Tem estudado o impacto ambiental dos serviços da saúde. Já tinha essa consciência quando estava no hospital? Acha que a maioria da população tem?
Tinha de algumas coisas que todos vemos quando trabalhamos nos hospitais, mas foi algo a que acabei por me dedicar quando me reformei. Acho que a maioria da população não tem mas os profissionais de saúde têm vindo a ficar mais conscientes. Houve há cerca de um mês o Congresso Português de Cardiologia e vários médicos responsáveis de serviço vieram falar comigo a dizer que de facto é preciso mudar de cultura e de hábitos. Há várias dimensões quando se aborda esta problemática que implicam uma mudança de organização e de comportamentos e há coisas que acabam por ser muito contra intuitivas mesmo na vida das instituições. Costumo dar um exemplo: os resíduos tipo I e II são colocados em sacos pretos e os resíduos tipo III, perigosos, vão para sacos brancos. Quem determinou isto não percebe que o preto é ligado à morte e o branco ligado à vida.
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Um dos despachos que defende que deve ser alterado é precisamente o diploma de 1996 que determina os diferentes tipos de resíduos.
Sim. Sabemos que cerca de 40% dos resíduos hospitalares são provenientes dos blocos operatórios. Atualmente temos uma lei da pré-história, que considera que tudo o que sai de um bloco operatório são resíduos perigosos, mesmo quando estamos a falar de papel e têxteis que nunca estiverem em contacto com doentes. É uma quantidade enorme de material que, cumprindo a lei, não pode ser reciclado ou reaproveitado e tem de ir para incineração. E a recolha tem de ser feita por operadores especiais, que cobram 80 cêntimos por quilo aos hospitais. Pelo que além de ser um crime em termos ambientais, provoca um enorme prejuízo aos hospitais.
Refere-se a que tipo de material?
Os têxteis que envolvem as caixas de material, por exemplo, que são necessárias numa intervenção cirúrgica. Entra tudo embalado no bloco operatório. Há papel mais limpo numa sala operatória do que cá fora. Já houve tentativa de alterar este despacho, a Direção Geral da Saúde tinha um projeto feito, mas entretanto nada mudou.
Estive recentemente num hospital e chamou-me a atenção que a enfermeira, quando precisou de uma tina, acabou por abrir um kit só para tirar o recipiente. O resto vai para o lixo?
Esse é um dos problemas que contribui para um enorme desperdício, os kits pré-acondicionados. São uma forma das instituições fazerem compras por atacado, mas que acabam por levar a um enorme desperdício.
Outra coisa de que não fala muito é dos alimentos. Vemos por exemplo que os tabuleiros são iguais para adultos e para crianças. Por exemplo, o pão que não se come e já esteve no quarto do doente vai para o lixo?
O que sabemos de algumas análises que têm sido feitas lá fora é que 12% dos alimentos servidos nos hospitais são desperdiçados, por vários motivos. Provavelmente irá. O que defendo é que deveria ser possível separar os alimentos que foram tocados daqueles que continuam embalados e, esses, doá-los a instituições sociais. Mas no geral, estima-se que cada cama hospitalar produza cinco a seis quilos de lixo.
No fundo o esforço que se tem tentado fazer fora dos hospitais. Para o impacto que tem o setor da saúde em termos de consumos e pegada ambiental, acaba por estar desfasado do movimento que tem sido feito “cá fora”?
Estamos completamente desfasados e, em Portugal particularmente, completamente desfasados do que se faz nos países mais evoluídos. O caso do reprocessamento de dispositivos de uso único é mais um exemplo. Existe uma experiência de 20 anos em vários países. Na Alemanha, 28 hospitais universitários já fazem reprocessamento de dispositivos de uso único. E há um aspeto curioso: a definição sobre se são de uso único, ou não, é dada pelos fabricantes originais e não pelos reguladores. Cheguei a ver, não sei se hoje ainda é assim, catálogos em que o mesmo produto era de uso único num sítio e não era noutro. O Hospital de São João foi pioneiro, havia resultados – só num dispositivo uma poupança de 500 mil euros em cinco anos – e há um ano que está tudo mais uma vez parado por orientação do Infarmed.
Trabalha com uma empresa de reprocessamento. Costuma referi-lo como conflito de interesses. Ouviu críticas por isso?
Tentei que em Portugal houvesse pessoas que se interessassem por isto. Devo dizer que falei com os grandes nomes das grandes fortunas e inovações. Foram muito simpáticos mas ninguém avançou. Resolvi que a única forma era ser eu a avançar. Fiz uma nano-empresa, porque sabia que quem fazia com qualidade o reprocessamento era uma empresa alemã chamada Vanguard. Não sou representante deles, sou influencer, não faço negócios com os hospitais. Agora declaro-o sempre. Tenho um conflito de interesses com muito orgulho, porque estou a fazer uma coisa boa. E fi-lo porque em Portugal, após contactos sem fim, ninguém o quis fazer e achei que era obrigatório isto começar a acontecer. Sei que em Portugal ainda se é acusado levianamente mas isso é a mentalidade de um país atrasado.
Estima que, só em reprocessamento, os hospitais pudessem poupar anualmente 60 milhões de euros. Em que tipo de dispositivos?
Dispositivos de uso único usados por exemplo em cirurgia, como tesouras ou mesmo cateteres, devidamente recondicionados.
Há uns tempos o prof. José Fragata contava que quando fazem um transplante de coração e tiram um desfibrilhador, às vezes colocado há pouco tempo, são 35 mil euros para o lixo.
E é verdade mas ainda não estamos a falar de reutilizar dispositivos implantáveis. Penso que caminharemos nesse sentido, mas estamos a falar neste momento de dispositivos que podem ser perfeitamente reutilizados como já são em muitos países.
Não é só lavar no entanto.
Não, têm de ser remanufaturados de forma certificada e esterilizados. Isto pode ser feito nos hospitais ou contratado a empresas de reprocessamento.
Há bloqueios das indústrias originais?
Nos EUA, as indústrias originais, que se mostraram resistentes, já estão elas próprias a adquirir empresas de reprocessamento. Foi por exemplo o caso da Johnson & Johnson. Os mesmos que diziam que era só para usar uma vez já começaram a vender quer originais quer reprocessados. Claro que isto mexe em muitos interesses.
Denunciou recentemente que, em Portugal, estas atividades estão paradas há um ano desde que entrou em vigor o regulamento de dispositivos médicos. Encontra explicação?
Prefiro não comentar. É de tal forma incompreensível que cada um tire as suas conclusões.
Não há por exemplo receios com questões como as infeções hospitalares?
Nunca foi essa a questão. A experiência mundial, de há mais de 20 anos, e a do Hospital de S João desde há 10 anos demonstra que esse risco não existe.
Acha que esta batalha pode vir a ser um legado seu maior do que foi fazer o primeiro transplante cardíaco em 1986, no Hospital de Santa Cruz?
Tenho a certeza que esta é uma marca muito maior. Sinto que o que estou a fazer agora é similar, em termos de mudança e integração social, ao que aconteceu na altura. Quando fiz o transplante cardíaco, era quase proibido falar de transplantação em Portugal. Um colega seu tinha escrito um livro, premiado, chamado O Escândalo dos Transplantes. Insinuava que só se faziam transplantes por interesses financeiros e que só se tiravam órgãos, naquele caso rins, por interesse. Insinuava mesmo que, em alguns casos, se tiravam órgãos quando as pessoas ainda estavam vivas. Na altura não havia uma definição clara de morte cerebral, não havia mecanismos que permitissem a que quem não quisesse que lhe extraíssem órgãos pudesse declará-lo.
Não existia o Registo Nacional de Não Dadores.
A única forma seria as pessoas terem uma declaração assinada no bolso, mas colhiam-se órgãos de jovens e as pessoas não iam para discotecas com declarações. Não haveria progresso médico em Portugal sem a Fundação Calouste Gulbenkian e na altura lembro-me de ir falar com o Dr. Reimão Pinto [Diretor do Serviço de Saúde e Proteção Social da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1963 e 1995] a dizer-lhe que era fundamental mudar a lei, porque tínhamos de avançar com paz social. Ele disse-me: “Fica proibido de começar a falar em leis. Se o fizer, não se faz o transplante de coração e os transplantes renais irão parar. Voltamos para trás. Façam o transplante de coração e mudamos a lei depois”. Tenho a certeza que estes temas de que estamos a falar vão acontecer, mais cedo ou mais tarde. São tão corretas, tão óbvias, já feitas nos países mais avançados, que cá terá de acontecer. E por isso digo que é mais importante para o meu país esta minha causa do que o transplante do coração, que mais tarde ou mais cedo seria feito. O Santa Marta também estava a avançar. É claro que foi um passo grande para a medicina portuguesa, mas este tem mais consequências.
De onde sente que vem a inércia?
Não sei se é falta de atenção ou conhecimento. Há vários anos que falo com todos os responsáveis. As pessoas são todas muito simpáticas, mas tirando algumas exceções, nada acontece.