Elisa Ochoa. “Para mim  o desenho é pensamento e o pensamento é desenho”

Elisa Ochoa. “Para mim o desenho é pensamento e o pensamento é desenho”


Da filosofia à dança, do teatro às artes plásticas, Elisa Ochoa sempre se desdobrou em atividades e disciplinas. Alguns dos seus trabalhos podem agora ser vistos no Museu da Quinta de Santiago, em Matosinhos: a exposição ‘Profundezas’ leva-nos por uma viagem que parte do visível e nos leva até ao que não se pode ver.


Elegeu a Torre de Belém como local para a conversa, por gostar sempre de estar perto do mar. De blusa encarnada, que se destaca contra o azul da paisagem, aproxima-se com um sorriso no rosto, como se a conversa fosse começar nesse exato momento. Artista plástica licenciada em Filosofia, Elisa Ochoa começou a sua carreira em 2008. Agora, o Museu da Quinta de Santiago iniciou a temporada expositiva de 2022 mostrando obras suas: Profundezas propõe um “mergulho” naquilo que há para além do óbvio. 

Como é que a Elisa se descreve enquanto artista? 

Acho que tenho uma descrição menos formal do que aqueles artistas “puros e duros” que vão à faculdade de belas artes. Tenho uma formação muito académica e muito teórica. Sou formada em Filosofia, depois especializei-me com o mestrado em Estética e Filosofia da Arte, sempre na perspetiva teórica e crítica. Já fui atriz, já fiz performance… No que toca às artes plásticas e visuais, são uma forma de eu quase cristalizar as ideias que tenho vindo a desenvolver desde os 22 anos. Fui para os EUA e acabei por fazer formação em Teatro e em Dança. Acredito que a Filosofia me abriu caminho para toda essa parte multidisciplinar. Eu quis explorar e consegui, nunca focando apenas numa área. Muitas pessoas chamam a isso um “erro”, mas eu propositadamente quis “errar” e ter este percurso. Fui depois estudar museologia, curadoria, relacionamentos dos públicos com as obras de arte e cheguei sempre ao ponto em que tinha de criar para poder sistematizar as minhas ideias. Enquanto artista, tenho uma visão sempre “epicêntrica” do tema mais ao nível da sensibilidade e giro em torno dos temas que me interessam na teoria e que estão, muitas vezes, relacionados com a história, a cultura dos objetos, a natureza desses objetos e o próprio espaço natural, que me fascina. Foi por isso que também tirei alguns cursos de ilustração científica, para poder ir mais a fundo nas espécies da flora e da fauna. Sou, por isso, uma artista muito pluridisciplinar, que entrelaça as artes visuais, as questões ligadas à filosofia, à crítica de arte, à curadoria…

Sente que essa polivalência a torna uma artista mais completa? 

Acredito que sim! Acho que faz muita falta aos artistas terem essa visão autocrítica do seu trabalho, serem mais inteligentes nas escolhas que fazem ao nível da curadoria, gestão de carreira, etc. Eu tenho essas valências. Essa interdisciplinaridade que, nesta exposição em particular, se revelou, pois trabalhei com biólogas, cientistas na área do universo marinho. Isso dá-me um leque muito maior de possibilidades que acho que muitos artistas sendo só “puros e duros”, que são muito bons tecnicamente, não têm. Falta-lhes essa perspetiva exterior do seu trabalho no momento do processo artístico. Eu acho que isso é importante.

Quando surge a arte na sua vida? Os seus pais tiveram alguma influência nesta sua paixão? Mais precisamente o seu pai, que tem uma longa carreira como fotojornalista? 

Na parte do teatro, claramente a minha avó paterna, que foi atriz amadora em adolescente. Era uma contadora de histórias e eu acho que vou beber muito a isso. Depois também pelo facto dos meus pais, mais o meu pai, sempre ter tido uma visão artística de tudo, não só da sua profissão, como daquilo que o rodeia. Ele obrigava-me a ir à Gulbenkian todos os fins de semana, levava-me a todos os espetáculos que ia fotografar… A minha mãe também tem uma forma muito poética de ver as coisas. A minha veia artística pode ter vindo daí, mas não relaciono conscientemente. Sempre tive esse privilégio de ter contacto com as artes performativas e plásticas, mas a minha influência foi sem dúvida a Filosofia.

Como é que a Filosofia e este tipo de arte se relacionam? 

A Filosofia faz-nos questionar sobre tudo e sobretudo faz-nos questionar de forma, julgo eu, inteligente e argumentativa, sobre todas as dificuldades e problemáticas da nossa vida. Aquelas para as quais não conseguimos arranjar respostas. Isso cria uma ânsia, para quem a estuda, de poder responder de certa forma e essas questões que são, em si mesmas, inatingíveis. A arte é a resposta. Nós não temos de saber tudo, não temos de arranjar respostas para tudo, mas é interessante vermos com outros olhos, ouvirmos com outros ouvidos… Essa sinergia sensorial e cognitiva leva-nos a criar peças belas, fantásticas…

E qual a importância da arte contemporânea? 

Veio lançar novos paradigmas porque veio criar estruturas mais populares e mais democráticas para a sua interpretação. Se falarmos com as pessoas comuns, que precisam de ser resgatadas pela arte, vemos que há muito medo. As pessoas têm medo da arte. Têm medo de desenhar, de fazer um risco, como se a arte fosse um bicho de sete cabeças… Não é! A arte contemporânea veio abrir esses novos horizontes, tem este valor educacional. Permite-nos ter uma visão alargada, como se fôssemos um pássaro, de poder aplicar a arte a várias coisas da nossa vida. Esse é um fator total de desinibição do ser humano. Antigamente, com a arte, fazíamos arte. Hoje pensamos com a arte! É importante não perder este fluxo incrível de artistas que estão a criar. Há muito boa arte, muito diferente.

Como é que, por norma, começa um novo projeto? 

Comigo acontece sempre com um conceito, por isso é que gosto de desenho. Para mim o desenho é pensamento e o pensamento é desenho. Não quer dizer que depois a coisa não se transforme… Estou sempre ancorada em algo que me seja importante, que seja importante para o quotidiano, que está no meu pensamento, na minha cara. Eu sou bidimensional. Uma pessoa da escrita e da crítica, que começa a utilizar as mãos para poder ir mais além.

O Museu da Quinta de Santiago iniciou a temporada expositiva de 2022 com a inauguração da sua exposição. Profundezas. O que significa para si este conjunto de obras? Como surgiu esta colaboração?

Este projeto surgiu há dois anos, já em plena pandemia. Eu andava a congeminar na cabeça os sítios onde o mar fosse importante para a sociedade, para a economia local e tenho uma ligação muito forte com o Norte. Achei que fazia sentido ser lá e propus o projeto ao Museu da Quinta de Santiago. Queria um sítio onde nos podemos demorar a fazer qualquer coisa. Nas galerias é tudo muito fugaz. Portanto, propus e recebi uma resposta positiva. Acharam muito giro, mas com a pandemia acabou por ficar tudo em suspenso. No início deste ano voltei a ser contactada pelo museu para avançar com o projeto, numa altura em que eu já não me encontrava a trabalhar nisso. O ano de 2022 será um ano em que muito se falará dos oceanos e esta exposição vem casar muito bem com isso. Eu já estou a desenvolver um arquivo gráfico sobre as espécies marinhas portugueses, continentais e das ilhas, desde 2013. Uma coisa minha, mas que acho muito importante. Vejo o mar como um fascínio pessoal e como sou muito presa à ciência, para mim a arte faz-se no lugar. Experienciar ao mesmo tempo que criamos… Foi-me lançado o desafio de trabalhar diretamente com o CIIMAR (Centro de Investigação Interdisciplinar do Mar e do Ambiente), e de repente, tudo aquilo que eu havia pensado e que já tinha realizado, “perdeu-se”. Foi um “pegar” na ciência para “brincar” com a arte. Peguei em partes reais, num inventário de espécies que de facto existiam, e misturei-lhe criatividade. Tive passeios nas praias, conheci biodiversidade que nunca tinha visto, passei vários dias nos laboratórios a perceber o que estavam a investigar, ver desenvolver… Tudo isso me abriu um leque de oportunidades.

Qual a sua ligação com o mar? 

Quando era pequenina chamavam-me “menina do mar”. Tenho uma ligação muito próxima com ele. Mas agora veio-me à cabeça o voluntariado que fiz na Avenida Almirante Reis, com pessoas do Bangladeche. Conheci pessoas que nunca tinham visto o mar e, quando o viram, choraram… Isso para mim foi extraordinário. Também vivi em várias partes do mundo, sempre perto dele (mesmo que o mar seja sempre diferente porque são as pessoas que o “fazem”). Sempre quis trabalhar sobre ele, até porque acredito que nós carregamos o mar dentro de nós quando temos um bebé. Eu carreguei-o, carreguei o infinito… O mar é esse infinito poético, ou pode ser menos poético, que é ele mesmo sem a interpretação humana. 

Qual a principal intenção com esta exposição e qual a sua importância?

Acho que não há um objetivo. Penso só no que esta exposição pode oferecer às pessoas e à cidade. Como um contributo, uma contemplação, mas também uma fonte de conhecimento. Há muita gente que foge porque tem medo, é um terreno desconhecido. À medida que trabalhei no projeto fui percebendo: “Ah! Há florestas marinhas aqui! Ah! Há espécies que existem aqui que não existem no Algarve ou nos Açores! Ah! Há fenómenos diferentes!”. Todas essas coisas começam a fazer sentido e são o motor dos trabalhos. Há uma motivação pessoal e há a vontade de dar a conhecer às pessoas coisas a que não estão habituadas. Tenho sempre isso bem presente na minha cabeça. Nunca faço nada sem ter a consciência que quero melhorar e elevar as pessoas.

E as peças? Que peças constituem esta exposição? 

As pessoas podem ver pinturas que são feitas com 50 % de imaginação e 50% de realidade, quase como se fosse uma receita gastronómica. Além disso, podem ver esculturas que, por questões da própria materialidade da natureza das espécies, quis reproduzi-las. Há trabalhos com resina, com acrílico… Trabalhos que ficam. Uma mistura de materiais que criaram plasticamente os efeitos pretendidos. Há também algumas instalações e vai haver também atividades de exploração sobre esta exposição, o que me agrada imenso. As pessoas também podem ver alguns desenhos mais científicos, com escalas reais.

Acredito que o seu trabalho também se destaque pelas cores que utiliza. Qual o papel que estas desempenham?

Claro! São cores que à partida não se veem mas que existem! Microscopicamente elas estão lá. Fizemos “zoom” a determinadas espécies marinhas e elas têm uns amarelos espetaculares… Eu tento dar essa visão microscópica dos habitats dessas espécies animais e vegetais. Não quero perder esse lado estético. A cor interessa, a vibração estética. Quero sempre oferecer uma experiência sensorial aos visitantes.