Um país que não cumpre mínimos em demasiadas áreas, com muitos cidadãos e comunidades de diversos pontos do território nacional, pode dar-se ao luxo, sobretudo por deleite de imagem e de expectativa de ganhos vindouros, de entregar, pelo menos, 11 milhões de euros por ano para a organização de um evento alegadamente exclusivo? Sim, sabemos que a Web Summit é considerada a maior conferência da Europa em tecnologias, que agita o setor turístico e que induz dinâmicas positivas num país tradicionalmente pouco dado ao rasgo, ao empreendedorismo e à inovação.
Sabemos até que sempre nos acenaram com muitos milhões de retorno imediatos e diferidos. A verdade é que havia um contrato e, do que é público, o endeusado organizador receberá 11 milhões de euros de dinheiros públicos por cada realização, desde 2016 a 2028. 110 milhões de euros. Apesar de ter garantida uma previsibilidade de receitas ao alcance de poucos, num mundo instável e incerto, tendo ainda sido agraciado com um regime fiscal especial de isenções fiscais, Paddy Cosgrave, co-fundador e CEO da Web Summit, fez anunciar que, para além do evento exclusivo de Lisboa em 2022 e em 2023, surgirá um novo polo de atração do universo tecnológico e das novas tendências no Rio de Janeiro, em maio de 2023. Legal!
Ou há um novo conceito de exclusividade ou deixámos de ter unicórnios e passamos a ter uma realidade mais próxima da arte de embolar os touros de lide, quantas vezes confrontados com diferentes tipos de cornos.
A verdade é que a propósito da expansiva arte de fogachar a realidade com ideias, projetos, iniciativas e personalidades internacionais, que em nada contribuem para a resolução das grandes questões estruturais do país e para as vivências do cidadão comum, são geradas situações de abuso de posição dominante, à margem ou no limiar da observância das regras gerais, para, há primeira oportunidade, a expectativa ser defraudada face aos faustos privilégios concedidos.
Paddy Cosgrave prepara-se assim para continuar a encaixar o que os contribuintes através do Estado português, nas suas diversas expressões, lhe pagam para ter um evento que deixou de ser exclusivo e terá uma nova fonte de receita a somar ao pecúlio, por terras de Vera Cruz. É caso para dizer que, no país dos Descobrimentos, fomos descobertos por quem faz de nós tansos e ainda pagamos.
O problema é que há um histórico de reincidências deste tipo de situações, de Madonna a alegados grandes investidores que se aproveitam de condições especiais de financiamento ou de execução de projetos para depois nos deixarem com o desemprego, os monos edificados e os passivos ambientais, um pouco por todo o território nacional. E basta um holofote, uma expectativa ou um afago de ego de circunstância para voltarmos a cair no canto de quem nos coloca ao nível dos tansos, gera entropias nos nossos quotidianos e não resolve nada de estrutural.
Apesar da estabilidade política, Portugal acompanha o mundo num quadro de incerteza e de múltiplas dificuldades, que não podem ser negligenciadas nem geridas de ânimo leve como se projetássemos no plano nacional a candura com que se assiste à clonagem da Web Summit de Lisboa para o Rio de Janeiro. Por muita que seja a habilidade política, não são repetíveis situações em que um primeiro-ministro assegura aos portugueses descidas de 20 cêntimos nos combustíveis, depois de serem exauridos durante meses, apenas mitigados pelo AutoVoucher, para que a palavra dada não seja honrada, por interferência de diversos fatores na configuração dos preços ao consumidor. O quadro de referência não era conhecido? Foi um impulso populista?
O tempo não está para leviandades, nem nas realidades nacionais, nem nas interações internacionais, razão pela qual o Estado português tem a obrigação de avaliar a desvalorização do evento de Lisboa à luz do contrato existente. A menos que ele próprio seja de uma permissividade não permitida ao comum dos mortais, alguns milhões sobrarão para prioridades estruturais. A chico-espertice de Paddy Cosgrave não pode prevalecer ou, mais uma vez, esvai-se a autoridade do Estado para dizer não a tantas necessidades e problemas por resolver. É que desta vez já só cai quem quer.
NOTAS FINAIS
VALE A PENA? Numa sociedade tão complexa como volátil, em que a ligeireza, volatilidade e inconsistência assumem crescentes centralidades, o esforço de manutenção do compromisso individual com a comunidade é cada vez maior e assume dimensões penosas face à impunidade que vigora em diversos setores, da política ao desporto, da justiça à economia, entre outros. É uma espécie de surto pandémico de desqualificação comportamental e de incapacidade dos reguladores, fiscalizadores e cidadãos em geral em porem cobro aos contextos que se vão replicando e perpetuando no plano das vivências e sobrevivências. Não conseguir separar o trigo do joio e valorizar a rota positiva de compromisso é um desastre comunitário.
NO FUTEBOL, NÃO VALE! Olha-se para o futebol, onde já deverá haver campeão, e emerge a perceção de que procurar fazer as coisas bem feitas, de acordo com as normas, ou procurar pistas alternativas, no limiar do que está estabelecido, é indiferente ou penalizador para quem cumpre. Não há nenhum incentivo a que se procure construir um caminho positivo, construtivo e afirmativo, sob o ponto de vista do interesse geral. O drama é que, se por ação ou por omissão se continuarmos a proteger as derivas negativas, da coação de árbitros às expressões de desordem e criminalidade organizada, sob a capa de claques; dos erros persistentes às dualidades de critérios; dos territórios em que juízes se recusam a fazer buscas aos em que os magistrados combinam as ações de investigação com alguns jornalistas, acabaremos por matar a galinha dos ovos de ouro do futebol. Valerá a pena persistir neste caminho de implosão de uma expressão social e económica relevante, em que se misturam as paixões, as vivências, as oportunidades e os oportunistas? Não pode valer tudo, não pode, quem manda, continuar a fingir que não se está a passar nada de anómalo, de lesivo do interesse geral e da manutenção da adesão de quem quer fazer as coisas bem feitas.
INCAPACIDADE PARA RETER TALENTO. Sendo certo que precisamos de outro tipo de organização e de agilização de processos, não podemos continuar a desperdiçar talentos, formados com o dinheiro dos contribuintes, exportados para outras paragens. Mais de 2500 médicos e enfermeiros terão saído do SNS durante a pandemia. Como pais e mães do Portugal vigente assistimos combalidos ao esvair de talento e de familiares, sem futuro adequado em território nacional.