Há uns anos, em 2015, um relato vindo do outro lado do Atlântico deixava meio mundo de queixo caído. Uma equipa de reclusos de um estabelecimento prisional de alta segurança de Nova Iorque (o Eastern New York Correctional Facility) derrotou o prestigiadíssimo clube de debate da Universidade de Harvard numa competição pelos melhores argumentos e dotes de oratória no tema da escola pública nos Estados Unidos. Mas a exclusiva e elitista Harvard não foi a única vítima da equipa da prisão. Antes, os reclusos já tinham vencido um grupo de estudantes da Universidade do Vermont e outro da famosa Academia Militar de West Point.
A experiência serviu para mostrar que há muito talento atrás das grades e que vale a pena os sistemas penais trabalharem para dar a todos uma nova oportunidade, a hipótese de uma vida melhor.
Passados sete anos, e numa colaboração inédita com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a Câmara de Cascais dá um passo para, à sua escala, provar que a reinserção social dos nossos presos é um elemento definidor da humanidade e da maturidade das sociedades democráticas.
Em dois protocolos assinados a semana passada, as duas instituições querem provar que o sistema pode compatibilizar a punição com a reabilitação, quebrando o flagelo da reincidência que não serve nenhum ser humano nem a sociedade em geral. Estes programas surgem num contexto, ainda recentemente revelado na imprensa nacional, em que Portugal aparece como dos países com as mais elevadas taxas de encarceramento e onde o tempo médio na prisão é três vezes superior à média europeia.
A Prisão do Linhó é o campo experimental para novas políticas públicas que têm como principal foco o aproveitamento de competências e talentos dos reclusos, o combate à degradação da saúde mental e às adições dentro dos muros das cadeias e a aposta na reinserção no regresso à vida em liberdade.
Na proposta que promete revolucionar os estabelecimentos prisionais, os presos do Linhó já participam na separação de resíduos orgânicos e outros que são conduzidos para fileiras de reciclagem, por um lado, e para a compostagem, por outro. Esse lixo orgânico é depois utilizado em formas de agricultura biológica nos mais de 50 novos hectares da horta em torno da cadeia. É dessa horta que vem já uma boa parte dos frescos que se consomem nas cantinas do Linhó. Os reclusos são parte da circularidade e da sustentabilidade do estabelecimento prisional que passa também por fazer de cada um agente de mudança na responsabilidade ambiental – para além das turbinas eólicas e dos painéis fotovoltaicos instalados no Linhó.
Uma das características que mais me orgulha neste programa reside no facto de ele ter sido proposto pelos próprios presos dentro dos mecanismos de democracia participativa instituídos pela Câmara de Cascais. A cidadania não fica adormecida, quando a falta dela foi o que levou muitos destes reclusos à prisão.
Com muitos jovens a carregar às costas penas muito longas, é essencial criar condições para que os muros da prisão sejam um espaço de transformação e capacitação em direção à plena reinserção social. Por isso o nosso projeto vai mais longe. Juntando as competências e talentos deles e a escassez de mão-de-obra no exterior, os reclusos em regime aberto têm uma oportunidade de trabalhar para os serviços da Câmara Municipal de Cascais.
Quero publicamente felicitar o diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Rómulo Augusto Mateus, e o diretor do Estabelecimento Prisional do Linhó, Carlos Moreira, pela energia, entusiasmo e apoio que emprestaram a esta iniciativa da sua população prisional.
“Diz-se que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro das suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pela forma como trata seus cidadãos mais elevados, mas como trata os mais rebaixados.”
A frase é de Nélson Mandela. E em Cascais inspira-nos a ir mais longe, a recuperar as franjas e a dar a todos uma segunda oportunidade perante a vida.
Hoje mesmo, estarei a visitar o Estabelecimento Prisional de Tires, a fim de estudar com a sua diretora, Ana Paula Ramos, o alargamento e aprofundamento de ações que já temos vindo a desenvolver com as reclusas.
Que as nossas prisões sejam um começo e não um fim. Sejam um caminho para a libertação e não uma rota inexorável para a servidão.