Carla Salsinha. “O comércio não pode depender exclusivamente do turismo”

Carla Salsinha. “O comércio não pode depender exclusivamente do turismo”


Presidente da UACS admite que muitas das lojas que se viraram para os turistas ainda estão fechadas e defende que a câmara tem que tornar locais, como a Baixa, não tão dependentes deste setor.


A presidente da União de Associações do Comércio e Serviços (UACS) de Lisboa não tem dúvidas de que o setor do comércio e serviços da capital foi fortemente afetado pela pandemia não só pelos consecutivos encerramentos como pelos reduzidos horários a que se viu sujeito nos últimos dois anos.

Agora que a normalidade começa a ser cada vez mais uma realidade, Carla Salsinha entende que é preciso que o comércio da capital não se vire apenas para o turismo, apesar de entender que é uma atividade bastante necessária ao país e que deve continuar a ser uma aposta no futuro. No seu entender, o primeiro semestre do ano é a verdadeira “prova de fogo” para quem conseguiu chegar até aqui uma vez que está a começar a pagar os apoios.

Lembra que, “seguramente” 10 a 15% das lojas fechou portas definitivamente e pede um olhar mais atento da Câmara Municipal de Lisboa para que a cidade volte ao “normal”. No que diz respeito à recuperação, a responsável prevê que os níveis de 2019 sejam retomados já em outubro mas “o primeiro momento de libertação” de Lisboa deverá acontecer já com o regresso dos Santos Populares.

Mas até lá há outros problemas a tratar como o aumento dos custos e também a falta de mão-de-obra, com a responsável a admitir que, trabalhar atrás de um balcão ou com atendimento ao público “não é uma atividade valorizada pelos jovens ou por quem inicia a sua atividade laboral”.

Volta à UACS numa situação ainda pandémica. Como encontrou o comércio em Lisboa?

Neste momento, o comércio na cidade de Lisboa está a precisar de uma atenção muito significativa por parte da nossa Câmara Municipal. Os indícios que são dados pelo atual presidente da autarquia [Carlos Moedas] são os melhores. O comércio da cidade de Lisboa e aquele que a União representa, esteve praticamente durante dois anos a funcionar em 50% da atividade.

Fomos aquele setor que obrigatoriamente teve de fechar. Nos confinamentos tínhamos praticamente todas as atividades obrigatoriamente fechadas porque 90% das nossas atividades não são bens de primeira necessidade – a roupa, os sapatos, a relojoaria… Não só tivemos as empresas fechadas nos três primeiros meses em 2020 como tiveram sempre uma faturação bastante inferior ao que era em 2019. Depois, em 2021, voltámos a fechar três, quatro meses. E vivemos muito de quem trabalha na cidade, de quem trabalha nos serviços, nas autarquias, nos gabinetes de escritórios de advogados, entre outros. A cidade esteve, ao longo destes praticamente dois anos, com mais de 50% da sua população em teletrabalho.

O que significa que as quebras ao longo destes dois anos foram brutais para o nosso setor, além de que ao longo destes dois primeiros meses tivemos uma característica adicional que é o facto de ter tido quase 1,2 milhões de pessoas em isolamento. Sendo Lisboa a capital, a maior parte dos isolamentos concentrou-se em Lisboa e Vale do Tejo. E o mês de janeiro e de fevereiro têm sido um desafio brutal porque as pessoas ainda não regressaram à normalidade, muitas ainda estão em teletrabalho e muitas estão em isolamento.

Pela primeira vez, ao contrário do que aconteceu nas várias fases da pandemia, este mês de janeiro foi a primeira vez que muitas empresas entraram o ano – os primeiros 15, 20 dias – encerradas porque alguém tinha sido infetado, o que levou a que muitas empresas estivessem totalmente encerradas nesse período. Outras tiveram que encerrar porque tinham vários trabalhadores com familiares infetados e estavam em isolamento e, como não tinham quem trabalhasse, acabaram por encerrar.

Isto foi uma realidade que não assistimos nas outras fases e, neste momento precisamos que o Governo, mas principalmente a câmara – porque é o poder local que nos pode dar mais apoio – olhe para o comércio de uma forma diferente e perceba que temos de apoiar e redimensionar o setor desta atividade. 

Há bons indícios disso?

Parece-me que os indícios são bons e disse isso no dia da minha tomada de posse. Uma das primeiras frases e um dos primeiros setores a quem o presidente da Câmara Municipal de Lisboa se dirigiu, foi para os setores do comércio, serviços e restauração da cidade. Isto demonstra que temos aqui uma viragem e que há uma tentativa de um apoio, uma reconversão.

E não falamos só de apoio monetário, é preciso olhar para o comércio, serviços e restauração da cidade de uma forma diferente e a nossa expectativa é grande num momento em que as empresas estão muito fragilizadas. 

Falando nessa fragilidade, também não começaram o ano da melhor forma com a proibição do Governo em relação aos saldos.

Teve um impacto muito significativo. Em termos do comércio temos três fases de atividade fortíssimas. São as alturas festivas, a Páscoa, depois temos o Natal que é por excelência um momento fortíssimo e depois temos o período de saldos de inverno – o de verão é um período fraco e o comércio não tem expectativa. Os saldos de inverno têm mudado nos últimos anos, muito fruto de se ter criado esta nova tendência de a seguir ao Natal se fazerem as grandes campanhas de saldos e grandes campanhas promocionais e também o espírito diferenciado.

As pessoas acabam por dar os cheques prenda, dinheiro, para que as pessoas possam escolher e comprar o que pretendem. E cada vez mais, as pessoas deixam muitas das compras que pretendem fazer para essa altura. Tudo o que seja de vestuário mais caro como os sobretudos ou os casacos, aquelas botas ou malas mais caras, as pessoas deixam para esse momento. Também acontece na parte informática, tecnologia.

Como logo a seguir ao Natal temos aqueles 10 dias de campanhas fortíssimas em que as empresas investem em publicidade, as pessoas aproveitam isso mais as trocas de Natal. Aquele período que vai do dia 27 ao dia 7, 8 de janeiro, tem sido nos últimos anos, muitas vezes, o equilíbrio de um ano mais difícil das empresas e até o preparar-se para os primeiros meses. E este ano isso não existiu porque houve essa proibição até ao dia 10. Depois associou-se às milhares de pessoas em isolamento. 

Isto levou a que as pessoas não tenham esse impulso e o período de saldos foi seguramente 50% inferior ao que foi o ano passado, num ano de pandemia mais intensa. Não nos podemos esquecer que o ano passado o confinamento só começou a 15 ou 16 de janeiro. 

Com esta proibição e também com a pandemia, nos últimos dois anos houve muitas empresas a virarem-se para o online?

Sim, há cada vez mais essa consciencialização de que o online é uma complementaridade do nosso setor. Não nos podemos esquecer que temos milhares de micro e pequenas empresas que poderão ter nas redes sociais – no Facebook e no Instagram – a sua divulgação mas que não têm capacidade – nem que seja por questões de stock – para terem uma loja online. E, se por um lado podemos olhar para um grupo Zara, por exemplo, que tem essa capacidade de poder fazer a venda online porque têm stock e centenas de lojas, uma pequena loja de bairro não tem essa capacidade para apostas no online.

A maior parte das micro e pequenas empresas o que fez foi começar a apostar nas redes sociais e a criar as suas páginas. Mas temos que ter a consciência que, pela dificuldade logística das vendas online, a internet é direcionada para estruturas com uma maior dimensão. Cada vez mais o comércio de proximidade tem a consciência que tem de estar também nas redes sociais. É uma tendência que não volta atrás. Mas o que faz a diferença do nosso comércio é o contacto pessoal, o chegar ao estabelecimento e termos a pessoa que nos conhece, que nos cumprimenta pelo nome, pergunta pela família, que sabe o número de calças que vestimos e o modelo que gostamos.

É o senhor da pastelaria que quando entramos já tem o café em cima da mesa com o bolo que sabe que gostamos. Há essa questão pessoal e há uma grande oportunidade – apesar de a pandemia ter sido um momento muito difícil para o setor – pela diferenciação que temos. Se formos a um bairro temos lojas diferenciadíssimas. O conhecimento e a ligação que temos ao consumidor final é algo que temos que potenciar e faz a diferença.

Além desta alteração, que principais mudanças trouxe a pandemia para estes comerciantes?

Acho que há três mudanças básicas. A primeira foi essa, a consciencialização de estar nas redes sociais, perceber que temos de divulgar o nosso negócio além da área geográfica onde estamos. Até porque muitas das pessoas que são residentes na zona, muitas vezes têm uma atividade profissional que não lhes permite conhecer todo o ramo de negócios que existe na freguesia onde moram. E o poder estar nas redes sociais permite chegar a mais consumidores fora mas também e principalmente dentro do próprio bairro.

A segunda visão é uma aposta na diferenciação, na qualidade dos produtos. Quem vai ao comércio local cada vez mais quer ir a negócios diferenciados. Se olharmos para as grandes cadeias de centros comerciais, mais ou menos temos as mesmas lojas. Quando se vai ao comércio local há uma diferenciação. É aquele tipo de produtos que é difícil encontrar nos outros sítios.

Temos assistido até à entrada de empreendedores, apostas na recuperação e tudo isso é um desafio que nos fomos apercebendo e que, se for com qualidade e com diferenciação, os próprios residentes vão e depois ainda promovem. Depois temos aquilo que acho que foi a mudança brutal que diz respeito à gestão de negócio a curtíssimo prazo. Normalmente as empresas são geridas – as grandes com outra dimensão, claro – de forma semestral ou trimestral.

Com a pandemia aprendemos – e com as incertezas – que a gestão passou quase a ser mensal ou semanal. E ainda há uma última: a perceção das questões ambientais e da necessidade que temos em cada espaço de contribuirmos para esta sustentabilidade do nosso planeta. Acho que isso começou a notar-se na preocupação, por exemplo, dos sacos independentemente do consumidor ter de pagar ou não.

Mas também tudo o que seja reciclável, luzes led, por exemplo. Naquilo que é possível a uma loja de comércio ser sustentável, tem-se notado essa diferença por essa preocupação. Estivemos todos muito tempo parados, fechados e percebemos que o mundo mudou e estamos todos a adaptar-nos. Até pela nossa dimensão somos aqueles que mais tentámos – dentro das nossas limitações –, ser sustentáveis. É uma mudança que se começa a notar muito claramente no comércio da cidade. 

Disse recentemente que o primeiro semestre deste ano será uma “prova de fogo”. De que forma?

Houve muitas pequenas empresas que tinham as moratórias e, entre setembro e dezembro, tiveram de pagar ou renegociar com os bancos. Muitas empresas tiveram a possibilidade de recorrer aos empréstimos e para o pequeno comércio podiam aceder até aos 25 mil euros mas apenas para quem teve de encerrar portas.

Esses empréstimos foram feitos com garantias do Estado e foram especialmente concedidos no âmbito da covid e começaram a ser pagos em fevereiro e março. A partir desta altura, as empresas já estão a pagar esses valores. E todos os benefícios que as empresas tiveram, como é o caso do layoff, nestes primeiros meses vão acabar porque se baseia – e bem, não questionamos isso – na comparação entre o que se faturava em 2020 e o que se faturava em 2021, comparando com 2019.

Mas se formos comparar o mês de janeiro de 2022 com o mês de janeiro de 2021, com certeza que todas as empresas faturaram mais porque nesse mês em 2021 estivemos o mês quase todo fechado e em 2022 já estivemos abertos. Estes apoios que tínhamos no âmbito da covid nos próximos três ou quatro meses vão desaparecer. Por um lado é bom porque quer dizer que estamos a voltar à nossa economia mas, por outro lado, vai ser a verdadeira prova de fogo porque com estas quebras todas, com esta situação toda, vamos ver quais são as empresas que conseguem superar esta fase.

Ao longo destes dois anos houve pequenos apoios, as ajudas da Câmara Municipal e, apesar de enormes dificuldades houve sempre pequeninos apoios que foram a forma de as empresas conseguirem a sua continuidade. Neste momento, acredito que até março, todos esses pequeninos apoios vão desaparecer e isso é uma prova de fogo. Vamos ver aquelas que resistem ou não. Acredito que as que tenham capacidade para continuar são empresas duradouras porque conseguiram ultrapassar estes últimos dois anos e esta fase vai ser difícil.

Ao longo destes dois anos tem noção de quantas empresas não resistiram?

Sei que, só em Lisboa, na Baixa, encerraram cem lojas. Mas penso que não fujo muito da realidade se disser que entre 10 a 15% – se calhar até mais – ficou seguramente pelo caminho. 

Isso retira identidade à cidade? Ou há novas empresas a formarem-se?

A pandemia fez com que muitas empresas se reestruturassem em termos até do próprio negócio. Há zonas da cidade em que é notório o que pandemia a fez com o encerramento de dezenas de lojas: passamos nas avenidas e nas ruas e vemos muitas lojas fechadas. Seguramente, se for à Baixa – até porque esta zona é fortemente vivida com o turismo e o turismo também teve uma quebra fortíssima – passamos em ruas onde há muitas lojas fechadas.

Mas acredito que, até fruto de muitas pessoas que trabalhavam em multinacionais e outros gabinetes, a vida mudou e vão começar a criar os seus próprios negócios. Ou pessoas que durante estes dois anos em as empresas passaram por momentos difíceis e fizeram uma seleção de pessoal e há um conjunto de pessoas, às vezes até com um espírito empreendedor. Acredito que no próximo ano – estou com essa expectativa – vamos voltar a ver a cidade de Lisboa e principalmente nos comércios de bairro, a ter lojas com gente empreendedora que vai criar projetos diferentes, recuperar e reconverter ideias do passado mas com novas tecnologias. Acredito que isso vá acontecer fruto de muitas das pessoas sentirem um novo apelo.

Apesar de termos a noção que são seis meses que vão ser para as empresas implantadas que têm responsabilidades, um duro golpe para as conseguir sustentar. Vamos ver as que vão conseguir aguentar, espero que muitas. Mas também acredito que fruto desta alteração venhamos a ter muitos negócios de empreendedores na cidade de Lisboa. E muitos negócios mesmo de cariz micro. Acho que a câmara também tem que estar atenta a esta nova realidade: jovens, casais, amigos que têm um projeto e que se lançam com esse projeto num determinado bairro.

Que trará outra identidade à cidade…

Sem dúvida. Acho que aquilo que é preciso preservar na câmara e que a União irá fazer e tentar fazer este trabalho com a autarquia e com as juntas de freguesia que são importantíssimas é que o comércio da cidade – e isso provou-se com a pandemia – é aquilo que dá segurança, tranquilidade. Até pela exigência de querermos os nossos passeios limpos.

Estamos diariamente nas ruas da cidade, estamos diariamente no terreno e podemos fazer chegar às juntas, à câmara, os problemas diversos que têm de ser solucionados. Tem que se olhar para a cidade – e tenho dito isto muitas vezes – de uma forma estratégica e pensar que o nosso setor do comércio e serviços – e também a restauração mas não falo muito porque não é a nossa área – é um setor estratégico para a sustentabilidade da cidade.

E quando o presidente da Câmara fala – e bem – na tal cidade dos 15 minutos, estamos a falar num bairro onde eu como moradora ou trabalhadora posso fazer qualquer compra de qualquer área numa dimensão curta. É nessa perspetiva, nesta estratégia que a câmara tem pensada e que nos parece bem, que também temos de começar a adequar as políticas públicas da câmara e pensar como vamos atuar em cada bairro diferenciado de acordo com as suas características.

Os apoios do Governo ou da autarquia não foram suficientes para evitar encerramentos?

Algumas não tiveram apoios. Imagine uma empresa que tinha alguma dívida à Segurança Social, que estava a pagar e cumpria, mas mesmo que só devesse mais uma prestação de 50 euros, como tinha um plano de prestação de dívidas à Segurança Social, não podia recorrer. Houve muitos casos desses. Muitas empresas que tivessem um plano de pagamento, quer à Segurança Social, quer às Finanças e que fossem cumpridoras ou que estivessem até com planos já a dois ou três meses do fim não podiam recorrer. Outras empresas não conseguiram mesmo aguentar, não conseguiram suportar os custos.

Apesar de termos o apoio do layoff, há a água, o telefone, a luz, a renda… Mesmo que tivesse um ou dois meses, em que foi permito não pagar as rendas em acordo com os proprietários, essas contas tiveram que ser pagas. E depois juntamos os consecutivos encerramentos. Não nos podemos esquecer que em 2020 não estivemos fechados apenas três meses.

Em Lisboa tivemos vários fins de semana em que o comércio só podia abrir das 9h às 13h. Tivemos vários fins de semana em que o comércio nem podia abrir. Tudo isso levou a que muitas das empresas, com o pouco que faturavam, não conseguissem assumir os compromissos, levando os empresários a desistir. Acharam que não queriam continuar.

Muitos dos empresários para conseguirem superar estes dois anos de quebras brutais de faturação – por exemplo, em 2020 ou 2021, a seguir ao confinamento, tivemos meses em que as empresas estavam a faturar 40% abaixo do que era normal –, após meses consecutivos de perdas, de confinamento não quiseram assumir compromissos perante a banca e, na incerteza do que isto iria dar preferiam encerrar. E são empresas que encerraram definitivamente.

E depois outras, como é óbvio, também fruto das rendas que iam pagar decidiram não continuar. Houve empresários que nos disseram que antes que ficassem atolados em dívidas, pagaram o que tiveram de pagar e encerraram. 

Jogaram pelo seguro….

É mais fácil pequeninos negócios que iniciaram há um ano ou dois, que não têm custos de estrutura, do que lojas com 20 ou 30 anos que têm custos de estrutura muito mais complexos e muito mais pesados. São projetos diferentes. A maior parte destas empresas acabaram por ter que encerrar porque tinham pessoal efetivo, grandes custos de estrutura e perceberam que não conseguiam continuar.

Lisboa contava com muitos turistas. As lojas têm sentido essa perda?

Sem dúvida. Nas duas versões. A Baixa de Lisboa porque, obviamente é o centro histórico da cidade. Mas também o Chiado, Bairro Alto, Príncipe Real, zonas mais turísticas. Ao longo destes últimos anos houve ali uma readaptação e uma abertura de imensos espaços com muitos produtos e conceitos muito virados para quem nos visitava, quer fossem turistas externos ou internos. Algumas dessas lojas estão fechadas, outras têm estado a trabalhar a 50%. E depois, como é óbvio, quem trabalha no comércio são pessoas que consomem no próprio comércio.

Por exemplo, houve uma altura, em que íamos à Baixa e tínhamos artérias em que praticamente não havia comércio nenhum aberto porque as pessoas nem sentiam essa lógica de abrir. Vivendo eles de produtos para quem visita a nossa cidade, estarem abertos sem turismo não valia a pena. E, com isso, foram postos de trabalho que se perderam e que não trazem consumo para outros negócios. Temos de perceber que beneficiamos do turismo, não só porque as nossas empresas também vendem muitos produtos para turistas mas quem trabalha nesse comércio são também consumidores.

Quando há quebra de um lado há quebra do outro. Acho que a câmara tem de repensar em não tornar, por exemplo, a Baixa de Lisboa tão dependente de comércio de turismo. Foi isto que muitas vezes falei quando se começou todo este input do turismo na cidade da Lisboa, que tínhamos que nos preparar. Longe de mim pensar que ia haver uma pandemia destas mas o comércio não pode, mesmo numa determinada zona turística, depender única e exclusivamente do turismo.

Temos de permitir que haja negócios e trazer público que não é turista para que se mantenha sempre essa atividade. Sem dúvida que o turismo é fundamental para a cidade de Lisboa. Somos um país que tem de apostar fortemente no turismo e espero que seja num turismo de qualidade, que valorize o que é bom, o que é feito em Portugal e valorize também a qualidade do nosso comércio. Temos muito comércio com qualidade.

Há muitas zonas em que é preciso apostar e requalificar o comércio mas somos talvez dos poucos países da Europa que tem polos de concentração comercial tão característica e tão identitária. É o caso de Campo de Ourique, Alvalade, Baixa e Bairro Alto, Príncipe Real, Avenida de Roma… Haverá poucas capitais europeias que tenham esta mais valia num comércio tipicamente distinto de uns bairros para outros.

É preciso, nesta altura, uma maior promoção da cidade?

Acho que sim. Ganhámos imensos prémios, mas não nos podemos esquecer que Lisboa tem sido castigada por ser uma capital com muitos surtos e muitos casos. Se bem que acho que, independentemente disso, a segurança com que os diversos players da cidade sempre realizaram depois dos momentos mais difíceis da pandemia, levam a que as pessoas se sintam seguras. Temos três coisas que são fundamentais para a retoma do turismo de qualidade. Primeiro, somos um país, e em particular uma cidade, seguro, temos um sol e uma luminosidade únicos.

Isto é algo que se diz e é verdade, o sol da cidade, a luz de Lisboa é única e temos uma forma de receber as pessoas que também é distintiva e todos os turistas que respondem a inquéritos dizem que uma das coisas que mais valorizam na nossa cidade são as pessoas, a forma como os recebemos. Agora, obviamente a câmara, o Turismo de Lisboa e o Turismo de Portugal têm de voltar a fazer um investimento brutal. Com certeza que vamos concorrer com outras cidades que percebem que também precisam do turismo e quem tiver a maior capacidade de atração é quem ganha. Estamos a contar que a Câmara Municipal, o Turismo de Lisboa e o Turismo de Portugal façam o seu trabalho.

Existem ainda as lojas com história que têm sobrevivido muito graças à sua catalogação. Perdemos muitas?

Sim, perderam-se lojas com história. Mas o problema destas lojas é um pouco mais difícil neste momento do que poderíamos esperar. É algo que vai fazer com que muito brevemente nos sentemos com o presidente da Câmara para falar sobre esse assunto, porque no âmbito deste programa que protege as lojas com história, a alteração à lei do arrendamento foi em 2013 e este projeto nasce, se não estou em erro, em 2015.

Mas, ao abrigo deste chapéu das lojas com história, conseguiu-se salvaguardar as lojas com história, em termos de arrendamento, durante um prazo de mais de 10 anos. Em 2022, 2023 e 2024 vamos ter imensas lojas que vão ser confrontadas – porque não são proprietárias – com aumentos de rendas que vão levar ao seu encerramento se não mudarmos a nossa forma de atuar. Seguramente haverá lojas que irão ter aumentos de renda brutais, valores brutais mesmo. E essas lojas não vão conseguir subsistir. Este é um problema que tínhamos a noção.

Quando fizemos o programa Lojas com História – o programa começou com a Câmara Municipal e a União do Comércio e Serviços – a nossa proposta era salvaguardar estas lojas que são a identidade da cidade de Lisboa mas, em termos da legislação só nos foi permitido, em termos de arrendamento, essa salvaguarda de 10 anos. E muitas vão começar a ser confrontadas com essas subidas de rendas que podem comprometer o encerramento automático destas lojas.

Um problema que afetará também outras lojas. Lisboa tem assistido a um grande aumento do valor das rendas…

Sim. Por aí se vê que há muitas lojas para arrendar e muitas lojas em que as pessoas arrendam e estão seis, sete meses, um ano e depois não conseguem suportar. Posso dar o exemplo de uma zona que é a Almirante Reis, que não é propriamente uma zona com comércio de luxo mas em que são pedidas rendas mensais de cinco mil euros. Não é fácil o comércio de rua pagar 60 mil euros de rendas por ano. Temos de perceber que o comércio da cidade, os comércios dos bairros, não têm o mesmo fluxo de pessoas que têm, por exemplo, os centros comerciais. Nem as mesmas características. Quando estamos num centro comercial não há chuva, não há sol, não há obras feitas na rua ou à frente das lojas…

Há um conjunto de coisas com que as lojas de rua são confrontadas e os centros comerciais não. As lojas de rua são constantemente confrontadas com uma multiplicidade de contrariedades e a própria Baixa tem muitas lojas sem serem alugadas porque há rendas de 8, 10, 11 mil euros a serem pedidas. São valores brutais que são fruto da requalificação da cidade e são propriedade privada, mas acho que em algum momento vai ter de ser atingido algum equilíbrio, caso contrário, muitas das lojas ficarão fechadas porque as pessoas não conseguem comportar esses valores de rendas.

A pandemia vai passando mas chegam outros problemas como o aumento do custo das matérias primas, dos combustíveis… Tem sido prejudicial para os negócios?

Em termos dos combustíveis e dos serviços talvez ainda não se esteja já a refletir. Quanto ao transporte das mercadorias e do custo dos produtos, as empresas já estão a sentir. Por exemplo, em termos da entrega de mercadorias há um atraso consecutivo porque as empresas – até também fruto destas questões da pandemia e de isolamentos – estão com dificuldade na entrega de mercadorias.

Já começaram a ser comunicadas situações em que os próprios fornecedores de produtos normais informaram que, a partir de fevereiro ou março, vai-se assistir a um aumento dos preços fruto de todos os custos que também estão a ter a montante. É um impacto que nesta fase muito dificilmente o podemos fazer repercutir no consumidor, pelo menos, nestes primeiros tempos. Temos a consciência que houve muitas pessoas com alterações na sua própria vida em termos da pandemia e isto é uma situação que o comércio vai ter que gerir com muita cautela porque o aumento que vão ter de custos, nesta fase, acredito que seja muito difícil imputar diretamente ao consumidor.

É mais um custo que, pelo menos estes primeiros meses, o comércio vai ter que suportar até para conseguir voltar a ter o nível de consumidores a regressar às lojas, ou pelo menos, até todos estarmos preparados para fazer a nossa vida normal, o que não vai acontecer assim tão depressa. Todos dizemos que estamos com vontade de voltar à normalidade mas depois acabamos ainda por notar certas atitudes. Por exemplo, se formos a um local que está cheio não queremos entrar. Ainda há um receio que vai levar alguns meses até que venhamos a ter normalidade, descontração.

Inevitavelmente acabará por chegar ao consumidor.

Sim, mas nesta fase acho muito complicado para as empresas refletirem esses aumentos. Neste momento, o que queremos é que os nossos consumidores voltem a ganhar a confiança e voltem a regressar aos nossos espaços com toda a tranquilidade. 

A par do aumento dos custos junta-se ainda a falta de mão-de-obra. O comércio também sente isso?

Claro que sim. Essa é uma dificuldade sentida na restauração e no pequeno comércio. Temos de ser frontais: trabalhar ao balcão ou atender ao público – o que é transversal ao nosso setor – não é uma atividade valorizada pelos jovens ou por quem inicia a sua atividade laboral. Muito do comércio tem de recorrer a quem vem de fora de Portugal para tentar a sua sorte no país. Temos cada vez mais dificuldade em arranjar mão-de-obra. As estruturas associativas têm vindo a tentar e vamos voltar a reforçar com as entidades competentes, o que podemos fazer para ter mão-de-obra porque essa vai ser uma dificuldade acrescida quando a economia estiver a retomar.

Há muitas pessoas que querem ter o seu negócio, ser empreendedores, mas que não querem trabalhar no comércio, apesar de saberem que é uma área que todos gostamos. Acredito que atender ao público ou atrás de um balcão não é a mesma coisa do que trabalhar num gabinete de prestação de serviços. Tudo o que seja trabalhar com público diretamente atrás de um balcão são áreas em que é muito difícil recrutar. Os nossos jovens, mesmo os que não querem seguir a sua formação, não é com muita facilidade que abraçam a nossa área.

Finalmente Lisboa vai voltar a ter Santos Populares. Há boas perspetivas para esta altura?

Claro que sim. Este é um dos momentos fortes para a cidade de Lisboa. Não só porque é um dos momentos mais icónicos da nossa cidade que são as nossas marchas, mas é um fôlego brutal para o negócio. Apesar de que quem vem para as marchas vai para a comida, para as bebidas, para os bailaricos, ainda assim, são sempre milhares de pessoas que estão nesses dias na cidade e que, se de noite vão para os arraiais, durante o dia compram na cidade.

Este é um momento em que estamos todos com uma enorme expectativa e talvez seja o primeiro momento de libertação da nossa cidade da pandemia. É um mês intenso em que a cidade está sempre com eventos. Não sei como é que a câmara irá fazer este ano mas não é só aqueles dias próprios, durante o mês de junho a cidade está sempre cheia de eventos, espetáculos, concertos, iniciativas e isso traz, não só quem vem fazer os espetáculos à cidade, mas faz circular milhares de pessoas e tem impacto não direto mas indireto no comércio. Isso só é bem vindo.

Quando pensa que o comércio chegará aos níveis de 2019?

Se tudo correr bem e se for o que estamos todos à espera é que, a partir de março, 90% das restrições sairão e acredito que a partir de outubro possamos retomar. Não depende só de nós, depende de toda a Europa começar a desconfinar.

Por isso, diria que a partir de outubro podemos começar a retomar os níveis de 2019. Acho que as pessoas estão ávidas e todos percebemos que temos que dar a volta por cima, todos estamos a redimensionar os nossos negócios, a pensar o que podemos fazer de diferente.