Morreu este domingo o ator norte-americano William Hurt que marcou o universo cinematográfico sobretudo na década de 80, aos 71 anos. A informação da sua morte foi confirmada pelo filho, Will, em comunicado.
“É com grande tristeza que a família Hurt lamenta a morte de William Hurt, pai amado e ator vencedor de um Óscar, no dia 13 de março de 2022, uma semana antes do seu 72.º aniversário. Ele morreu em paz, entre a família, de causas naturais”, lê-se no comunicado citado pelo jornal britânico The Guardian.
Segundo o Hollywood Reporter, o artista morreu na sua casa em Portland, Oregon. O cineasta italiano Franco Zeffirelli com quem trabalhou em Jane Eyre, em 1996, descrevia-o como “o ator mais complicado com quem já havia trabalhado”. Mas porquê?
Durante a sua carreira, o artista foi nomeado quatro vezes para os Óscares. A primeira delas, em 1986, ganhou o Óscar de Melhor Ator, com O Beijo da Mulher Aranha, do argentino-brasileiro, Héctor Babenco, onde interpretava o papel de um homem homossexual condenado numa prisão brasileira durante a ditadura militar.
Seguiu-se, também a mesma nomeação em Edição Especial, de James L. Brooks, em que era um pivô televisivo “mais atraente do que competente”, que consegue subir na carreira precisamente por isso e, no ano seguinte em Filhos de um Deus Menor, de Randa Haines, filme em que dava vida a um professor de alunos surdos. Em 2005, Hurt voltou a ser nomeado para Melhor Ator Secundário pelo papel em Uma História de Violência, de David Cronenberg, onde desempenhava um papel diferente de todos os outros que já lhe haviam valido nomeações: um chefe da máfia irlandesa de Filadélfia.
Do teatro à sétima arte Nascido na cidade de Washington, em 1950, o seu pai trabalhou para a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAid) o que levou o jovem William a viajar e morar em lugares como o Paquistão, Sudão ou Somália.
O artista estudou Teologia na Tufts University, em Boston, Massachusetts, contudo, acabou por escolher o caminho da representação. Em 1972, acabou por se matricular na famosa Julliard Art School, em Nova Iorque, e foi precisamente em produções teatrais que se estreou ganhando logo um prémio para a sua estreia “off-Broadway” em 1977 e um Theatre World Award no ano que se seguiu.
A sua estreia nas grandes telas deu-se com o papel de um cientista obcecado em Viagens Alucinantes (1980), do realizador Ken Russell. No ano seguinte, estrelou em Os Olhos da Testemunha e ainda em Noites Escaldantes, produção que acabou por fazer dele e de Kathleen Turner símbolos sexuais e estrelas, lançando ainda a carreira do realizador e argumentista Lawrence Kasdan. A sua estreia causou grande sensação na época e a fama que ganhou com esse filme fez dele uma grande estrela na década de 1980.
Depois de se ter transformado num agente “soviético” em O Mistério de Gorky Park, em 1983, William entrou naquela que foi vista como a sua altura áurea, com o filme Os Amigos de Alex, novamente realizado por Kasdan e ao lado de nomes como Tom Berenger, Glenn Close, Jeff Goldblum e Kevin Kline. O filme centra-se num grupo de sete amigos já na casa dos 30 anos que foram colegas de faculdade nos anos 60 e que se reencontram após anos de separação no funeral de Alex, outrora um aluno brilhante e que havia cometido suicídio. Após a cerimónia, aproveitam para recuperarem o tempo perdido e descobrem que perderam o radicalismo e a irreverência que os havia caracterizado na juventude. Pouco depois veio O Beijo da Mulher Aranha, que lhe rendeu o Óscar de melhor ator.
Relações conturbadas Hurt foi casado pela primeira vez com a atriz Mary Beth Hurt de 1971 a 1982. Durante o matrimónio, segundo a ABCNews, começou um relacionamento com Sandra Jennings, relação extraconjugal que acabou por pôr fim ao seu casamento. Mas seis anos depois, essa relação também viria a chegar ao fim. Em 1989, durante o divórcio mediático, a sua ex-parceira, Sandra Jennings, pintou um retrato bastante “negro” da estrela. Segundo a mesma, Hurt era “um bêbado violento propenso a alucinações religiosas”. Além disso, Jennings também alegou que uma vez o artista urinou no sofá da sua casa.
“Atuar é uma coisa muito íntima e privada”, disse Hurt ao The New York Times em 1983. “A arte de representar requer tanta solidão quanto a arte de escrever. Sim, tu esbarras em outras pessoas, mas precisas de aprender um ofício, uma técnica. Há essa coisa estranha de que a minha atuação é considerada esse clamor por atenção à minha pessoa, como se eu precisasse de tanto amor ou tanta atenção que desistiria do meu direito de ser uma pessoa privada”, acrescentou.
Depois disso, ao que parece, Hurt continuou a ter relações problemáticas. Quando tinha 35 anos, começou uma relação com a atriz Marlee Matlin. O casal conheceu-se na preparação para o filme Filhos de um Deus Menor, onde interpretaram os protagonistas que acabavam por ter um envolvimento romântico. Foi a estreia de Matlin no cinema. A atriz tinha na época 19 anos e tornou-se a primeira (e até agora única) pessoa surda a conquistar um Óscar de representação.
Segundo a atriz, que escreveu os pormenores na sua autobiografia I’ll Scream Later, publicada em 2009, Hurt abusou física e psicologicamente dela durante cerca de dois anos, o período em que viveram juntos. “Eu tinha hematomas novos todos os dias ou um lábio rachado. Aconteceram muitas coisas que não são boas!”, disse Matlin ao Access Hollywood numa entrevista sobre essas memórias.
“Sempre tive medo dele, mas amava-o! Ou talvez pensasse que sim… Mas há de ter em conta que eu tinha 19 anos e ele 35”, acrescentou. Na altura da sua publicação, o ator emitiu um pedido de desculpas que dizia: “A minha lembrança é que nós dois pedimos desculpas e ambos fizemos de tudo para curar as nossas vidas”, escreveu, desejando “tudo de bom” à atriz.
Nesses anos, William também “lutou” contra o abuso de drogas e álcool e frequentou clínicas de reabilitação. Além disso, também desenvolveu a reputação de nem sempre ser “um colaborador fácil”. A revista norte-americana The New Yorker chegou mesmo a chamá-lo de “notoriamente temperamental”. Em 1989, Hurt casou-se com Heidi Henderson, que conheceu na reabilitação. O casal teve dois filhos juntos. Além deles, Hurt também teve uma filha com a atriz e cineasta francesa Sandrine Bonnaire em 1992.
Um ator “difícil” Após a tórrida corrida nos anos 80, Hurt caiu cada vez mais em “desuso” entre os cineastas nos anos 90 e alguns argumentaram que era por causa da sua reputação. Hurt, no entanto, continuou a defender-se, dizendo ao Los Angeles Times em 1994: “Eu dou mais resolvendo a verdade do que satisfazendo expectativas e esperanças fáceis”, admitiu. “Se um realizador me diz para fazer o público pensar ou sentir uma determinada coisa, fico instantaneamente revoltado”, disse Hurt. “Além disso, a minha única obrigação é oferecer a verdade da peça. Não devo nada a ninguém, incluindo ao realizador”, sublinhava a propósito das acusações.
Desde 2008, ano de lançamento do filme O Incrível Hulk, que o artista fazia parte do Universo Cinematográfico Marvel, no papel do general e depois secretário de Estado Thaddeus Ross. Seguiram-se Capitão América: Guerra Civil, em 2016, Vingadores: Guerra do Infinito, dois anos depois, Vingadores: Ultimato, em 2019 e Viúva Negra, no ano passado e que foi o seu último trabalho. A sua caminhada não passou apenas pelo teatro ou o cinema. Em televisão, participou em trabalhos como a minissérie Dune, adaptação de Frank Herbert do ano 2000.
Em 2014, Hurt assistiu a um dos piores acidentes no set da história. O artista estava a dar vida à personagem Gregg Allman no drama biográfico americano do diretor Randall Miller, Midnight Rider, quando um comboio colidiu com o set na zona rural da Geórgia, matando a assistente de câmara Sarah Jones e ferindo vários outros. O ator disse mais tarde que “expressou repetidamente preocupação de que os membros do elenco e da equipa, carregados de equipamentos, estivessem seguros no cavalete caso um comboio chegasse” e que foi assegurado pela AD Hillary Schwartz de que “estavam a ser cumpridas todas as normas de segurança”.
“É a tristeza da minha vida profissional e uma das grandes tristezas da minha vida pessoal”, revelou mais tarde sobre o acidente. “Era simplesmente impossível imaginar que algo assim pudesse acontecer. Poderia simplesmente ter ido embora quando pressenti que algo não estava certo, mas foi o nosso primeiro dia com uma equipa com quem já havia trabalhado”, explicou. Logo após o acidente, Miller tentou avançar com a produção, mas Hurt desistiu, negando-se a retomar o filme.
Questionada pela Entertainment Tonight na passadeira vermelha dos Critics Choice Awards, no domingo, Marlee Matlin reagiu à morte de William Hurt: “Perdemos um grande ator e trabalhar com ele no set de Filhos de um Deus Menor será sempre algo que vou relembrar com carinho. Ensinou-me muito como ator e era único!”, lembrou a atriz. O ator deixa no seu “currículo” 105 filmes.