Je suis cosmopolita!


Há os que defendem hoje a expulsão de cidadãos russos das artes, ciências e desporto, não fazendo distinção entre uma ação dos Estados e a punição de povos. 


Só após os protestos veementes do realizador ucraniano Sergei Loznitsa, a Academia de Cinema Europeu condenou a invasão ucraniana. Ainda estava fresca a carta que este lhes tinha dirigido, onde declarava sair da associação europeia pela sua posição “vergonhosa” sobre a guerra, uma vez que esta recusava condenar explicitamente a invasão, quando a Academia de Cinema da Ucrânia expulsa o mesmo Sergei Loznitsa…por este se ter oposto à perseguição aos cineastas russos. Diz-se que a grandeza de uma pessoa se vê pela qualidade dos inimigos. 

Na nota pública, a Academia Ucraniana condena o, cito, “cosmopolitismo” do realizador. E afirma que a sua obrigação era “defender a identidade nacional”. Loznitsa, autor de vários filmes, entre eles Donbass (Ucrânia, 2018), em estreia em Portugal, e Funeral de Estado (Lituânia, 2019), onde denuncia o culto da personalidade a Estaline, respondeu o seguinte à associação ucraniana: a posição desta “não expressaria um desejo de unir todas as pessoas sãs e amantes da liberdade na luta contra a agressão russa, não expressaria um esforço internacional de todos os países democráticos para vencer esta guerra, mas sim a ‘identidade nacional’. Infelizmente, isso é nazismo. Um presente para a propaganda do Kremlin da Academia Ucraniana de Cinema.” Sublinhou ainda o significado antissemita da acusação de “cosmopolitismo”. Termina a carta dizendo “Sou e serei um realizador ucraniano”. 

Ao The Guardian Loznitsa sublinhou que a resposta ultranacionalista da Academia Ucraniana já vinha de longe. O seu último filme em concurso é sobre o massacre de 33 mil judeus europeus pelos nazis alemães e seus colaboradores ucranianos, em 1941, em Kiev (Babi Yar. Context).

Na década de 1930, Leon Trotsky denunciou o “socialismo real” de Estaline, que queria fazer dos artistas servos do realismo socialista. Ou seja, de uma representação edulcorada da ditadura de partido único. Em debate com André Breton, os dois fundaram a Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente (FIARI), contracorrente do imperialismo de Washington e da burocracia de Moscovo, Trotsky escrever-lhe-á que a política é o reino da necessidade, e a arte, o da liberdade. “Toda a liberdade em arte.”

Confesso que sou leitora assídua de Mário Vargas Llosa e ele foi apoiante da ditadura no Peru. Não jantaria com ele, e ele certamente não quereria jantar comigo, mas a obra e o homem não são o mesmo. O Ocidente, a começar pelos Estados que aqui reinam, têm muito a aprender sobre liberdade e quase nenhuma lição a dar nesse campo. Leio Llosa, leio Althusser, porque é um autor importante na minha área e do qual discordo, e que matou a mulher antes de se suicidar, e nunca deixarei de ler apaixonadamente Balzac, um reacionário confesso. No reino de Estaline, de Putin e das instituições ocidentais que aderiram a esta tese, os artistas são do Estado, estão ao serviço de uma causa. No reino da liberdade não. Quando esquecemos isto?

É-me indiferente se um realizador de cinema russo é apoiante ou não de Putin. Não o defendo a ele, defendo a sua obra. O mesmo para um desportista. 

O que nos custa a admitir é que desde a “guerra ao terrorismo”, passando pelas medidas de gestão da pandemia e agora da guerra da Ucrânia, e antes, o que se tem imposto nas sociedades ocidentais é o cancelamento dos opositores, a impossibilidade real de contraditório e a criação de uma caricatura “pura” de gente que só existe nos frios decretos das instituições.

Outrora de pomba branca na lapela, vejo como a vontade bélica destronou, para tantos, os princípios essenciais da liberdade. O lema é: vale tudo para derrotar Putin, até ficar como ele. Olho por olho, dente por dente. Há os que defendem hoje a expulsão de cidadãos russos das artes, ciências e desporto, não fazendo distinção entre uma ação dos Estados e a punição de povos. Os que olham para o lado quando nos impõe censura ou transformam os órgãos de comunicação em propaganda dos Estados ocidentais e maldizem e difamam qualquer contraditório, para assim fazer face à propaganda russa. Quando vejo figuras públicas denunciar um jornalista – Bruno Amaral de Carvalho – que trabalha, entre outros, para a CNN como “apoiante dos russos”, sinalizando-o para as forças ucranianas, pondo em risco a sua vida (felizmente o ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Alfredo Maia veio alertar para esta grave situação). Quando a crítica legítima e salutar às posições do PCP deixa de ser um debate aberto e se transforma numa campanha anticomunista primária. Quando os vídeos de uma força neonazi – o Batalhão Azov – são mostrados e referidos, em horário nobre!, como sendo a única fonte para mostrar a libertação de civis em Mariupol, recordo-me do Oradour-sur-Glane, que visitei, em que os habitantes foram queimados vivos pela 2ª divisão Panzer (das SS nazi) – a mesma divisão cujo símbolo, uma suástica estilizada, inspirou o símbolo ostentado hoje pelo Batalhão Azov. Os governos e os media explicam-nos que deixou de ser nazi por decreto, ao ser incorporado nas forças regulares. Seria cómico se não fosse trágico. O fascismo abolido por decreto! Os monstros da história transformados em soldados honrados de um dia para o outro.

Em suma, estamos no medievo aqui, no lado Ocidental – qualquer meio é válido para atingir o fim. Putin, essa guerra, a da degradação dos valores democráticos no Ocidente, já está a ganhar.

Tudo isto passa-se no meio da naturalidade com que o Presidente da República usa a tribuna da Revolução dos Cravos para pedir aumento do orçamento militar, e António Costa diz olhe que sim, olhe que sim. Enquanto o Chega, de identidade nacional no peito (com a bandeira em pin), aplaude a cruz de ferro de Zelensky, um símbolo ultranacionalista orgulhosamente ostentado pelos nacionalistas e pelas forças neonazis ucranianas, penso que falta nos fazem o “cosmopolitismo” e a luta frontal contra a identidade nacional. 

O que tudo isto nos ensina é que se Putin queria desnazificar a Ucrânia – só ingénuos podem acreditar nisso, Putin sempre foi convivente com a extrema-direita russa – conseguiu justamente o contrário: radicalizar e incentivar o extremismo e as políticas de extrema-direita identitárias ucranianas. Do lado ocidental, Putin também fez um belo serviço: demonstrou, em poucos meses, que os valores europeus de liberdade podem ir pelo cano abaixo quando a Europa (leia-se Estados da UE) se sente ameaçada no que considera o seu espaço de influência. O mais grave, a guerra da Ucrânia legítima o treinamento oficial de milícias neo-nazis e naturaliza aos olhos dos Estados da UE estas milícias como “resistentes” ao mesmo tempo que choram os votos em Le Pen. 

Os artistas não podem estar ao serviço de qualquer amo, a Leste ou a Oeste. No meio do delírio xenófobo que expulsa alegremente desportistas, músicos e artistas russos, mostrando a Putin que na Europa há muitos como ele, Loznitsa mostra uma outra via. A da liberdade. 

Condenar a invasão, derrotar a guerra, implica do nosso lado a coragem de dizermos que o nosso apoio ao povo ucraniano não pode ser um apoio ao Estado ucraniano, quando este opta pelo silenciamento das oposições, dos partidos e dos media, como optou Zelensky, nem a instituições que segregam a vida comum entre povos. Não se derrota Putin com as armas da censura, do medo, da repressão, da xenofobia e do nacionalismo. 

Numa das cenas do bem-humorado livro O Valente Soldado Chveik, um libelo antimilitarista e uma sátira à luta entre nações, a personagem explica que não podia matar um professor de Matemática de outra nacionalidade já que ele também era professor de Matemática… Não me vejo a matar um professor de História, mesmo que o seu Estado invadisse o Estado onde nasci. Nem um operário naval, nem uma enfermeira, nem um camionista nem um médico. A ideia de Jaroslav Hasek, autor deste famoso romance checo, era simples: denunciar as guerras como feitas pelas classes proprietárias, onde os pobres e os trabalhadores iam morrer. Já agora, parece que Hasek terá sido acusado de traição e bigamia, deverá ser queimado? A que temperatura? 

Je suis cosmopolita!


Há os que defendem hoje a expulsão de cidadãos russos das artes, ciências e desporto, não fazendo distinção entre uma ação dos Estados e a punição de povos. 


Só após os protestos veementes do realizador ucraniano Sergei Loznitsa, a Academia de Cinema Europeu condenou a invasão ucraniana. Ainda estava fresca a carta que este lhes tinha dirigido, onde declarava sair da associação europeia pela sua posição “vergonhosa” sobre a guerra, uma vez que esta recusava condenar explicitamente a invasão, quando a Academia de Cinema da Ucrânia expulsa o mesmo Sergei Loznitsa…por este se ter oposto à perseguição aos cineastas russos. Diz-se que a grandeza de uma pessoa se vê pela qualidade dos inimigos. 

Na nota pública, a Academia Ucraniana condena o, cito, “cosmopolitismo” do realizador. E afirma que a sua obrigação era “defender a identidade nacional”. Loznitsa, autor de vários filmes, entre eles Donbass (Ucrânia, 2018), em estreia em Portugal, e Funeral de Estado (Lituânia, 2019), onde denuncia o culto da personalidade a Estaline, respondeu o seguinte à associação ucraniana: a posição desta “não expressaria um desejo de unir todas as pessoas sãs e amantes da liberdade na luta contra a agressão russa, não expressaria um esforço internacional de todos os países democráticos para vencer esta guerra, mas sim a ‘identidade nacional’. Infelizmente, isso é nazismo. Um presente para a propaganda do Kremlin da Academia Ucraniana de Cinema.” Sublinhou ainda o significado antissemita da acusação de “cosmopolitismo”. Termina a carta dizendo “Sou e serei um realizador ucraniano”. 

Ao The Guardian Loznitsa sublinhou que a resposta ultranacionalista da Academia Ucraniana já vinha de longe. O seu último filme em concurso é sobre o massacre de 33 mil judeus europeus pelos nazis alemães e seus colaboradores ucranianos, em 1941, em Kiev (Babi Yar. Context).

Na década de 1930, Leon Trotsky denunciou o “socialismo real” de Estaline, que queria fazer dos artistas servos do realismo socialista. Ou seja, de uma representação edulcorada da ditadura de partido único. Em debate com André Breton, os dois fundaram a Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente (FIARI), contracorrente do imperialismo de Washington e da burocracia de Moscovo, Trotsky escrever-lhe-á que a política é o reino da necessidade, e a arte, o da liberdade. “Toda a liberdade em arte.”

Confesso que sou leitora assídua de Mário Vargas Llosa e ele foi apoiante da ditadura no Peru. Não jantaria com ele, e ele certamente não quereria jantar comigo, mas a obra e o homem não são o mesmo. O Ocidente, a começar pelos Estados que aqui reinam, têm muito a aprender sobre liberdade e quase nenhuma lição a dar nesse campo. Leio Llosa, leio Althusser, porque é um autor importante na minha área e do qual discordo, e que matou a mulher antes de se suicidar, e nunca deixarei de ler apaixonadamente Balzac, um reacionário confesso. No reino de Estaline, de Putin e das instituições ocidentais que aderiram a esta tese, os artistas são do Estado, estão ao serviço de uma causa. No reino da liberdade não. Quando esquecemos isto?

É-me indiferente se um realizador de cinema russo é apoiante ou não de Putin. Não o defendo a ele, defendo a sua obra. O mesmo para um desportista. 

O que nos custa a admitir é que desde a “guerra ao terrorismo”, passando pelas medidas de gestão da pandemia e agora da guerra da Ucrânia, e antes, o que se tem imposto nas sociedades ocidentais é o cancelamento dos opositores, a impossibilidade real de contraditório e a criação de uma caricatura “pura” de gente que só existe nos frios decretos das instituições.

Outrora de pomba branca na lapela, vejo como a vontade bélica destronou, para tantos, os princípios essenciais da liberdade. O lema é: vale tudo para derrotar Putin, até ficar como ele. Olho por olho, dente por dente. Há os que defendem hoje a expulsão de cidadãos russos das artes, ciências e desporto, não fazendo distinção entre uma ação dos Estados e a punição de povos. Os que olham para o lado quando nos impõe censura ou transformam os órgãos de comunicação em propaganda dos Estados ocidentais e maldizem e difamam qualquer contraditório, para assim fazer face à propaganda russa. Quando vejo figuras públicas denunciar um jornalista – Bruno Amaral de Carvalho – que trabalha, entre outros, para a CNN como “apoiante dos russos”, sinalizando-o para as forças ucranianas, pondo em risco a sua vida (felizmente o ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Alfredo Maia veio alertar para esta grave situação). Quando a crítica legítima e salutar às posições do PCP deixa de ser um debate aberto e se transforma numa campanha anticomunista primária. Quando os vídeos de uma força neonazi – o Batalhão Azov – são mostrados e referidos, em horário nobre!, como sendo a única fonte para mostrar a libertação de civis em Mariupol, recordo-me do Oradour-sur-Glane, que visitei, em que os habitantes foram queimados vivos pela 2ª divisão Panzer (das SS nazi) – a mesma divisão cujo símbolo, uma suástica estilizada, inspirou o símbolo ostentado hoje pelo Batalhão Azov. Os governos e os media explicam-nos que deixou de ser nazi por decreto, ao ser incorporado nas forças regulares. Seria cómico se não fosse trágico. O fascismo abolido por decreto! Os monstros da história transformados em soldados honrados de um dia para o outro.

Em suma, estamos no medievo aqui, no lado Ocidental – qualquer meio é válido para atingir o fim. Putin, essa guerra, a da degradação dos valores democráticos no Ocidente, já está a ganhar.

Tudo isto passa-se no meio da naturalidade com que o Presidente da República usa a tribuna da Revolução dos Cravos para pedir aumento do orçamento militar, e António Costa diz olhe que sim, olhe que sim. Enquanto o Chega, de identidade nacional no peito (com a bandeira em pin), aplaude a cruz de ferro de Zelensky, um símbolo ultranacionalista orgulhosamente ostentado pelos nacionalistas e pelas forças neonazis ucranianas, penso que falta nos fazem o “cosmopolitismo” e a luta frontal contra a identidade nacional. 

O que tudo isto nos ensina é que se Putin queria desnazificar a Ucrânia – só ingénuos podem acreditar nisso, Putin sempre foi convivente com a extrema-direita russa – conseguiu justamente o contrário: radicalizar e incentivar o extremismo e as políticas de extrema-direita identitárias ucranianas. Do lado ocidental, Putin também fez um belo serviço: demonstrou, em poucos meses, que os valores europeus de liberdade podem ir pelo cano abaixo quando a Europa (leia-se Estados da UE) se sente ameaçada no que considera o seu espaço de influência. O mais grave, a guerra da Ucrânia legítima o treinamento oficial de milícias neo-nazis e naturaliza aos olhos dos Estados da UE estas milícias como “resistentes” ao mesmo tempo que choram os votos em Le Pen. 

Os artistas não podem estar ao serviço de qualquer amo, a Leste ou a Oeste. No meio do delírio xenófobo que expulsa alegremente desportistas, músicos e artistas russos, mostrando a Putin que na Europa há muitos como ele, Loznitsa mostra uma outra via. A da liberdade. 

Condenar a invasão, derrotar a guerra, implica do nosso lado a coragem de dizermos que o nosso apoio ao povo ucraniano não pode ser um apoio ao Estado ucraniano, quando este opta pelo silenciamento das oposições, dos partidos e dos media, como optou Zelensky, nem a instituições que segregam a vida comum entre povos. Não se derrota Putin com as armas da censura, do medo, da repressão, da xenofobia e do nacionalismo. 

Numa das cenas do bem-humorado livro O Valente Soldado Chveik, um libelo antimilitarista e uma sátira à luta entre nações, a personagem explica que não podia matar um professor de Matemática de outra nacionalidade já que ele também era professor de Matemática… Não me vejo a matar um professor de História, mesmo que o seu Estado invadisse o Estado onde nasci. Nem um operário naval, nem uma enfermeira, nem um camionista nem um médico. A ideia de Jaroslav Hasek, autor deste famoso romance checo, era simples: denunciar as guerras como feitas pelas classes proprietárias, onde os pobres e os trabalhadores iam morrer. Já agora, parece que Hasek terá sido acusado de traição e bigamia, deverá ser queimado? A que temperatura?