“O design é uma questão de sobrevivência”. A lição de Norman Foster em Bilbau

“O design é uma questão de sobrevivência”. A lição de Norman Foster em Bilbau


Na inauguração da exposição que comissariou para o Guggenheim Bilbao, o arquiteto Norman Foster deu uma autêntica lição sobre a história do automóvel, a importância do design e o futuro das cidades.


Na conferência de imprensa de inauguração da exposição Motion. Autos, Art, Architecture, patente até 18 de setembro no Museu Guggenheim Bilbao, marcaram presença quatro figuras de peso. Ao palco do auditório subiram o anfitrião Juan Ignacio Vidarte, diretor do museu basco; José Ignacio Sánchez Galán, CEO da Iberdrola, o gigante espanhol da energia; o austríaco Herbert Diess, CEO da Volkswagen. Mas todos os olhos estavam postos em Sir Norman Foster, que comissariou a exposição. 

Elegantemente vestido com um fato de veludo cor de beringela, camisola de gola alta e meias vermelho-Ferrari, o arquiteto britânico de 86 anos – vencedor do Pritzker em 1999 e autor de obras emblemáticas como a cúpula de vidro do Reichstag, em Berlim, ou a sede da Apple em Cupertino, Califórnia – falou sobre a sua paixão por automóveis, a importância do design e o futuro das cidades. Recolhemos o melhor da sua intervenção.

O cavaleiro branco e o automóvel do futuro “A exposição conta diferentes histórias, mas talvez o tema transversal seja que a mobilidade está em constante evolução, está sempre a mudar. Na primeira galeria vê-se a forma como o automóvel é um cavaleiro branco, que embeleza e limpa a cidade, porque ninguém tem memória do mau cheiro, do esterco, das doenças provocadas por carcaças de cavalos a apodrecer. Um dia, surge o automóvel e a cidade é bela outra vez. Mas traz uma forma diferente de congestionamento, o congestionamento do cavalo mecânico, em oposição ao do cavalo vivo. À medida que avançamos pelas galerias ocorre-nos a palavra emoção, vemos estes objetos extraordinariamente belos coexistirem, ao mesmo nível, com grandes obras de arte e arquitetura. Há uma sinergia cultural, e isso opõe-se a uma mentalidade compartimentada segundo a qual ‘isto é uma obra de arte, aquilo é apenas um carro’. E não, não é [apenas um automóvel], é um artefacto cultural pleno de significado. Através das diferentes interpretações conseguimos ver as diferenças culturais entre nações, um engenho extraordinário. Imediatamente a seguir à II Guerra Mundial houve uma grave escassez energética, e vemos esse engenho: carrinhos minúsculos, que consomem cada vez menos energia. E agora estamos no limiar de uma nova era: em certa medida, esta exposição é quase um requiem para uma era da combustão. Se pensarmos nos automóveis contemporâneos, são muito parecidos uns com os outros, e isso é porque o mundo está mais globalizado e estandardizado. O carro do futuro será uma espécie de sala ou quarto ou seremos transportados como sardinhas em lata? Serão os seguros uma indústria do passado uma vez que não existe risco? Ou tornar-se-ão mais vulneráveis a um ciberataque? Isto levanta questões e suscita perspetivas muito interessantes, mas penso que há sempre um cenário pessimista e um cenário otimista.

Acredito apaixonadamente que o futuro é sempre melhor, por isso acho que estamos no limiar de algo verdadeiramente empolgante e positivo”.

A génese da exposição “Sempre tive uma paixão por locomotivas, aviões, carros. Tive o privilégio de pilotar muitos tipos de planadores, helicópteros, aviões a hélice, aviões a jacto, de conduzir uma vasta variedade de veículos. Um eminente designer dizia para levarmos a sério o prazer. Como pode isso traduzir-se numa exposição? Houve extraordinárias exposições sobre a obra de artistas ou sobre a obra de arquitetos, e houve exposições extraordinárias de automóveis. Mas, que eu tenha conhecimento, nunca houve uma exposição que juntasse todas estas disciplinas e que criasse um fórum como este onde podemos estar a falar de energia, do futuro, da mobilidade, da poluição, por isso abordei o Guggenheim em Nova Iorque com esta ideia. Algum tempo depois fui abordado pelo Ignacio [Vidarte, diretor do Guggenheim Bilbao], que me convidou para montar uma equipa e criar esta exposição. Esse é o contexto: juntar os diferentes mundos”.

O primeiro carro – e o favorito “O meu primeiro carro foi um Morris, provavelmente de 1935, o ano em que nasci. Esse foi o primeiro que conduzi, o carro da família, nos anos 50. O primeiro carro da minha coleção que integra esta exposição foi um jipe muito parecido com o que está exposto na penúltima secção. Se tivesse de escolher um automóvel seria trazer de novo à vida o Dymaxion original, que foi uma criação de Buckminster Fuller [pioneiro do design e inventor conhecido pelos seus projetos visionários e arrojados, como a cúpula geodésica]. O Dymaxion compara com o Ford sedan dessa altura, porque Fuller era muito amigo de Henry Ford e arranjava qualquer peça da Ford com um desconto de cerca de 33%. O Dymaxion tem a mesma transmissão, o mesmo motor que o Ford sedan. Mas graças à sua forma aerodinâmica, andava mais depressa, com menos combustível e levava mais pessoas. Tive o privilégio de trabalhar com o Bucky nos últimos 12 anos de vida dele, portanto é uma espécie de homenagem a um mentor, um mestre. Era um exercício para fazer mais com menos. E talvez essa seja a grande mensagem hoje: temos de fazer mais com menos. Temos de ter mais mobilidade, menos risco, consumir menos energia – e tem de ser mais divertido!”

Sobre a escolha dos automóveis que integram a exposição “Totalmente subjetiva. Liberdade total. Os dois temas são a beleza e a tecnologia. Por vezes fundem-se imperceptivelmente num veículo. Outras vezes surgem separadas. Mas há uma beleza utilitária para mim num jipe ou num 2 Cavalos, da mesma forma que nas carroçarias extraordinárias, esculpidas, luxuosas, personalizadas de um certo período. Obviamente por trás da escolha houve muitas discussões saborosas com pessoas cuja opinião respeito, mas no fim é uma escolha muito pessoal. No fim é um equilíbrio entre as galerias, uma escolha consciente nos inícios para juntar muitos automóveis para contar a história de uma carruagem a que só faltam os cavalos e quando se deixa essa galeria já se entrou na era da aerodinâmica, e depois, por contraste, entra-se numa galeria com duas obras significativas de dois grandes artistas [Henry Moore e Alexander Calder] e quatro automóveis extraordinários. Mas é uma seleção muito pessoal”.

O museu: espelho da vertigem contemporânea ou lugar de desaceleração? “Na galeria do futuro, a instalação do MIT, do Kent Larson e da sua equipa, imaginou dois cenários. Num, as nossas vidas vão ser cada vez mais aceleradas. Se a tendência da mobilidade for para nos deslocarmos mais depressa, vai tornar-se uma espécie realidade hipersónica. O cenário alternativo que colocam é que ficaremos parados, por causa da realidade virtual e de novas modalidades de mobilidade autónoma. Tudo nos será entregue à porta. Conseguiremos deslocar-nos mais rapidamente na realidade virtual se permanecermos fisicamente quietos. Penso que o museu tem a oportunidade de nos mostrar muitos cenários diversos. Consegue fazer-nos recuar no tempo, consegue fazer-nos desacelerar e consegue expor-nos a sensações de ritmos de mudança cada vez mais rápidos”.

Uma questão de sobrevivência “A civilização, como espécie, emerge da caverna. Tudo o que existe foi uma questão de design, em termos de criação de um ambiente artificial em coexistência com a natureza. Mas de certo modo, desafiando a natureza, tal como o voo desafia a lei da gravidade. O design não é uma questão de embelezamento ou uma questão de uma moda. É uma questão de sobrevivência. A história do design criou uma situação de ameaça ao planeta, por causa da poluição. E só o design nos vai conduzir para fora disso, para um futuro mais limpo, mais radioso. Para mim é uma atividade absolutamente central e essencial. Tudo – tudo em que tocamos, que sentimos, o que vemos lá fora quando olhamos pela janela, o que vemos aqui à nossa volta, tudo foi desenhado. Pode é ter sido bem, mal ou medianamente desenhado. Mas o design é fundamental”.

A cidade vai sair mais forte “A história das cidades é uma história de crises. A pandemia de cólera de meados do século XIX acelerou, amplificou tendências que já estavam lá. Precipitou a criação do saneamento moderno, o aterro do Tamisa em Londres, por exemplo, o metropolitano. Tudo isto teria acontecido sem a epidemia de cólera. Mas a cólera acelerou. O reservatório no Central Park, em Nova Iorque, para haver água limpa. A construção antissísmica em Portugal depois do grande terramoto. As casas de tijolo e a construção à prova de fogo, que fazem parte do ABND de Londres como a conhecemos. Teria acontecido de qualquer modo, mas foi uma resposta ao grande incêndio de 1666. Qual é a lição hoje? No longo arco da história, a pandemia não vai mudar nada. Vai amplificar as tendências que já lá estão. E a ideia de que vai matar a cidade – esqueçam. A cidade vai sair mais forte. A cidade é o futuro. As cidades criam inovação, oportunidades, libertação, aumento da esperança de vida. É por isso que toda a gente migra para as cidades. É a nossa vida, gostemos ou não”.