O direito a não ser espiado


Nunca é demais ajudar os concidadãos a combaterem as suas piores inclinações: despudor e culto de novos e falsos ídolos (“quem não tem nada a esconder não teme”) numa tecnosociedade que alimenta (e se alimenta da) a perda da privacidade. 


Em 26 de Agosto de 2019, a Provedora de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar (nº 1 do artigo 26º da Constituição), ao sigilo das comunicações (nº 1 do artigo 34º da Constituição) e a uma tutela jurisdicional efetiva (nº 1 do artigo 20º da Constituição). Expliquemo-nos, para o maior bem dos que não se amortalham em vida com as folhas digitais do “Diário da República”: estão em causa não os conteúdos das comunicações mas os “metadados”, os dados de base e de tráfego de todas as comunicações, armazenados automática e obrigatoriamente durante um ano pelos operadores de telecomunicações e que há muito merecem a atenção do Tribunal Constitucional  pois “acabam por fornecer informação sobre a localização, tempo, tipo de conteúdo, origem e destino, entre outras, dos atos comunicacionais efetuados através de telecomunicações ou por outros meios de comunicação.” A Provedora de Justiça alertou para o perigo de “o indivíduo viver com a sensação de estar a ser permanentemente vigiado e, por causa disso, retrair-se e inibir-se na comunicação com as outras pessoas para não deixar rasto do exercício de liberdades que a Constituição tem como fundamentais.”

Volvidos quase dois anos e meio (!), o TC, quase por unanimidade, e pelo acórdão 268/2022 de 19 de Abril, veio dar razão a grande parte do pedido da Provedora. Recomendamos a leitura e recuperamos a intertextualidade da jurisprudência do Palácio Ratton com uma citação do acórdão 403/2015:

“No entanto, o direito à autodeterminação comunicativa abrange ainda esferas de proteção mais amplas que a da simples reserva da vida privada. É que o progresso tecnológico, ao facilitar a acumulação, conservação, circulação e interconexão de dados referentes às comunicações, aumentou as possibilidades de devassa. Agora é o próprio domínio de atuação do indivíduo que é posto em causa, pois já não tem meios para assegurar a confidencialidade da comunicação. A liberdade de, à distância, trocar com os destinatários livremente escolhidos por cada um, informações, notícias, pensamentos e opiniões está comprometida com as inimagináveis possibilidades da sua afronta pelos avanços tecnológicos. Por isso, é necessário assegurar que a comunicação à distância entre privados se processe como se os mesmos se encontrassem presentes, i.e., que as comunicações entre emissor e recetor, bem como o seu circunstancialismo, se tenham como uma comunicação fechada, em que os sujeitos se autodeterminam quanto à realização da mesma e esperam, legitimamente, que a comunidade proteja o circunstancialismo daquela pretendida comunicação. Ora, como a interação entre pessoas que se encontram à distância tem de ser feita através da mediação necessária de um terceiro, de um fornecedor de serviços de comunicação, exige-se que esse operador e o Estado regulador também garantam a integridade e confidencialidade dos sistemas de comunicação. 

Neste contexto, o direito à autodeterminação comunicativa assume-se como um direito de liberdade, de liberdade para comunicar, sem receio ou constrangimentos de que a comunicação ou as circunstâncias em que a mesma é realizada possam ser investigadas ou divulgadas.”
 
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990
 

O direito a não ser espiado


Nunca é demais ajudar os concidadãos a combaterem as suas piores inclinações: despudor e culto de novos e falsos ídolos (“quem não tem nada a esconder não teme”) numa tecnosociedade que alimenta (e se alimenta da) a perda da privacidade. 


Em 26 de Agosto de 2019, a Provedora de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar (nº 1 do artigo 26º da Constituição), ao sigilo das comunicações (nº 1 do artigo 34º da Constituição) e a uma tutela jurisdicional efetiva (nº 1 do artigo 20º da Constituição). Expliquemo-nos, para o maior bem dos que não se amortalham em vida com as folhas digitais do “Diário da República”: estão em causa não os conteúdos das comunicações mas os “metadados”, os dados de base e de tráfego de todas as comunicações, armazenados automática e obrigatoriamente durante um ano pelos operadores de telecomunicações e que há muito merecem a atenção do Tribunal Constitucional  pois “acabam por fornecer informação sobre a localização, tempo, tipo de conteúdo, origem e destino, entre outras, dos atos comunicacionais efetuados através de telecomunicações ou por outros meios de comunicação.” A Provedora de Justiça alertou para o perigo de “o indivíduo viver com a sensação de estar a ser permanentemente vigiado e, por causa disso, retrair-se e inibir-se na comunicação com as outras pessoas para não deixar rasto do exercício de liberdades que a Constituição tem como fundamentais.”

Volvidos quase dois anos e meio (!), o TC, quase por unanimidade, e pelo acórdão 268/2022 de 19 de Abril, veio dar razão a grande parte do pedido da Provedora. Recomendamos a leitura e recuperamos a intertextualidade da jurisprudência do Palácio Ratton com uma citação do acórdão 403/2015:

“No entanto, o direito à autodeterminação comunicativa abrange ainda esferas de proteção mais amplas que a da simples reserva da vida privada. É que o progresso tecnológico, ao facilitar a acumulação, conservação, circulação e interconexão de dados referentes às comunicações, aumentou as possibilidades de devassa. Agora é o próprio domínio de atuação do indivíduo que é posto em causa, pois já não tem meios para assegurar a confidencialidade da comunicação. A liberdade de, à distância, trocar com os destinatários livremente escolhidos por cada um, informações, notícias, pensamentos e opiniões está comprometida com as inimagináveis possibilidades da sua afronta pelos avanços tecnológicos. Por isso, é necessário assegurar que a comunicação à distância entre privados se processe como se os mesmos se encontrassem presentes, i.e., que as comunicações entre emissor e recetor, bem como o seu circunstancialismo, se tenham como uma comunicação fechada, em que os sujeitos se autodeterminam quanto à realização da mesma e esperam, legitimamente, que a comunidade proteja o circunstancialismo daquela pretendida comunicação. Ora, como a interação entre pessoas que se encontram à distância tem de ser feita através da mediação necessária de um terceiro, de um fornecedor de serviços de comunicação, exige-se que esse operador e o Estado regulador também garantam a integridade e confidencialidade dos sistemas de comunicação. 

Neste contexto, o direito à autodeterminação comunicativa assume-se como um direito de liberdade, de liberdade para comunicar, sem receio ou constrangimentos de que a comunicação ou as circunstâncias em que a mesma é realizada possam ser investigadas ou divulgadas.”
 
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990