O terrorismo global e a permanente celebração da guerra


O terrorismo de inspiração alegadamente religiosa está longe de ser o único flagelo a que as sociedades actuais estão sujeitas, havendo outras de cunho puramente criminoso ou de natureza política, afectando uma infinidade de países.


RESUMO

Em pleno período pandémico, e contrariamente ao optimismo de muitos analistas, a actividade de grupos violentos, em lugar de abrandar, foi largamente incrementada. Com efeito, ao longo do ano de 2020, a sua nefasta acção registou um aumento de 52 por cento, materializada em 2.350 ataques e um saldo de 9.748 mortes, em 39 países. Já em 2021, num relatório da responsabilidade do Counter Extremism Project[i] é revelado que, apesar do controlo exercido pelas diferentes plataformas – Instagram, Facebook ou YouTube -, o DAESH, a Al Qaeda e grupos de extrema-direita, neonazis e supremacistas brancos, numa irónica sinergia, continuaram a recorrer à Internet para difusão de propaganda, recrutamento e apelos permanentes ao cometimento de actos terroristas, numa cabal demonstração da enorme utilidade que estas plataformas representam para a sua maléfica presença. A recente invasão da Ucrânia, por parte das forças militares russas, a par de outros conflitos regionais, veio demonstrar o quão oportunos são para a propagação da sinistra retórica do extremismo violento.

 

ANÁLISE

Com a invasão da Ucrânia por parte das forças militares da Rússia, iniciada no passado dia 24 de Fevereiro, e num crescente clima de instabilidade em plena Europa, o flagelo terrorista, incluindo o de Estado, dá sinais da sua presença protagonizada pelas organizações jihadistas salafistas, em perfeita sintonia com grupos extremistas de múltipla inspiração. As guerras e a permanente agressão à população civil proliferam no plano global, seja na Síria, no Iraque, no Iémen, no Mali, na República Centro-Africana, em Moçambique, no Afeganistão ou nos continentes asiático e americano. De acordo com as projecções tornadas públicas pela Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos da América, no ano em curso[ii], e os números já o prenunciam, o continente africano continuará a ser palco de algumas das batalhas mais sangrentas do mundo entre diversos Estados e jihadistas salafistas, sobretudo grupos afiliados do DAESH e da Al Qaeda, cujas acções aumentaram logo após o derrube do autodenominado Estado Islâmico [DAESH], no Iraque e na Síria, em 2017, num benefício claro das fracas governações, acentuando claramente a instabilidade há muito sentida em África, no Médio Oriente e na Ásia. Disso é exemplo a tomada do poder no Afeganistão pelos Talibãs, que abriram espaço à recriação de santuários para grupos e organizações terroristas, pondo seriamente em causa a segurança não só a nível regional como, igualmente, à escala planetária. De resto, a militância islamista em África deixou de constituir uma novidade em quase todo o continente, seja na região do Sahel, seja no Burkina Faso, na Nigéria, com os insurgentes do Boko Haram, ou mais a oriente, onde subsiste a ameaça do sangrento grupo Al-Shabaab, organização com ligações à Al Qaeda, ou ainda a sul, em Cabo Delgado, território de Moçambique, onde marcam presença grupos afiliados do DAESH. Na verdade, apesar das derrotas da Al Qaeda, em 2001, e do autoproclamado Estado Islâmico (EI), em 2017, o terrorismo jihadista nunca deixou de existir, tanto no Médio Oriente como no resto do mundo, onde os terroristas de inspiração alegadamente religiosa continuam a sua sangrenta caminhada, causando profundas feridas em toda a sociedade. Certo é que, cinco anos após a sua queda, o EI mantém bem acesa a sua presença no território sírio, onde no passado mês de Abril realizaram seis ataques confirmados nas províncias de Homs, Deir Ez Zor e Hama. Já durante o mês do Ramadão, agora terminado, a mesma organização reivindicou 11 ataques sem precedentes no sul da Síria, aparentemente como “vingança” pela morte dos anteriores líderes da Organização – Abu Bakr al-Baghdadi e Abu Ibrahim al-Hashimi al-Quraishi –[iii].

Na Europa, onde o terrorismo jihadista continua a ser considerado como a maior ameaça para a sua população, no ano de 2020, e de acordo com o relatório da Europol[iv], três Estados-membros da União Europeia (UE) – Áustria, França e Alemanha – sofreram 10 ataques jihadistas, havendo a lamentar a morte de 12 pessoas e ferimentos em mais de 47. No Reino Unido, foram materializados três atentados. A Suíça sofreu dois ataques com motivações jihadistas. O relatório revelou, ainda, que entre 2017 e 2020, foram perpetrados 30 ataques, tendo falhado 17, e sido evitados 45, por acção das Forças e Serviços de Segurança. Todos estes ataques foram levados a cabo pelos chamados lobos solitários, essencialmente através de esfaqueamento ou atropelamento.

Porém, o terrorismo de inspiração alegadamente religiosa está longe de ser o único flagelo a que as sociedades actuais estão sujeitas, havendo outras de cunho puramente criminoso ou de natureza política, afectando uma infinidade de países. Recorrendo ao já citado relatório da Europol, em 2020, três Estados-membros da UE, registaram quatro incidentes motivados pelo extremismo de direita. Um desses ataques foi cometido na Alemanha com recurso a armas de fogo, resultando na morte de 9 pessoas. Neste mesmo ano, 34 indivíduos foram detidos em oito Estados-membros da UE, por suspeitas de envolvimento em actividades terroristas de extrema-direita, motivadas por ideais racistas ou xenófobos. Na sua maioria, estes indivíduos estão ligados a comunidades on-line violentas transnacionais com diferentes níveis de organização, e com base em ideologias que promovem uma visão de ataques desencadeados por pequenos grupos ou mesmo por actores solitários. A Internet tem sido, e continuará a ser, a principal ferramenta ou meio para que estes extremistas violentos promovam e divulguem a sua acção criminosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O terrorismo continua a ser uma ameaça persistente para a sociedade mundial. Quer actuando a nível individual ou integrados em pequenas células, e inspirados por uma variedade de ideologias e motivações pessoais, incluindo o extremismo violento sunita ou o extremismo de motivação racial ou étnica, estes actores representam uma real ameaça à segurança dos cidadãos de todo o mundo. As insurreições locais, por seu turno, reforçaram as suas credenciais promovendo a plena assimilação de organizações como o DAESH ou a Al Qaeda, o que se tem traduzido no fortalecimento das suas acções, no aumento do número de ataques, dos seus efeitos destruidores e em influência territorial.

Da sua parte, o extremismo violento, de diferentes motivações ideológicas, incluindo a da supremacia branca, do neonazismo ou outras teorias de conspiração racial constituirá, igualmente, uma ameaça à estabilidade social global, agravada pelas movimentações de grandes massas populacionais, em fuga, com destino à Europa, ocorridas no decurso dos últimos anos. O Grande Médio Oriente, com particular destaque para a Síria e para o Afeganistão, continuará a ser uma região caracterizada por conflitos persistentes, com insurreições activas e profundas crises humanitárias. Enquanto isso, o fundamentalismo, seja ele de que natureza for, celebra com entusiasmo o conflito e as destruidoras consequências da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O DAESH vê como seus inimigos os países beligerantes [integrantes de diferentes coligações anti-DAESH], mostrando-se distante de qualquer das partes envolvidas. Isso mesmo é referido pelo EI num editorial da publicação Al Naba, do passado mês de Março, que considera a invasão russa “um castigo divino” numa guerra de “cruzados contra cruzados”, que terá “grandes consequências” para o Ocidente, “inimigos do Islão”, independentemente do resultado do conflito[v]. Esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia será, pois, mais uma oportunidade para as principais organizações jihadistas salafistas se afirmarem tanto nos domínios da propaganda como da acção terrorista.

Lisboa, 5 de Maio de 2022

João Henriques

Investigador Associado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris

 


[ii] OFFICE OF THE DIRECTOR OF NATIONAL INTELLIGENCE. 2022. Annual Threat Assessment of the U.S. Intelligence Community. Disponível em: https://www.dni.gov/index.php/newsroom/reports-publications/reports-publications-2022/item/2279-2022-annual-threat-assessment-of-the-u-s-intelligence-community

[iii] COUNTER EXTREMISM PROJECT, ISIS Redux: The Central Syria Insurgency in April 2022, Disponível em: https://www.counterextremism.com/blog/isis-redux-central-syria-insurgency-april-2022

[iv] EUROPOL. European Union Terrorism Situation and Trend report 2021 (TESAT). Disponível em: https://www.europol.europa.eu/publications-events/main-reports/european-union-terrorism-situation-and-trend-report-2021-tesat

[v] ARAB NEWS, 9 de Março de 2022.

 

O terrorismo global e a permanente celebração da guerra


O terrorismo de inspiração alegadamente religiosa está longe de ser o único flagelo a que as sociedades actuais estão sujeitas, havendo outras de cunho puramente criminoso ou de natureza política, afectando uma infinidade de países.


RESUMO

Em pleno período pandémico, e contrariamente ao optimismo de muitos analistas, a actividade de grupos violentos, em lugar de abrandar, foi largamente incrementada. Com efeito, ao longo do ano de 2020, a sua nefasta acção registou um aumento de 52 por cento, materializada em 2.350 ataques e um saldo de 9.748 mortes, em 39 países. Já em 2021, num relatório da responsabilidade do Counter Extremism Project[i] é revelado que, apesar do controlo exercido pelas diferentes plataformas – Instagram, Facebook ou YouTube -, o DAESH, a Al Qaeda e grupos de extrema-direita, neonazis e supremacistas brancos, numa irónica sinergia, continuaram a recorrer à Internet para difusão de propaganda, recrutamento e apelos permanentes ao cometimento de actos terroristas, numa cabal demonstração da enorme utilidade que estas plataformas representam para a sua maléfica presença. A recente invasão da Ucrânia, por parte das forças militares russas, a par de outros conflitos regionais, veio demonstrar o quão oportunos são para a propagação da sinistra retórica do extremismo violento.

 

ANÁLISE

Com a invasão da Ucrânia por parte das forças militares da Rússia, iniciada no passado dia 24 de Fevereiro, e num crescente clima de instabilidade em plena Europa, o flagelo terrorista, incluindo o de Estado, dá sinais da sua presença protagonizada pelas organizações jihadistas salafistas, em perfeita sintonia com grupos extremistas de múltipla inspiração. As guerras e a permanente agressão à população civil proliferam no plano global, seja na Síria, no Iraque, no Iémen, no Mali, na República Centro-Africana, em Moçambique, no Afeganistão ou nos continentes asiático e americano. De acordo com as projecções tornadas públicas pela Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos da América, no ano em curso[ii], e os números já o prenunciam, o continente africano continuará a ser palco de algumas das batalhas mais sangrentas do mundo entre diversos Estados e jihadistas salafistas, sobretudo grupos afiliados do DAESH e da Al Qaeda, cujas acções aumentaram logo após o derrube do autodenominado Estado Islâmico [DAESH], no Iraque e na Síria, em 2017, num benefício claro das fracas governações, acentuando claramente a instabilidade há muito sentida em África, no Médio Oriente e na Ásia. Disso é exemplo a tomada do poder no Afeganistão pelos Talibãs, que abriram espaço à recriação de santuários para grupos e organizações terroristas, pondo seriamente em causa a segurança não só a nível regional como, igualmente, à escala planetária. De resto, a militância islamista em África deixou de constituir uma novidade em quase todo o continente, seja na região do Sahel, seja no Burkina Faso, na Nigéria, com os insurgentes do Boko Haram, ou mais a oriente, onde subsiste a ameaça do sangrento grupo Al-Shabaab, organização com ligações à Al Qaeda, ou ainda a sul, em Cabo Delgado, território de Moçambique, onde marcam presença grupos afiliados do DAESH. Na verdade, apesar das derrotas da Al Qaeda, em 2001, e do autoproclamado Estado Islâmico (EI), em 2017, o terrorismo jihadista nunca deixou de existir, tanto no Médio Oriente como no resto do mundo, onde os terroristas de inspiração alegadamente religiosa continuam a sua sangrenta caminhada, causando profundas feridas em toda a sociedade. Certo é que, cinco anos após a sua queda, o EI mantém bem acesa a sua presença no território sírio, onde no passado mês de Abril realizaram seis ataques confirmados nas províncias de Homs, Deir Ez Zor e Hama. Já durante o mês do Ramadão, agora terminado, a mesma organização reivindicou 11 ataques sem precedentes no sul da Síria, aparentemente como “vingança” pela morte dos anteriores líderes da Organização – Abu Bakr al-Baghdadi e Abu Ibrahim al-Hashimi al-Quraishi –[iii].

Na Europa, onde o terrorismo jihadista continua a ser considerado como a maior ameaça para a sua população, no ano de 2020, e de acordo com o relatório da Europol[iv], três Estados-membros da União Europeia (UE) – Áustria, França e Alemanha – sofreram 10 ataques jihadistas, havendo a lamentar a morte de 12 pessoas e ferimentos em mais de 47. No Reino Unido, foram materializados três atentados. A Suíça sofreu dois ataques com motivações jihadistas. O relatório revelou, ainda, que entre 2017 e 2020, foram perpetrados 30 ataques, tendo falhado 17, e sido evitados 45, por acção das Forças e Serviços de Segurança. Todos estes ataques foram levados a cabo pelos chamados lobos solitários, essencialmente através de esfaqueamento ou atropelamento.

Porém, o terrorismo de inspiração alegadamente religiosa está longe de ser o único flagelo a que as sociedades actuais estão sujeitas, havendo outras de cunho puramente criminoso ou de natureza política, afectando uma infinidade de países. Recorrendo ao já citado relatório da Europol, em 2020, três Estados-membros da UE, registaram quatro incidentes motivados pelo extremismo de direita. Um desses ataques foi cometido na Alemanha com recurso a armas de fogo, resultando na morte de 9 pessoas. Neste mesmo ano, 34 indivíduos foram detidos em oito Estados-membros da UE, por suspeitas de envolvimento em actividades terroristas de extrema-direita, motivadas por ideais racistas ou xenófobos. Na sua maioria, estes indivíduos estão ligados a comunidades on-line violentas transnacionais com diferentes níveis de organização, e com base em ideologias que promovem uma visão de ataques desencadeados por pequenos grupos ou mesmo por actores solitários. A Internet tem sido, e continuará a ser, a principal ferramenta ou meio para que estes extremistas violentos promovam e divulguem a sua acção criminosa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O terrorismo continua a ser uma ameaça persistente para a sociedade mundial. Quer actuando a nível individual ou integrados em pequenas células, e inspirados por uma variedade de ideologias e motivações pessoais, incluindo o extremismo violento sunita ou o extremismo de motivação racial ou étnica, estes actores representam uma real ameaça à segurança dos cidadãos de todo o mundo. As insurreições locais, por seu turno, reforçaram as suas credenciais promovendo a plena assimilação de organizações como o DAESH ou a Al Qaeda, o que se tem traduzido no fortalecimento das suas acções, no aumento do número de ataques, dos seus efeitos destruidores e em influência territorial.

Da sua parte, o extremismo violento, de diferentes motivações ideológicas, incluindo a da supremacia branca, do neonazismo ou outras teorias de conspiração racial constituirá, igualmente, uma ameaça à estabilidade social global, agravada pelas movimentações de grandes massas populacionais, em fuga, com destino à Europa, ocorridas no decurso dos últimos anos. O Grande Médio Oriente, com particular destaque para a Síria e para o Afeganistão, continuará a ser uma região caracterizada por conflitos persistentes, com insurreições activas e profundas crises humanitárias. Enquanto isso, o fundamentalismo, seja ele de que natureza for, celebra com entusiasmo o conflito e as destruidoras consequências da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O DAESH vê como seus inimigos os países beligerantes [integrantes de diferentes coligações anti-DAESH], mostrando-se distante de qualquer das partes envolvidas. Isso mesmo é referido pelo EI num editorial da publicação Al Naba, do passado mês de Março, que considera a invasão russa “um castigo divino” numa guerra de “cruzados contra cruzados”, que terá “grandes consequências” para o Ocidente, “inimigos do Islão”, independentemente do resultado do conflito[v]. Esta guerra entre a Rússia e a Ucrânia será, pois, mais uma oportunidade para as principais organizações jihadistas salafistas se afirmarem tanto nos domínios da propaganda como da acção terrorista.

Lisboa, 5 de Maio de 2022

João Henriques

Investigador Associado do Observatório de Relações Exteriores (OBSERVARE)/Universidade Autónoma de Lisboa
Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico
Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris

 


[ii] OFFICE OF THE DIRECTOR OF NATIONAL INTELLIGENCE. 2022. Annual Threat Assessment of the U.S. Intelligence Community. Disponível em: https://www.dni.gov/index.php/newsroom/reports-publications/reports-publications-2022/item/2279-2022-annual-threat-assessment-of-the-u-s-intelligence-community

[iii] COUNTER EXTREMISM PROJECT, ISIS Redux: The Central Syria Insurgency in April 2022, Disponível em: https://www.counterextremism.com/blog/isis-redux-central-syria-insurgency-april-2022

[iv] EUROPOL. European Union Terrorism Situation and Trend report 2021 (TESAT). Disponível em: https://www.europol.europa.eu/publications-events/main-reports/european-union-terrorism-situation-and-trend-report-2021-tesat

[v] ARAB NEWS, 9 de Março de 2022.