Por mais justificações históricas, políticas, culturais, étnicas e económicas que Putin dispusesse para justificar exigências relativamente à Ucrânia, a invasão bárbara que ele encetou retira-lhe qualquer legitimidade. Putin transformou-se em mais um dos grandes ditadores europeus dos últimos 150 anos, em que avultam Hitler e Estaline.
Hoje, é óbvio que o ex-KGB passou os últimos anos a pensar, fundamentalmente, em recuperar uma certa dimensão soviética e czarista, umas vezes através da diplomacia, outras pela economia e, outras ainda, pela força das armas. Tudo isto amparado em dois pilares em que é especializado: a mentira e o cinismo.
No seu mandato de 22 anos e que deseja prolongar até 2036, Putin interveio já uma dezena de vezes em conflitos nacionais de países europeus e da Ásia Central que considera satélites da Rússia, esmagando movimentos sociais de protesto, tentativas de implantação democráticas ou simples manifestações de protesto por melhores condições de vida.
Apesar de alguns progressos, a Rússia de Putin permanece um país pobre, com um povo amordaçado, manipulado e obediente. As internas são tratadas com violência inaudita, seja qual o regime e o tempo. Ainda hoje, alguns pagam a coragem de discordar com a vida. Em geral, os russos sempre foram simultaneamente submissos, conquistadores e violentos. Tanto atacam como se transformam num povo heroico perante qualquer invasor que invariavelmente derrotam, esmagam e martirizam de seguida. A história mostra muitos momentos de uma resistência gloriosa. Só que as vitórias sobre o inimigo nunca foram depois revertidas a favor do próprio povo russo e muito menos do derrotado.
Na Rússia, exatamente como na China, não há, nem haverá democracia. Mas, ao contrário da China, na Rússia o progresso é incipiente, como o demonstram todas as estatísticas. O gigantesco reino de Putin é a coutada de uma classe dirigente que mistura habilmente conceitos e procedimentos fascistas e comunistas, regimes que sempre foram próximos e estranhamente compatíveis, como sabem os polacos melhor do que ninguém.
A Ucrânia, dentro da sua relativa artificialidade e das fronteiras estabelecidas há 30 anos, aproximou-se muito da Europa em termos de valores e práticas, apesar de não se ter conseguido libertar de uma teia de corrupção dos seus oligarcas, que, entretanto, foram os primeiros a abandonar o país (quantos estarão em Portugal, ao abrigo de duplas cidadanias?). O grande fluxo de emigração ucraniano contribuiu também para a existência de novos horizontes e o desenvolvimento de uma vontade firme de se tornar um país igual aos do Ocidente democrático.
Num processo específico, mais lento e condicionado, o povo ucraniano evoluiu, tornou-se mais europeu, estudou, pensou por si e quis ser ocidental, tal como os polacos, os romenos, os checos, os eslovacos, os bálticos e os da ex-Jugoslávia. Basta ver as imagens e acompanhar as emissões de televisão desses países para perceber a diferença de capacidade de expressão desses povos libertados, que hoje vivem em democracia. Não há comparação possível com os que continuam na alçada de Putin e dos seus regimes satélites. A diferença é abissal. A ignorância e o obscurantismo são a primeira arma das ditaduras, como os portugueses bem sabem. E como sabem os oprimidos pelos regimes religiosos extremistas ou pelas ditaduras de todos os quadrantes que existem em África. Isto para não falar das opressões bolivarianas e castristas da América Latina, ainda que Cuba tenha escapado a esta bitola na educação.
Quando há que escolher entre o que existe na Rússia, na China ou a liberdade da Europa e da América do Norte, ninguém hesita. O drama é que há uma realidade que impede essa livre escolha. E ela está assente em superpotências que nunca deixarão que tal aconteça.
Apesar da sua resistência momentânea e corajosa, é já claro, depois dos acontecimentos mais recentes, que os ucranianos não vão concretizar o sonho europeu. É bem possível que os moldavos também não concretizem. Até a Suécia, para não falar dos países bálticos e da Finlândia, já foi ameaçada por um Putin, cuja deriva remete para o descontrolo de Hitler, a partir de 1942. Putin não quer nem tem nada para negociar. Vai concretizar este passo e, se o permitirmos, dará outro a seguir.
Perante este cenário, a União Europeia deixou finalmente a sonolência e avançou com sanções económicas pesadas, depois de anos a fazer negócios em que abdicou de princípios. As retaliações vieram tarde, mas têm grande eficácia, mesmo que tenhamos que pagar uma fatura “boomerang” pesada. Como é habitual, o país europeu mais determinado em enfrentar a ofensiva de Putin é a Grã-Bretanha, com o seu ADN de resistência. Em muitos outros proliferam os chamados “idiotas úteis” que louvavam a gloriosa URSS nos anos 60, dos quais Sartre era o expoente máximo. Embrenham-se em explicações históricas que, nem por serem verdadeiras, são admissíveis. Propositadamente, ignoram que há momentos em que se está do lado do direito dos povos à sua liberdade dentro das fronteiras convencionadas ou se salta para o lado do agressor ditatorial. Por cá, temos uma variante rara da estirpe dos anos 60 a que se dá o nome de PCP. O grupo moribundo tornou-se o maior aliado da extrema-direita, seguindo as pisadas de Estaline, o amigo de Hitler com o qual dividiu a Polónia. O PCP, não fosse a resistência que mostrou ao Estado Novo, não deveria ter lugar à mesa da democracia portuguesa. Em todos os conflitos tem estado do lado dos criminosos e dos atentados à liberdade. É tão importante estabelecer um cordão sanitário à volta do PCP como do próprio Chega, sendo que os dois partidos se entendem como Deus e os anjos. A sorte de António Costa ficou mais uma vez demonstrada no resultado eleitoral que o libertou da chantagem comunista e das falsas ingénuas moçoilas do Bloco de Esquerda.
No mundo ainda livre, dos Estados Unidos à Oceânia democrática, multiplicam-se ações de protesto contra Putin, as quais não darão em nada. Os ucranianos estão entregues a si próprios e já perderam praticamente tudo o que construíram, com enorme sacrifício. Vale-lhes a solidariedade de povos europeus que com eles se identificam através de valores políticos, culturais e religiosos de hoje. É isso que explica o carinho com que os europeus livres (designadamente os seus vizinhos diretos) os estão a apoiar e receber. Há uma diferença enorme de sentimento com o que sucede a refugiados oriundos do Oriente, de África e sobretudo do mundo islâmico, o que, não sendo minimamente justo, é compreensível. É ilusório pensar que alguma coisa pode ser feita no sentido de repor a situação anteriormente existente na Ucrânia. O futuro é incerto e dramático. Putin dará novos passos agressivos no mesmo sentido, sempre que sentir fraqueza no ocidente, na louca procura de um Império perdido.
A ideia do fim da história foi um equívoco para entreter jornalistas e políticos. Hoje, há um reinício mais ou menos nos termos em que as coisas estavam em 92, quando a URSS se desmoronou. No Ocidente, quem prezar a liberdade deve lembrar-se que há sacrifícios supremos que se tem de fazer por ela. Se, mais adiante, uma democracia da União Europeia ou um país-Nato for atacado, a resposta não passa pela economia, mas pelo confronto direto. Nem todos os povos são como os russos, que sempre viveram oprimidos e submissos. Os ucranianos de hoje e os polacos de sempre são exemplares em termos de resistência. Os povos bem instalados da Europa têm de ter consciência de que podem ter de pagar caro pela defesa da liberdade, um valor que pode ser bem mais efémero do que alguns pensam.
Escreve à quarta-feira