Errôr. “Linda Martini não é o tipo de música que vais pôr a tocar durante um jantar de amigos”

Errôr. “Linda Martini não é o tipo de música que vais pôr a tocar durante um jantar de amigos”


De dentes afiados, os Linda Martini apresentaram na última sexta-feira o seu mais recente disco, Errôr, um álbum tenso e marcado sonoramente pela pandemia e pela ascensão do fascismo na Europa. O sexto álbum da banda portuguesa é ainda marcado pela saída de Pedro Geraldes, membro fundador do conjunto.


Encontramo-nos com os Linda Martini num café em Santa Apolónia com vista para o Tejo. Era uma manhã quente, com o sol a brilhar bem alto enquanto se conversava sobre o novo disco da banda, Errôr, recordando como foi criar música durante a pandemia e, entre risos, recordar como cada membro da banda teve de gravar um trecho da música Eu Nem Vi nos seus telemóveis, nas respetivas casas, enquanto cumpriam o isolamento.

Este descontraído ambiente não parecia indicar que, no dia anterior à entrevista, de uma forma algo inesperada, pelo menos para os fãs, os Linda Martini revelaram que o guitarrista Pedro Geraldes, um dos membros fundadores do grupo que conta quase duas décadas de existência, estaria de saída da banda, dias antes da estreia de Errôr, lançado na passada sexta-feira.

André Henriques, Cláudia Guerreiro e Hélio Morais explicam ao i que continuam com a mesma vontade de continuar a fazer música e dar concertos, especialmente de poder finalmente mostrar as novas músicas de Errôr, um dos discos com os dentes mais afiados da longa discografia da banda.

 

De onde surgiu a vontade de lançar agora o Errôr?

Cláudia Guerreiro (CG): Todo o trabalho artístico depende de uma regularidade, não só da inspiração do momento. E os frutos apenas começam a surgir quando temos esta regularidade. A verdade é que só conseguimos sustentar a nossa arte se cumprirmos este calendário. Na indústria da música é necessária esta regularidade de lançamentos, se não, não existem concertos ou outros eventos importantes. Isto é uma necessidade criativa e profissional. 

André Henriques (AH): Para mim, existe ainda algo antes. Já fizemos muitos trabalhos além da música na vida, e continuamos a fazer, mas não há nada que nos dê mais gozo do que isto. É um lugar muito especial na nossa vida, tivemos a sorte de encontrar as pessoas certas e outras que já passaram e que nos permitiram fazer algo que adoramos fazer, que nos permite receber algum carinho do público e um retorno financeiro. É uma bênção.

Estavam a falar sobre a importância de criar música juntos, mas este foi criado durante a pandemia. Isso colocou algum entrave ao vosso processo criativo?

Hélio Morais (HM): Tivemos sorte, entre os concertos que demos no Coliseu, em janeiro de 2020, fizemos uma residência na Gafanha da Nazaré, ao abrigo do 23 Milhas, um projeto cultural de Ílhavo, e compusemos e gravamos as estruturas de 11 das 12 faixas deste disco. A parte instrumental foi praticamente toda feita aqui, só as letras, da responsabilidade do André, é que acabaram por ser criadas mais tarde.

AH: Na sua génese, este é um disco pré-pandemia, mas os textos foram completamente contaminados com tudo aquilo que foi acontecendo durante a pandemia. Funcionamos sempre em oposição face ao último trabalho que fizemos, acho que este é o nosso disco mais denso e pesado. No último álbum, Linda Martini (2018), recuperávamos alguma energia do Casa Ocupada (2010) e existiam músicas mais diretas, cruas e aceleradas. Agora, voltámos a baixar a intensidade, mas isso trouxe mais peso e temas mais negros. Nas letras, isso é bastante refletido, não existem tempos mais negros que tenhamos vividos do que estes últimos anos, em particular na música, e acabámos por ir mexer um bocado na ferida. 

Descreveria este álbum como sendo um “disco pandémico”?

AH: Acho que não é só sobre a pandemia. Foi, sem dúvida, contaminado por ela, mas também está aberto a outras leituras. Podem existir referências óbvias, onde se fala de máscaras, de termos estado confinados… mas acho que não se encerram ali. Daqui a dez anos podemos ouvir o disco e, quem não passou por estes momentos, não ficará necessariamente colado a essa sensação.

Este é sem dúvida um disco bastante político e isso sente-se em músicas como na faixa E Não Sobrou Ninguém. Sentem que, entre os vossos trabalhos mais recentes, este é aquele que tem os dentes mais afiados?

AH: A culpa é precisamente dessa música, que aborda o racismo, a ascensão do fascismo na Europa e não só, por isso, confere um pendor político mais forte. A verdade é que nos discos anteriores de alguma forma, sem querer erguer bandeiras ou doutrinar as pessoas, sempre fomos abordando questões sociais e políticas, como a Cor de Osso, do disco anterior, da Ratos do Turbolento (2013), e muitas outras canções que, numa primeira leitura, podem não ter essa visibilidade, mas se calhar foram escritas com esse condão. Quando olhamos para este ano horrível que todos tivemos, estando em casa e sermos constantemente bombardeados com notícias assustadoras como as manifestações anti-racismo ou declarações como “não existe racismo em Portugal”, deixam-nos boquiabertos. Estamos a falar de coisas sérias, não estamos a brincar. Estando com mais tempo livre, tivemos mais tempo para pensar neste assunto e isso mexe connosco, apodrece-nos e deixa-nos tristes. Isso refletiu-se neste disco. Mas é complicado afirmar que este é o disco mais político. 

CG: Nos discos anteriores já tínhamos bastantes referências a momentos que nos foram marcando, mas neste álbum fazemos mais do que um “piscar de olhos”. As músicas são muito mais diretas do que nunca e algumas parecem uma chapada de mão aberta. 

HM: Acho que este disco aborda mais diretamente pessoas da política e, por isso, pode existir mais essa sensação, mas a política não se encerra nos partidos ou nos poderes legislativos. Política é aquilo que fazemos no nosso bairro, com as pessoas que nos rodeiam, tudo é político, até o amor. Nesse sentido, não acho que seja o mais político, mas sim o que toca mais diretamente em assuntos concretos, como a ascensão de um certo tipo de partidos atuais.

Além das letras, o instrumental também parece refletir estas tensões. Foi uma forma de exorcizar alguma frustração?

AH: Para nós, a música continua a ser um recreio. No sentido em que gostamos de fazer coisas que nos divirta e que nos de gozo e a música que nós ouvimos desde sempre é aquela que nos faz sentir alguma coisa, e esse sempre foi o nosso mote. Por isso, às vezes procuramos sons mais tensos e acelerados, com um pico de energia, ou então para sons mais angustiantes e introspetivos, como é o caso de Errôr. Não sabemos fazer música de outra maneira. Temos que sentir algo, mesmo que não sintas enquanto ouvinte, o grupo precisa de sentir enquanto está a tocar. A melhor sensação é quando uma música nos dá um arrepio. Esse é o nosso barómetro. Se estou envolvido e preocupado com o trabalho e se conseguimos ficar arrepiados e emocionados com o que estamos a fazer é um bom mote para quando as formos partilhar com alguém.

Quando é que sentiu essa emoção tão específica na gravação do Errôr?

AH: Às vezes acontece até antes de colocar letra, porque o instrumental tem uma carga muito forte. É como quando vês um filme e a banda sonora por cima de uma imagem te emociona, sem perceberes bem porquê. 

HM: Lembro-me de dois momentos específicos, na final da Eu Nem Vi, antes sequer de ter a letra, era uma música muito emotiva, porque tinha um crescendo muito intenso. O final da E Não Sobrou Ninguém foi a mesma coisa, só me dava vontade de partir a bateria.

É interessante as fases pelas quais este disco passou, nomeadamente, o tempo que esteve a “maturar”.

AH: O disco teve sucessivos atrasos no nosso calendário. O nosso objetivo era gravar o disco depois de terminarmos a residência, fevereiro de 2020, mas com a pandemia era impossível. Daí também o nome de Errôr, que pode significar erro, mas também de errante e de andarmos sem rumo. É um reflexo do que aconteceu com este disco. Não podíamos estar juntos, falávamos por telefone ou por zoom. Isso levou a alguns acontecimentos caricatos. Gravámos o coro da Eu Nem Vi, que introduz a música, no estúdio, mas saiu tudo mal (risos). Quando o Santi Garcia [produtor de Errôr] abriu o projeto avisou-nos que estávamos todos fora de tom. A única solução foi cada um gravar cada em sua casa com o seu telemóvel. O resultado final acaba por acarretar uma certa simbologia, um disco gravado durante a pandemia e o seu começo foi gravado “cada um no seu quadrado” a gravar as suas vozes.

Foi um processo frustrante?

CG: Pior foram as bandas que lançaram discos, mas não tiveram possibilidade de os apresentar. Um ano depois dos discos serem lançados já ninguém lhes liga, é um disco morto.

HM: Eu e o André passámos por isso com os nossos discos a solo e é uma experiência que não queremos repetir. Por mais que fosse frustrante estar com o disco nas mãos, pior seria não o aproveitar. Foi uma fase complicada para a promoção das bandas. Não tens como fazer as pessoas ouvir a tua música. No caso de Linda Martini, os nossos discos são muito barulhentos, não é o tipo de música que vás pôr a tocar durante um jantar de amigos. É uma experiência mais pessoal. Nem todos os momentos do teu dia, são propícios para ouvir Linda Martini. Há artistas, nomeadamente os de música urbana, que continuam a fazer dinheiro com a música porque têm uma presença muito forte no streaming, mas no caso de bandas de rock existe uma série de variáveis a ter em conta. É necessário fazer promoção, sair na imprensa, estar nos festivais e nos seus cartazes para o nome continuar a ser reconhecido. A forma de capitalizar é completamente diferente. 

Um dos assuntos fundamentais deste trabalho é a saúde mental, um tema que está muito presente na música Super Fixe, que funciona como um diálogo entre dois amigos. Como surgiu a ideia de fazer essa música e essa conversa?

 AH: Na altura, morava perto do nosso estúdio, ia sempre a pé ou de bicicleta e muitas das letras surgiram nesses 15 minutos de viagem. Essa letra foi uma delas. O diálogo que se pode ouvir, entre dois amigos, foi algo pelo qual já todos passámos. Quando nos perguntam se estamos bem e dizemos que está tudo bem quando na realidade não está. Uma coisa muito portuguesa, dizer “que se vai andando”. Muitas vezes não queres partilhar como efetivamente te sentes ou não te sentes à vontade para o fazer…

CG: Ou estás a enganar-te a ti próprio (risos).

AH: A música parte desse ponto de vista. Mais uma vez, nesta música, existe o subtexto da pandemia. Se não tivesse saturado de estar fechado em casa, se calhar esse tema não me teria surgido. Um período onde as pessoas passaram mais tempo sozinhas, sem os seus amigos e familiares mais próximos e sem as suas rotinas. Muitas vezes mascaramos as nossas emoções e a importância de nos abrirmos um pouco mais. No fundo, esta música acaba por ser muito irónica, mas o que quero transmitir é que é importante teres alguém com quem falar para poder partilhar a mais profunda das alegrias ou das tristezas.

Em retrospetiva, é impossível não associar essa música à saída do Pedro Geraldes da vossa banda.

HM: À posteriori podes fazer as interpretações que quiseres. 

AH: Estar numa banda é como estar numa relação, sejam amorosas ou com amigos, e, obviamente, existem encontros e desencontros. Depois de algo acontecer, é fácil olharmos para uma música e fazermos essas ligações. É como veres um filme sobre o final de um romance depois de teres terminado uma relação. Agora qualquer pessoa pode fazer as suas leituras das nossas músicas. Mas na verdade, as canções foram feitas com ele, já existem há mais de um ano, portanto, não tem qualquer ligação.

Uma questão que muitos fãs estão curiosos por perceber é o que é que vai mudar nos Linda Martini depois desta saída, as dinâmicas da composição de músicas, como vão ser os concertos…

CG: Há uma coisa muito óbvia que muda, deixamos de ter o Pedro connosco, mas, para já, somos nós os três. Vamos ter um amigo a tocar connosco nos concertos, que não vai funcionar como uma substituição do Pedro, porque cada pessoa tem o seu espaço nesta banda. Será alguém que vai ter em cima de palco o seu espaço para nos ajudar, mas daqui para a frente estamos preocupados com os concertos que estão a chegar. Em termos de futuro vamos ter de esperar, deixar passar os concertos de apresentação para percebermos quão diferente será criar uma música nova. 

AH: O facto de também termos alguém a acompanhar-nos ao vivo é porque, até agora, a banda tem funcionado sempre com duas guitarras e faz sentido estas canções novas serem interpretadas dessa forma. No futuro, tal como a Cláudia disse, ainda não sabemos como vai ser, podemos optar por convidar um amigo para ajudar na criação das músicas ou podemos passar a trabalhar apenas os três.

AH: A notícia ainda é muito recente, mas fiquei bastante emocionado com a forma como as pessoas acolheram a notícia, com o devido respeito por ambas as partes. As pessoas que nos acompanham há mais tempo e conhecem o nosso trabalho sentiram esta notícia como algo que não queriam ouvir, mas de alguma forma perceberam que a vida tem destas coisas. No meio de todas as coisas boas e menos boas é preciso encontrar um caminho para continuar a partir desta encruzilhada. Vamos continuar, o Pedro continuará também e é importante que as coisas aconteçam assim.

Parece ter sido uma notícia tão inesperada para nós, os fãs, como para vocês, a banda.

CG: Para nós, não foi uma notícia. Isto é o mesmo que ter uma relação, se consideras que uma separação é uma notícia, então se calhar não estiveste atento. Chegou uma altura em que todos os membros da banda perceberam que era a altura certa para ir cada um para o seu lado. As coisas não têm alturas certas para acontecer, nas relações não existem alturas certas, as coisas acontecem quando tem de acontecer e cada pessoa lida como tem de lidar.

Mesmo assim conseguiram manter o alinhamento da banda há quase 20 anos, não são todas as bandas que conseguem esta proeza. 

HM: Exatamente e é normal, todos já tivemos momentos em que estivemos mais desligados da banda.

AH: E já fomos cinco, quando começámos, com o Sérgio Lemos, que, na verdade, era o grande motor do grupo. Os Linda Martini surgiram porque eu, o Hélio e o Sérgio tínhamos outra banda, mas ele é que decidiu que queria formar outro grupo com um som novo. Se existe alguém culpado por hoje estarmos aqui sentados é uma pessoa que já não faz parte da banda há mais de dez anos. Na altura, foi uma perda e foi algo com que tivemos de lidar, mas olhámos para quem ficou e pensámos: “Temos vontade fazer isto ou não?”, que é um bocado o que está a acontecer agora. Temos vontade de continuar a fazer música juntos, temos um disco o que adoramos e o que queremos apresentar ao vivo, temos pessoas que estão curiosas para ouvir, então vamos avançar. Infelizmente, não é algo novo para nós. Mas é o que estavas a mencionar, poucas são as bandas que aguentam duas décadas juntos sem qualquer tipo de alteração na sua formação. Ainda, no outro dia, estávamos a falar sobre os Dead Combo e como antes da pandemia já estavam a planear uma tour de despedida. Eles devem ser uma das poucas bandas portuguesas que começaram exatamente no mesmo ano que nós, em 2003, e também, para eles, já começava a existir uma ideia de conclusão e de fechar aquele ciclo.

Suponho que tenha sido uma experiência introspetiva e que vos tenha posto a pensar se valia a pena ou não continuar com a banda.

AH: Acabar a banda nunca foi algo que tivesse passado pelas nossas cabeças. Há muita vontade de tocar, já fizemos todos muita coisa, até fora da música, e gostamos genuinamente de o fazer. Não há razão mais forte que esta. Somos felizes e não há dinheiro nenhum do mundo que possa pagar isso. Tive vários trabalhos onde era profundamente infeliz, das 9 às 18, e sou muito mais feliz por ter a sorte de poder tocar com pessoas que gosto. Não houve sequer a tentação de mandar isto tudo às urtigas e dedicar-nos à pecuária (risos).

Estávamos a falar sobre a longevidade do vosso grupo, sentem que com o passar do tempo, a vossa audiência foi envelhecendo ou está a renovar-se?

HM: Olho muito para o público quando estou a tocar e uma das coisas que costumo reparar é que a idade das filas da frente mantém-se. O que acontece é que o pessoal que costumava ficar nas filas das frentes vão se chegando mais para trás. Alguns, obviamente, seguem outros caminhos, mas o que ficam, agora, preferem ficar onde o som é melhor, junto ao técnico de som. Há uma altura em que és muito novo e o teu objetivo quando vais a um concerto é teres aquele sentimento de pertença. Quando envelheces, a tua vontade de experienciar o concerto muda. Mas continuo a sentir essa vitalidade, acho que temos um público bastante eclético.

E quem vos ajuda a cantar a Cem Metros Sereia no final dos concertos, ainda são os mais novos?

AH: Olha que não sei, os velhotes quando já estão bêbados, juntos do bar, acabam por ceder à nostalgia.

HM: Enquanto tivermos gente nova nas filas da frente é sinónimo que o público se está a renovar e isso é sinónimo de vitalidade. Lembro-me de, às vezes, ouvir colegas de profissão se queixarem que só têm miúdos na fila da frente. Mas é absolutamente normal, isso é uma coisa boa.

CG: Pode ser algo estranho, já não te relacionas da mesma forma com aquela geração, mas por outro lado eles acabam por se relacionar contigo e com a tua música. 

HM: É uma forma de também tu te sentires jovem, porque tens uma série de gente jovem a vibrar com aquilo que tu fazes.

Enquanto houver pessoas a gritar o refrão da Cem Metros Sereia faz sentido continuar com os Linda Martini?

CG: Até mesmo que parem. Não podemos depender da vontade dos outros. Se um dia chegar a altura em que ninguém goste de nós e que deixem de ir aos concertos, se calhar mantemos uma banda e vamos só tocar aos fins de semana e ensaiamos juntos, tal como quando começámos. Nessa altura não tínhamos público e era só para curtir. 

AH: Nas últimas semanas, temos estado fechados no nosso estúdio a ensaiar as músicas e estamos a adorar esta experiência de reaprender o disco. Isso dá nos um gozo enorme e, mesmo não tendo público, é algo que adoramos fazer.