João Pedro Grabato Dias. “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso”

João Pedro Grabato Dias. “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso”


A par da sua obra pictórica, António Quadros (1933-1994) criou uma ficção absoluta, um poeta que refez o mundo a partir do ouvido e, sem ceder à música, produziu óperas cheias de tumulto e inquietação.


Nesta época em que, por regra, nada escapa aos terríveis inventários, a essa forma de atenção que esvazia e assemelha tudo, aos trabalhos dessa corja de glosadores, essas máquinas de ler, que misturam as coisas melhores com os embustes genéricos, que apanham e afinam um registo sensível ainda que estéril, face à competência mortífera desses guias de museu, é fácil de entender uma certa tentação da obscuridade. Mas, como escreveu Winnicott, se é um prazer estar escondido, é um desastre não se ser encontrado. Ora, como se sabe, “o silêncio decanta,/ evidencia o gesto menor”, e é difícil esconder por muito tempo, e mesmo que seja com fins misericordiosos, certos mortos, nomeadamente para que os vivos não se sintam desencorajados nesse ufano registo dos que reivindicam ser agora a sua vez.

Eugenio Montale acreditava que o conteúdo na arte estava a perder alcance e a diminuir da mesma forma que a diferença entre os indivíduos tem vindo a diminuir, sendo desnecessário assim um grande alcance. Mas se nos temos vindo a empobrecer, de tal modo que, como notava Walter Benjamin, a tendência hoje é para se sacrificar, pedaço a pedaço, a herança da humanidade, muitas vezes por uma centésima parte do valor real das coisas, isto com o fito de receber em troca a pequena mudança do “actual”, dá a sensação de que chegámos ao ponto em que a humanidade se prepara para sobreviver, se for preciso for, até à cultura. O essencial é que o faça rindo, dizia Benjamin, pois assim é ao menos possível imaginar que nalgum lugar essa risada emita um som bárbaro. “Suspeito muito”, anotava João Pedro Grabato Dias logo no seu primeiro livro de versos, “condicionado assim/ por este toque bárbaro, que o frio/ peixe que me habita, orla do estio/ é tão só uma ausência de clarim.// Aquartelados num imenso espanto/ de nada ser além do número, vamos/ marchando a par cantando ao vento.// Um tronco de cenário estende os ramos/ e as aves piam como canhões rolando/ …erros de um sonoplasta que nem vemos.”

Será preciso insistir no óbvio, lembrar que não somos vivos se perdermos o contacto com os nossos mortos. E pior que isso, se nem os tivermos, aqueles de quem dizer que se foram daqui, mas que em vez de descerem à terra, se afundaram em nós, perpetuando-se nas franjas do silêncio. Grabato Dias lembra-nos esta forma de pena capital em que incorremos hoje tão desesperadamente. Por receio da nossa condição transitória cortamos a ligação, alheamo-nos do que importa, perdemo-nos nessa amargura sem pausa. Mas: “Um morto esquecido é tantíssimo perigoso./ Cuidado. Eles foram-se/ para se fazer mais lembrados./ Se os recusamos aninham-se, somem-se/ e, vingativamente, viram a vérmina do futuro.”

É possível, assim, conceber a hipótese de que um morto possa ceder de vez em quando um pouco de humanidade aos que, estando vivos, não passam já de um número demasiado incerto, nebuloso, e que, por mais receio que tenham em despertar, acabarão por devolver-lhe um dia esse pouco com os juros próprios que o capital impõe, e até com os juros dos juros. A alternativa é cultivar os seus mortos. E Grabato Dias, quando ainda estava deste lado, dizia-nos isto dos seus: “Os meus mortos são severos. Exigem/ toda uma corte de pequenos ritos”. E dizia-nos ainda isto: “Devo velar os meus mortos./ Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los. Estar atento nas franjas do silêncio. Alguma coisa deve acontecer/ na espera. Alguma coisa, de algum modo/ virá aclarar-se.” E depois notava que “o silêncio é na verdade puro/ quando lhe damos um fundo irremediável”.

Essa morte como condição inescapável consegue fazer despontar a sua semente em nós, atingir-nos com a clareza das suas definições: “como um vírus bom, destroem tudo/ o que não é essencial”. “Nascemos nos limites do reino da morte/ com suas pompas, sua hierarquia, seus hábitos./ Deslizamos sem cessar nas entranhas desejáveis/ e os predestinados, esses sim, vão, voam, adiantam-se/ são belíssimos, têm o sangue dourado,/ e, na verdade, são já os nossos mortos.”

Tudo isto sacode essas cinzas e enredos gratuitos dos tantos que estudam certos latinismos e formas decadentes de modo a ficcionarem a sua relação com a morte, mas que dela apenas traduzem um sentido de agonia, que é, no fundo, sinal de incompreensão. Esses que imitam tão mal o silêncio dos mortos, na verdade, deles só parecem entender o cadáver, e são como a agulha buscando o fio, incapazes de o ver, como de desenhar qualquer gesto que possa coser as coisas em definitivo. Por isso, a sua linguagem é a da repetição, essa forma de ofensa com que nos vamos perdendo dentro do “mapa dos reinos do visgo”. “A noite não nos fala como uma mãe, ouve-nos,/ com a medonha compreensão das coisas fixas./ A noite é uma ultra luz intolerável que nos faz/ cegos a tudo o que não é essencial./ Por isso a noite traz um perfume rasgado/ de entranhas de pássaro, daí a sua crua violência/ original”…

Continuamos a ouvir falar muito da morte como as crianças que pedem que a luz do corredor fique acesa e a porta do quarto aberta, talvez por receio de falhar o salto entre a luz deste lado e aquela que se repercute nos sonhos, como se um degrau em falta pudesse ser o suficiente para que fossem engolidas pelo escuro. Mas essa morte já sem sujeitos é apenas outro sinal de paranoia, esses delírios que se afogam em suores frios depois de esgotadas as tristezas prudentes e o catálogo das mais banais crises nervosas. Isso são os infernos desses protagonistas que nos fazem “pensar num herói dostoievskiano que tivesse conta no banco” (Cioran). E alguns têm-nas até com somas bem chorudas.

A verdadeira decepção é outra coisa, mas para se chegar à poesia não vale a pena roçar de leve o desespero. Não basta à poesia a firmeza de ter a razão do seu lado, mas representá-la de tal modo que esta seja condenada à clandestinidade. É nessa clandestinidade que vamos encontrar hoje, de novo, um poeta como Grabato Dias, mesmo que recuperado agora com aquele requinte dos mortos que estiveram a apurar como vinhos de reserva, numa colecção dessas que serve de orientação às tias bondosas que gostam da trazer a caridade das suas flores e que passam com o seu odor fúnebre, desenhando a tal “serpente do préstito” a que Grabato Dias às tantas se refere. São essas tias que passam diante do poema “como a um objecto de museu a ver respeitosamente/ e conservado obsessivo numa memória de cartão postal”. Seja como for, quando todos os outros esforços para trazer de volta ao nosso convívio este perigosíssimo morto falharam, há que reconhecer que uma antologia da sua obra seria sempre um acontecimento editorial marcante e desejável. Ainda para mais num ano em que, no que toca a originais de poesia, não se consegue ir além dos dedos de uma mão no que toca a obras dignas sequer de menção.

É bom abrir um livro hoje, este Odes Didácticas (ed. Tinta-da-China), onde nos reaparece um poema que viu como noutros tempos já “estavam os suicidas todos à janela/ a gabarem uma vista significativa (…) e o ainda mexerem era a única coisa bela”. É bom que a mesma página vinque que “termos fígado é termos moral”. É bom também saber como vão e vêm os “doutores da cagança”, como “lá vai, já lá vai o repórter lírico da palavra fofa/ o anunciante veloz de sabonetes e cervejas de pranto/ o sub adjunto o delegado o logo abaixo o vice vícios/ o eterno promovível o bufo caseiro a mosca denunciante/ o bispinho bispote e as suas girls de sotaina striptusa”. Ler coisas destas é um pouco como fazer o bingo. Temos correspondências para tudo. E se nalgumas coisas estamos lá como cá, e é difícil dar pela diferença, “toda a gente entende, compreende, sabe, da inviabilidade/ da prótese que prolongue este fruto naquele galho”. E, no entanto, como não sentir que o passado tem debaixo do sapato a fronha do presente: “Que se liquide o império com a educação desejável/ neste ambiente de velório sem muitas lágrimas e algumas fardas/ acontecido por obra e graça da natureza dos frutos/ quando excessivamente maduros, caindo por si, caindo em si/ do galho da árvore histórica para o chão dos futuros”…

Seja tarde, seja que horas for, Grabato Dias, tal como outros depois de Eliot, sabe que o mundo não acaba com um estrondo nem um soluço mas com um homem a falar para si mesmo, e a lamentar que tudo tenha levado a isto. “Alinho os meus fantasmas por alturas/ já que o que é preciso é um critério./ Quem poderá acusar-me de complicado/ quando me vê tão simples a traçar enigmas?”

É próprio de alguém que diz de si que respira mal porque inspira demais, que faça da indagação, das perguntas um modo de rasgar de alto abaixo os equívocos da identidade, para se tornar esse ser de dimensão irresolúvel. “E porquê, a escrita? Por fácil? Por função gráfica cósmica?/ Por obediência ao único movimento capaz de interpretar/ Certos ritmos do espaço, quaisquer espaços no tempo?/ Quem lê? Quem recebe este sangue bombado de cóleras e revezes?/ Quem tanto abdica de si que o necessite?/ Quanto algo de quem escreve passa ao particular de quem lê?/ Que transmutação sofre o que se lê de quem escreve/ De modo a ser logo outra coisa à partida?” E num outro poema, recusando-se à prosápia, à ronha e à vigarice, admite as suas limitações: “Sim, estou a mexer nos parafusos. Não na mecânica./ O sistema trabalha. As peças é que não estão rodadas./ Não tenho veleidades de consertar coisa nenhuma./ Exerço a curiosidade como uma técnica e um ofício./ Questiono apenas para evitar o silêncio malsão.”

A poesia surge-nos aqui como a linguagem sujeita a uma função crítica, uma absorção radiante na crise de si, que se espelha com uma simetria fascinante nessas sombras verbais que às vezes parecem capazes de golpes de insurreição passando a ser elas a iluminar o percurso. É uma linguagem afinada, afiada, atenta a si, ouvindo-se e aos passos perdidos que se geram de apontar numa direcção ou noutra, uma razão que como “um mapa responde ao perecível dos rastros/ E admite a rasura póstuma, o desconto dos ventos,/ A conta das marés e das correntes desconhecidas/ A interferência dos pilotos ranhosos, o equívoco/ Das nuvens tomadas por Juno, o litoral fantasma.” Grabato Dias experimenta com a linguagem comum, aproveita dos seus frémitos e solavancos um sentido que escapa a um ouvido que se habituou excessivamente ao idioma e lhe perdeu essa indagação oculta, treina-se também nos colóquios de pássaros, vem e volta da infância, mas marcado, dolorido, não por desfastio como quem lança pedras a janelas já partidas por outros muito antes. (“Há quem risque apenas. Para perder o medo. Para ultrajar o papel, ultrajar o material/ A ver se acontece qualquer coisa de novo.”) Fala também a língua da intimidade, ainda que o faça com uma desenvoltura altissonante, e dessa confabulação de um discurso íntimo emergem as memórias num encadeamento poderoso e tocante que elevando-as a uma mitologia privada. Há aqui um esforço de fazer o levantamento da vida por trás das ideias, e também de trazer a vida ao seu ponto de partida. Sendo uma poesia cheia de recursos, não comunga nos gerais exercícios da intelectualidade, nessa distância ou clareza do que se submete aos rigores da busca do sublime, evitando sujar-se demasiado com coisas terrenas. Não participa de nenhum modo no “embuste do estilo” que tomou conta de grande parte da poesia que vamos vendo fazer as rondas. A esse embuste como o descreve Cioran: “dar às tristezas habituais um aspecto insólito, embelezar pequenas infelicidades, adornar o vazio, existir pela palavra, pela fraseologia do suspiro ou do sarcasmo.” Pelo contrário, Grabato Dias empenha-se, deixa-se todo no prego, volta depois, paga o que for preciso para se reaver, busca-se da virtude mais hiante aos desvãos mais inconfessáveis de si, tudo por um conhecimento sem antecedentes, profundo, numa forma capaz das mais drásticas variações, tudo para lançar a rede e capturar esse monstro, a consciência e as suas sombras, o seu corpo, o seu milagre, a sua dor. “Portanto (seguiram-me?) acabemos de uma vez por todas/ com todas as coisas lúdicas e gostosas e sem objecto/ A vida é uma coisa muito séria, cheia de finalidades/ de pontos de chegada e… Santo Marx! Que soneira./ Fiz uma finta em qualquer encruzilhada lá para trás/ e segui pelo erro da tabuleta que eu próprio mudei/ apontando para este ponto cardeal de fadigas…”

 “Instintivamente, instantaneamente”, o estilo de Grabato Dias é melhor descrito como uma energia, uma forma de propulsão do pensamento, das sensações, uma espécie de memória que tudo traga (“A memória é uma transparência em planos”), um modo de consciência que se eleva pondo em rotação as hélices da imaginação. Essa energia incansável chega a ser descuidada, abrupta, redundante, agarra o sentido de todas as maneiras, disputa-o numa refrega interior, consegue arrastá-lo e dar-lhe a maior sova, e depois ocupar-se a polir pormenores. É uma poesia com a melhor maquinaria da prosa, é tempestuosa, cheia de virtude e dada a indulgências no que toca a assonâncias e aliterações. Gosta de impor dificuldades ao leitor, extenuar e ameaçá-lo, para o seduzir de novo quando se tinha dado como perdido. E é neste aspecto que a antologia que, em boa hora, nos é servida, quando cotejada com o tanto que ficou pelo caminho, parece menos uma selecção do que um abate, uma mutilação, reelaborando uma harmonia fictícia numa obra cheia de tumulto, não podendo senão dar-nos uma ideia aproximada do mergulho em apneia que esta exige ao leitor. De resto, não há sequer uma nota editorial que esclareça o leitor sobre o critério usado e nem ao menos fica claro a quem coube a temerária tarefa de proceder a esta rusga, sendo certo que, numa obra em que a própria questão da autoria levanta problemas (pois se João Pedro Grabato Dias não é um heterónimo também não é um mero nom de plume), e tendo ainda em conta a feroz autonomia de cada livro, com acentuadas deslocações que se registam não apenas formalmente como também na “voz” que dita os poemas, no limite esta obra nem é passível de ser antologiada… Ainda assim, seria desonesto se disséssemos que a antologia não nos convoca a redescobrir esta pulsão tão radiante e dispersa. “Um enxame é um ser num infinito de formas/ Perpetuamente em pulsão e em trânsito (…) E pólenes subtis transmutam-se vertiginosos/ Em movimento, em acto, em coisa mais viva./ Esta contractilidade é o meu território/ Onde abundo quanto rareio”…

Não faltam aqui versos de estrondo, rombos no casco, tamanhas aventuras que começam no ouvido, que regista menos uma música do que uma infinidade de peripécias e estados de alma, sons de barbatanas larguíssimas à superfície de estranhas águas, programas de rádio para grilos, nada avaros sons, turbações tão claras, vozes de fim de mundo dando linha ao futuro – ele "não anda, sorri, levita, desloca-se nos hálitos"… É como uma sombra inventando a circulação de corpos novos, breves, vertiginosos. Do sépia arranca um delírio a ácido, desmonta o carrocel e põe os cavalos em debandada. Corre os riscos todos do fôlego absurdo que exigem os poemas longos, imensos, devaneios espantosos que nos relembram do estro daquela memória que em tempos cobria gerações, vinda de eras em que estava nela o eixo da própria realidade, e havia a disposição de um fascínio que se deixava estar, ouvir, talvez por causa do hábito da rádio, das vozes misturadas, do convívio capaz de criar as suas espécies. Poemas como uma habilidade longa de encadear, enovelar, capazes de engolir as infinitas peripécias no seu fulgor, no longo curso, um ritmo conhecedor, lições que só a espera, as coisas que se apanham lendo alto, ouvindo ainda mais alto, naquele estremecer da casa sujeita às antigas subtilezas, essas quase já esquecidas. Um verso com bichos da seda, com a casa toda a trabalhar para eles, até despontar o voo numa ânsia de outras cores. Estes modos de vir de outros lados, de uma outra educação: “Nunca cheguei a urbano: uma rua é sempre a borda da água/ Uma casa é sempre um porão e um quintal um convés./ O betão convence menos do que comove. Nem há/ Aço mais duro que olhar atraz entre o doce e o frio.// Tudo é escrita. Ainda que descobrindo a volúpia/ O prazer permanece sem deixar de ser a enfiada de coisas/ Enlatadas em sílabas herméticas que o tempo apura/ Pelo ajuste da realidade alheia, à nossa ausência.”

E nisto tudo seria feio, para efeito de um balanço biográfico final, arrumar tantos numa fila por trás de um só. Mas, no fundo, qualquer homem que passe mais tempo vigiando os seus mortos acabará por ter no seu silêncio um imenso cemitério, a ponto dos factos da sua vida lhe soarem como ecos: “Que tenho eu de comum com quem passou aqui primeiro? Persigo as minhas costas. Precedo o meu rosto./ Nesta fila de um, sou muitos, sou demais. Excedi-me/ em tudo e a partir de tão pouco, companheiros que ficam.” E se Fernando Pessoa se fascinou com o elenco da sua peça e nos serviu aquela trama obsessiva, enjoativa dos heterónimos, que “No adiar ficaram moendo caminhos como se andassem/ E estivessem vivendo enquanto razoavam sobre percursos”, António Augusto Melo Lucena Quadros (1933-1994) soube livrar-se do aspecto encenado, do rigor funesto, daquela “mística das vésperas”, soube trazer o humor como espingarda podre ao ombro, e foi um “multímodo mulato do argumento”, esse sim um triunfo, e desdobrou-se de acordo com a necessidade que teve, para não misturar demasiado coisas que tinha rodando em si, mas que eram tudo menos “cavalinhos de carrosséis”. Para os versos havia João Pedro Grabato Dias ou Frei Ioannes Garabatus, fez também uma aparição enquanto Multimati Barnabé João, depois havia o pintor que se assinava António Quadros, entre outras presenças que para darem de si o melhor podiam dispensar formalidades. Assim, foi artista gráfico e pedagogo, apicultor, reputado conferencista sobre a abelha africana e descobridor da Rosa Ramalho. Isto segundo a biografia que nos serve António Cabrita, que também dá a entender esse cuidado em fazer repartições servindo-se de diferentes nomes, pois “este país é tão pobre que não dá para fazer-se duas ideias acerca da mesma pessoa”. A frase é de Camilo José Cela, sobre o seu país, bem maior que o nosso, e Cabrita recupera-a com maior proveito face às nossas dimensões geográficas e sobretudo mentais no início do longuíssimo posfácio, cheio de verve, e que em grande medida recupera um ensaio exemplar com o qual tentava há anos chamar a atenção para esta obra esplendorosa de um poeta imenso que se sabia condenado a voar em “insectos sonoros” e vir pousar-nos nalgum ponto da consciência, não para beber uma gota do nosso sangue meio coalhado, mas para deixar nele uma gota do seu sangue dourado, actuando como um vírus, num silêncio decantado que nos arrebata e transcende: “É sempre um outro quem lê quem escreve/ Em cada verso está morto um desconhecido. Como um irmão que cresceu noutra terra/ O verso decompõe-se na nossa presença/ E acusa-nos de ausência e falta de novas.// Mas tudo está bem. Farei versos e irei morrendo/ No preciso final de cada um/ Até ao momento em que escrevendo o último/ Essa grande missanga de mortos avance sozinha.”