Trata-se do primeiro recurso dos procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pereira Pinto, feito em abril de 2021, dias depois de Ivo Rosa ter encerrado a fase de instrução com uma decisão que fez em tiras a acusação do Processo Marquês. Desde então, este recurso anda em bolandas há quase um ano. Agora, se a Relação de Lisboa vier a dar razão aos procuradores, Sócrates já não poderá ser julgado e esse conjunto de factos voltará ao ‘processo mãe’ da Operação Marquês – que foi mandado arquivar por Ivo Rosa, o que o MP também contesta, tendo apresentado um segundo recurso, que ainda não chegou à Relação.
No recurso que agora foi enviado à Relação, os procuradores da República Rosário Teixeira e Vítor Pereira Pinto alegam que os crimes pelos quais o juiz Ivo Rosa pronunciou José Sócrates e Carlos Santos Silva (branqueamento de capitais) são completamente diferentes daqueles que constavam na acusação, o que constitui uma «nulidade insanável».
Além disso, os magistrados invocam que o juiz de instrução fez uma «desajeitada alteração de detalhes» do despacho de acusação, o que o levou a retirar a «conclusão absurda de que a vantagem indevida da corrupção» estava a ser recebida por José Sócrates com «fundos que já eram seus».
O juiz Ivo Rosa começou por recusar receber este recurso, bem como um da defesa de Sócrates que ia no mesmo sentido – o que obrigou ambas as partes a pedirem a intervenção da Relação, que lhes deu razão. Depois, ainda houve que decidir múltiplas questões, com diferendos de opinião entre Ivo Rosa, a juíza Margarida Alves, do Tribunal Criminal de Lisboa, que recebeu esta ‘fatia’ da Operação Marquês para julgar, e a defesa de Sócrates – que a Relação também teve de decidir.
O recurso chega agora finalmente à Relação, que terá de pronunciar-se: há ou não indícios fortes de crimes de corrupção no caso? Em caso afirmativo, em relação a qual dos arguidos? E já está prescrito ou não?
Como Salgado acabou condenado
1. Estatuto económico e crime prolongado dão 6 anos de prisão
Os juízes que na passada segunda-feira condenaram Ricardo Salgado a seis anos de prisão efetiva por três crimes de abuso de confiança explicam na sentença, a que o Nascer do Sol teve acesso, que na sua decisão pesaram sobretudo o «estatuto económico» do banqueiro e o facto de «a atividade delituosa» se ter prolongado no tempo. Sobre as alegadas limitações psíquicas do arguido, o Tribunal limita-se a registar que tem doença de Alzheimer, mas não retira daí qualquer consequência prática para a sua decisão.
Recorde-se que o ex-banqueiro esteve inicialmente acusado de 21 crimes no processo Operação Marquês: um de corrupção ativa de titular de cargo político, dois de corrupção ativa, 9 de branqueamento de capitais, três de abuso de confiança, três de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada. Na decisão instrutória, proferida em 9 de abril de 2021, o juiz Ivo Rosa deixou cair quase todas estas acusações, tendo pronunciado o banqueiro apenas pelos três crimes de abuso de confiança – devido aos referidos saques de dinheiro da offshore do GES em proveito próprio, pelos quais foi julgado e esta semana condenado.
Em causa, estão sucessivos ‘saques’ de dinheiro – que totalizaram 10,6 milhões de euros – da Enterprises Managemet Services, uma sociedade constituída por fundos do Grupo Espírito Santos (GES) e conhecida como o ‘saco azul’ do grupo, a duas sociedades sediadas no Panamá – a Savoices e a Begolino –, a favor de Ricardo Salgado e com a ajuda de terceiros, como Henrique Granadeiro e Helder Bataglia.
A primeira verba, no valor de dois milhões e 750 mil euros, remonta a 2010 e teve origem na Espírito Santo Enterprises, sediada na Federação Helvética, para uma conta titulada por Helder Bataglia, que imediatamente a fez circular para uma outra de Salgado no Crédit Suisse, a Savoices.
Já a segunda, no valor de 4 milhões de euros, que remonta a 2011, também teve origem no ‘saco azul do BES’ e teve como destino a mesma sociedade sediada no Panamá.
No mesmo ano, apenas com um intervalo de um mês (e desta vez através de Henrique Granadeiro, antigo presidente da PT, com conta no banco Pictet), segue com destino à outra sociedade offshore do banqueiro, a Begolino, a última tranche, no montante de 3,9 milhões.
2. Que provas foram valorizadas pelos juízes
No acórdão, os juízes Francisco Henriques (juiz-presidente), Rui Coelho e Sílvia Costa valorizam a prova recolhida pelo Ministério Público e destacam em particular a análise financeira feita por Paulo Silva, o líder da Inspeção Tributária de Braga, que fez parelha com o procurador Rosário Teixeira no processo Operação Marquês, de onde os factos acima descritos foram extraídos pelo juiz Ivo Rosa, no final da instrução.
«Com efeito, a documentação pontualmente indicada relativamente a cada ponto faz de facto a demonstração inequívoca das movimentações financeiras, a qual ficou mais clara com o depoimento da testemunha Paulo Jorge Carvalho Silva, que demonstra grande experiência no conhecimento do funcionamento das sociedades offshore e uma grande capacidade para fazer a interligação entre os movimentos bancários efetuados entre diversas entidades bancárias e não bancárias, a qual ficaria oculta a olhos menos experientes», afirma o Tribunal.
3. ‘Seria credível, se tal tivesse realmente ocorrido’
Em contrapartida, os juízes não deram crédito a várias testemunhas, como é o caso de Henrique Granadeiro. A transferência efetuada por Granadeiro, a 2 de novembro de 2011, e a explicação que o ex-chairman da PT encontrou para a sustentar, é até alvo de ironia e humor: «Esta explicação seria credível se tal tivesse realmente ocorrido».
No documento da transferência foi manuscrita uma informação prestada por Francisco Fino, o procurador da conta de Granadeiro, indicando que a verba tinha em vista a aquisição futura de um bem imóvel em Portugal. Ao ser ouvido pelos investigadores da Operação Marquês, quando confrontado com este recebimento, Salgado adiantou como explicação que os quatro milhões de euros consistiam num adiantamento por conta da aquisição por Granadeiro da casa de férias que tinha num condomínio privado em Itacaré, no estado brasileiro de Bahia.
Esta versão é classificada, porém, como «serôdia» pelos juízes, por só ter surgido muito posteriormente, quando os arguidos foram confrontados pela investigação. E, sobretudo, não é sustentada em qualquer contrato-promessa de compra e venda ou numa escritura de aquisição da casa, que nem Salgado nem Granadeiro conseguiram apresentar aos investigadores (alegando o banqueiro que, por um lado, a amizade entre ambos dispensava o primeiro documento e que, por outro, a intensa vida profissional de ambos não lhes dera tempo para registarem o negócio em papel).
Além disso, ao ser ouvido como testemunha nos autos, Francisco Fino, para lá da explicação diferente que dera no documento de transferência, revelou ainda que também era proprietário no mesmo resort de luxo de uma casa que, apesar de ser melhor do que a de Salgado, não valeria sequer, aos preços do mercado imobiliário brasileiro da época, um milhão de euros.
4. Provas que Ivo não queria ajudaram a condenar
Entre a volumosa documentação que o Tribunal valorizou, encontra-se ainda o depoimento prestado pelo empresário Helder Bataglia no processo Monte Branco, o primeiro inquérito em que Ricardo Salgado caiu nas malhas da Justiça, em 2011, quando ainda era presidente do BES. Depoimento esse que o juiz Ivo Rosa chegou a decidir que fosse retirado da Operação Marquês – merecendo então a oposição do MP, que recorreu para a Relação de Lisboa. Este tribunal superior deu razão ao MP e mandou reintegrar as declarações.
5. O que fazer com a doença de Alzheimer?
Os advogados de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce, já anunciaram que vão recorrer da condenação. Legalmente, as possibilidades de recurso limitam-se ao Tribunal da Relação, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça só aprecia condenações superiores a seis anos de prisão.
Mas a doença de Alzheimer é uma questão com que a defesa promete voltar à carga. Se a Relação confirmar a condenação em pena de prisão efetiva, terá de decidir se esta doença mental deve ou não ser considerada na determinação da forma como o arguido cumprirá a pena.
Trata-se de uma questão nova, mas que começa a fazer o seu caminho nos tribunais. O jornal Eco noticiou, em novembro do ano passado, que o Tribunal de Viseu condenou então um ex-presidente da Câmara de Tondela a sete anos de prisão (estavam em causa crimes de prevaricação de titular de cargo público e fraude na obtenção de subsídios), mas decidiu suspender-lhe a pena por igual período e na condição de ser avaliado por médicos regularmente, por sofrer da doença de Alzheimer, ainda que ligeira, confirmada em perícia do Instituto de Medicina Legal. No caso de Salgado, o tribunal recusou suspender o julgamento, conforme solicitara a defesa, e não pediu uma perícia independente, limitando-se a juntar ao processo a declaração médica apresentada e a não tirar daí consequências práticas.
6. Salgado, Vara e Perna
Das quatro certidões que o juiz Ivo Rosa remeteu para julgamento, quando decidiu arquivar toda a restante acusação do MP, Salgado é o segundo arguido a ser condenado. No verão passado, Armando Vara foi condenado a dois anos de prisão efetiva pelo crime de branqueamento de capitais – e recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, aguardando-se uma decisão.
Já João Perna, antigo motorista de Sócrates, confirmou ao Nascer do Sol que já foi julgado há cerca de três meses pelo crime de posse ilegal de arma que lhe foi encontrada quando foi detido no início da Operação Marquês, tendo sido condenado a uma pena de multa. Quanto ao montante em causa, João Perna não se quis pronunciar, adiantando apenas que «para quem se encontra desempregado, tem família e filhos para sustentar, fez uma grande mossa».