ao jornal espanhol El Mundo que “deve tudo ao cineasta”. “Ele sempre se comportou como um colega! Eu tinha 20 anos e ele 63, mas nunca me fez sentir que eu era uma ‘jovem atriz no mundo do cinema’. Aceitou-me, dirigiu-me, ajudou-me e foi tremendamente gentil”, revelou. Graças a esse seu papel, a jovem apareceu na capa da Time. “Fiquei realmente atordoada, sem palavras, não esperava! Encheu-me de orgulho. Foi algo totalmente inesperado e milagroso!”, admitiu em 2018 ao jornal espanhol, aquando das gravações de Miss Dalí, e Ventura Pons, na Costa Brava.

Segundo o biógrafo, “o que torna estas biografias tão notáveis é que podemos traçar nelas uma grande quantidade de autobiografias extensas, já que Chaplin introduz abertamente episódios da sua própria vida e de seus pais”. Assim como o próprio pai de Chaplin, Calvero fica arrasado quando descobre a infidelidade da sua esposa e cai no alcoolismo. No romance, Calvero até morre no mesmo hospital – St Thomas’, nas margens do Tamisa – onde morreu Charles Chaplin Sénior em 1901, com apenas 37 anos. Já a bailarina foi igualmente baseada na mãe de Chaplin, Hannah, “embora com reminiscências também do primeiro e nunca esquecido amor de Chaplin, Hetty Kelly”. “Claire Bloom, que interpreta Terry, lembrou que ao ensaiar para ele, que este lembrava sempre os gestos da sua mãe ou Hetty, e as roupas que usavam”, revela Robinson.

De Shakespeare a Woody Allen Claire Blume (só mais tarde viria a alterar o nome para Bloom) nasceu em 1931, em Londres. Aos 13 anos, incentivada pelos pais, começou a frequentar aulas de Expressão Dramática na Central School of Speech and Drama. E, logo em 1946, acabou por ser convidada para colaborar em programas radiofónicos da BBC, altura em que também se estreou nos palcos de teatro londrinos. Um ano depois, participava no festival shakespeariano em Stratford-Upon-Avon, dando vida a Ofélia, em Hamlet, um trabalho que lhe valeu inúmeras críticas favoráveis.

A sua estreia na sétima arte deu-se com um pequeno papel no filme The Blind Goddess, em 1948. Contudo, o seu nome começou a estar no centro do panorama teatral britânico. Prova disso foi o convite feito por Charles Chaplin, que ficou impressionado com a sua prestação nos palcos da Old Vic e a desafiou a interpretar o papel principal em Luzes da Ribalta. Apesar do filme não ter tido distribuição imediata nos EUA, foi um sucesso na Europa. E, a partir desse momento, Bloom começou a ser convidada a integrar o elenco de grandes produções, tais como Ricardo III, em 1955, de Laurence Olivier, Alexandre, o Grande, em 1956 e Os Irmãos Karamazov, em 1958, de Richard Brook. Além disso, também fez televisão, onde participou em séries de sucesso como Reviver o Passado em Brideshead, em 1981 e Queenie, seis anos depois. O auge da sua carreira aconteceu quando trabalhou com Woody Allen, em Crimes e Escapadelas, de 1989 e Poderosa Afrodite, em 1995.