Toda a gente se lembra do slogan adotado pelo Governo para divulgar as medidas de resposta à crise pandémica: “estamos on, não paramos”. Durante um curto e criativo período essa parece ter sido a intenção anunciada na aprovação de programas e apoios sociais e económicos para acudir aos setores mais atingidos pela crise.
Se em algumas dessas urgências, como no combate à pobreza ou na proteção do mundo da cultura, as respostas públicas foram imediatamente classificadas como tardias, lentas e insuficientes, em relação a outro tipo de anúncios foi preciso deixar a poeira assentar para perceber que país resultou das promessas redentoras e das proclamadas lições da pandemia.
A perspetiva sobre a resposta do país à crise começou a mudar logo no início de 2021, quando o Banco Central Europeu reconheceu que Portugal era o terceiro país da zona euro que menos gastava no combate à crise. Três meses depois, no retrato tirado pelo FMI em abril, Portugal caiu da posição 23 para a posição 29 e, outros três meses passados, para o 32.º lugar no grupo 47 países analisados.
(Faço aqui um parênteses para lembrar que na sequência de outro tipo de crise, uma com culpados mais evidentes, Portugal foi o país da Europa que mais apoiou os bancos).
Não se pode dizer que o país tenha feito tudo o que estava ao seu alcance. Muitos dos programas orçamentais previstos para fazer face à crise ficaram por executar, outros pura e simplesmente acabaram, não porque as pessoas tivessem deixado de precisar deles, mas porque a sua natureza “extraordinária” foi insensível à crise que a guerra e a inflação tornaram permanente.
Um bom exemplo, mais uma vez, é o dos trabalhadores da cultura. Durante quase dois anos perderam quase tudo. O Governo respondeu-lhes com um apoio extraordinário, pontual e de miséria, insistindo que a estes trabalhadores se deve pagar pela bitola do IAS e não do Salário Mínimo. Já era tarde quando reconheceu a necessidade de um programa universal a fundo perdido, a que chamou Garantir Cultura. Ainda assim, não dotou as entidades competentes de recursos suficientes para analisar as candidaturas, atrapalhou-se em todo o processo e não conseguiu (ou não quis) evitar atrasos no pagamento.
Dir-se-á que a recuperação económica evitou males maiores. Mas isso é para quem não lhe conhece o amplo substrato de precariedade e de baixos salários generalizados, alguns deles – como os dos trabalhadores das plataformas digitais – agravados pela pandemia.
O que é estranho é que, em julho de 2021, o Primeiro Ministro António Costa dizia perceber esta realidade e prometia “apertar a malha” às empresas de trabalho temporário e às plataformas plataformas digitais. Falava em "formas chocantes de esconder verdadeiras e próprias relações de trabalho, através da informalidade, intermitência, rotatividade, atividades supostamente independentes ou mesmo empresariais". Contava, para isso, com a futura concertação social sobre na Agenda para o Trabalho Digno, para “nomeadamente, pôr cobro a muitas situações de abuso e corrigir os mecanismos que permitem perpetuar situações de precariedade inaceitável".
Duas notícias de ontem desmentem António Costa: a de que o Governo recuou na proposta sobre os trabalhadores das plataformas digitais e noutras medidas favoráveis da Agenda para o Trabalho Digno, contrariando inclusivamente o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho; e a de que a Segurança Social deu orientações para cortar administrativamente o apoio alimentar a pelo menos 10 mil pessoas.
Com a inflação a pressionar os salários e as reformas, os rendimentos tornam-se ainda mais curtos para sustentar as vidas de quem deles depende, quanto mais para sustentar os rumos do desenvolvimento do país. Há quem afirme que a estagnação económica será o resultado mais certo desta compressão salarial e da crónica falta de investimento público, mas nem isso parece ser um problema para António Costa.
Dos serviços públicos aos salários, tudo em Portugal grita a necessidade de outra estratégia económica que não conduza ao estrangulamento orçamental e ao empobrecimento. A arrogância com que a maioria absoluta do Partido Socialista ignora estes apelos certifica-lhe o caminho liberal, mas não é difícil de ver que esse é um caminho perigoso, basta olhar para a Europa.