“Na Medicina estuda-se muito mas a experiência dá a outra parte”

“Na Medicina estuda-se muito mas a experiência dá a outra parte”


Responsável pelo internato médico no Hospital de Santa Maria e diretor do serviço de nefrologia e transplantação renal, José António Lopes vê com otimismo as novas gerações de médicos e admite que o factor financeiro é o que mais pesa quando decidem não ficar no SNS. “Só há boa saúde se houver investimento”, diz.


O que se sente quando se vê chegar “sangue novo” a um hospital?

Os internos são a força motriz de um hospital. São eles que vêm dinamizar, trazem novas ideias e conceitos. É importante que um centro hospitalar consiga atraí-los, revela que está a trabalhar bem, que tem centros de referência que são conhecidos. Acaba por ser um reconhecimento do trabalho e dos profissionais, com quem os mais novos querem aprender.

Nunca tinham aberto tantas vagas para internos no SNS como neste último concurso, mas também nunca tinham ficado 50 por preencher depois de 600 médicos terem optado por não concorrer a nenhuma. Que leitura faz disto? O SNS é menos atrativo para os jovens médicos?

Não acho que seja menos atrativo, pelo contrário. Não há nenhum sítio com mais condições para se fazer o internato de qualquer especialidade que o SNS. Por todos os motivos e mais alguns: pelo armamentário [conjunto de instrumentos, meios de diagnóstico, material cirúrgico, medicamentos, etc.] disponível, pela quantidade de doentes, pelo tipo de patologias que atende, das mais simples às mais complexas.

Então qual é a explicação?

Penso que o temos hoje é uma maior possibilidade de os médicos poderem trabalhar noutros locais em atividades não tão diferenciadas, o que lhes permite, por exemplo se não conseguiram ter classificação para entrar na especialidade que queriam no sítio que queriam, em vez de ficarem com qualquer vaga, ficarem mais um ano já a trabalhar e a estudar para fazerem de novo a prova de seriação e concorrer. É algo que já vi acontecer. Se entrassem para a especialidade, existem regras em que podem concorrer no ano seguinte mas com mais limitações, e havendo hoje possibilidade de trabalharem…

Em empresas de prestação de serviço por exemplo?

Sim, atividades não diferenciadas. E depois há outras coisas que pesam naturalmente: hospitais privados que fazem já formação específica, ou as pessoas, por motivos familiares, não quererem fazer por exemplo tanta urgência noturna, mas o SNS continua a ser o melhor local em termos de oportunidades para uma formação mais completa.

Os internos representam um terço do pessoal médico no SNS. Com o envelhecimento da profissão, há o mesmo espaço para fazer essa formação ou tendem a ser mais escalados como membros das equipas para assegurar atividades que deveriam ser feitas por especialistas?

É óbvio que isso dependerá de cada serviço mas não creio que no geral a formação tenha diminuído qualitativamente nos últimos anos. Na minha altura, fui o único interno do meu serviço durante três anos consecutivos e hoje tenho oito ou nove internos e conseguimos dar-lhes uma formação plena, tanto que costumam ser os melhores classificados a nível nacional. Quando entrei para Nefrologia [especialidade que se dedica aos rins] entravam seis pessoas por ano, nos últimos anos têm sido 20 a 25. Há menos especialistas, é verdade, mas há muito mais internos, pelo que o trabalho distribuído não dará mais a cada um. 

No Hospital de Santa Maria, ficaram pela primeira vez por preencher 10 vagas para Medicina Interna, uma especialidade central nos hospitais. É sintomático de alguma coisa?

Só perguntando especificamente a quem não escolheu é que se poderia tirar ilações e isso não foi feito porque muitas destas pessoas não trabalham aqui. Não consigo dizer porque é que ficaram aqui em concreto por ocupar. Não estou a dizer isto por ser diretor do internato médico, não sei mesmo. Aqui, como em qualquer outro hospital, a Medicina Interna trata uma grande diversidade de patologias, aqui tem naturalmente a necessidade de resposta de um centro hospitalar de grande dimensão.

Haver uma forte pressão sobre as urgências pode ser um motivo?  

Mas isso acontece em todos os hospitais: Medicina Interna é uma especialidade em que se fazem urgências durante toda a vida. Isso eventualmente pode pesar na escolha de outras especialidades, em que os internos por vezes em alguns locais por constrangimentos nas equipas fazem urgências até ao segundo ano  quando poderia ser só no primeiro, mas alguém que quer ir para Medicina Interna sabe que irá fazer urgências até se reformar. Não há como fugir às urgências independentemente do hospital.

Uma questão suscitada por um sindicato foram as condições de trabalho, serem os médicos a colher o sangue, terem tarefas que deviam ser feitas por outros profissionais.

É evidente que isso pode levar a uma maior sobrecarga mas não creio que seja também por aí e não acontece em todos os serviços do Hospital de Santa Maria. No meu não são os médicos que colhem os sangues. Mas também não creio que seja ter de colher sangue que vá dissuadir alguém da Medicina Interna. Antigamente também se colhiam os sangues e não ficavam vagas por preencher. Pode haver é alguma mudança cultural sobre o que se quer fazer.

Há sempre aquela tendência de os mais velhos pensarem que no tempo deles era mais difícil, que davam mais. É mais optimista ou mais pessimista com as novas gerações de médicos?

Tendo a ver as coisas sempre mais com otimismo. Hoje o que é verdade é que está tudo muito mais profissionalizado, há muito mais informação e escolhe-se uma especialidade com muito mais conhecimento sobre o que está em causa, o que esperar, o que se quer fazer, já com uma ideia sobre se se gosta ou não. Porque o gostar é o que está na génese de tudo: é uma pessoa gostar do que faz que a leva a ser um bom profissional. Pessoas mais qualificadas e menos qualificadas, mais interessadas e menos interessadas, mais motivadas e menos motivadas há-de haver sempre. O que sinto em relação há 30 anos, quando me formei, é que existe uma possibilidade maior de fazer as coisas com maior profissionalismo, com maior avaliação de resultados e isso, por muito que as pessoas possam ser diferentes, contribui para maior qualidade. Haverá quem olhe para as mudanças com pessimismo, mas eu acho que a tendência é para melhorar e isso vê-se na expressão que hoje os centros médicos portugueses têm lá fora.

Além desse lado técnico, a vontade de poderem conciliar melhor vida pessoal e trabalho é mais verbalizada pelos jovens que iniciam o internato? É algo em que sinta diferenças?

Aí sim, mas talvez seja na forma como as pessoas o expressam. Penso que não podemos ver isso como óbice mas como uma oportunidade para acompanhar esta nova realidade, sabendo que hoje há muito maior oferta em termos culturais, em termos laborais, e que é natural que as pessoas queiram outras coisas para as suas vidas. Isto vê-se em tudo, nas coisas mais simples: quando era pequenino e ia a um supermercado só havia dois tipos de iogurtes e hoje são corredores. Acho que continua a ser possível ser médico e conciliar tudo, agora temos a oportunidade de haver uma mudança de paradigma que acompanhe este desenvolvimento das pessoas e a diversidade que existe na sociedade. Mas isto sente-se em tudo: um líder hoje não pode ser como era um líder há 20 anos. Não estou a dizer que seja melhor ou pior hoje, mas as mudanças nas pessoas exigem uma adaptação das instituições.

Tem memórias difíceis dos tempos de internato?

Por acaso não tenho. Tive a sorte de ter um tutor que era excepcional, o prof. Edgar Almeida, que deixou agora de ser o diretor clínico do Hospital Beatriz Ângelo desde que passou a EPE [quando deixou de ser uma parceria público-privada]. Fui muito acarinhado, se calhar, lá está, por ter sido o único interno durante muito tempo no serviço. Mas pode haver pessoas que tiveram uma experiência diferente, aquela ideia de vassalagem, de hierarquia e isso há-de haver sempre com outros contornos. O fundamental é que haja respeito entre todas as pessoas, se existir tudo se resolve. Mas é óbvio que hoje não posso falar com um interno da mesma forma que se falava com um interno há 20 anos. A abertura é completamente diferente.

Um interno pode questionar mais?

Há uma maior liberdade, dentro do respeito, naturalmente, e de reconhecer a experiência, mas isso é evidente.

No final do internato, e talvez aí seja a fase crítica para a retenção de pessoal no SNS, tem-se visto cada vez mais médicos que optam por sair e não concorrer às vagas nos hospitais públicos onde se formaram. É aí que tem havido menor adaptação?

Sim. Se o SNS continua a oferecer tudo para que as pessoas possam desenvolver a sua formação, estamos a falar de pessoas que chegam ao final da especialidade com 30, 35 anos, que estão a iniciar vidas familiares e, quer queiramos quer não, a parte económica conta. Uma pessoa quando começa a carreira tem um Fiat Punto. À medida que evolui vai tendo outros planos e é normal que procure realizá-los, senão é só trabalho, não vê os frutos da evolução. A concorrência atualmente é muito maior e isso faz que em termos de qualidade o setor privado também se tenha desenvolvido. E se dantes um médico poderia pensar: “Ok, vou ganhar mais na privada mas vou esmorecer profissionalmente”, isso já não é tanto assim. O SNS terá de ser mais concorrencial no pagamento aos seus profissionais. Acho que é o principal motivo para a saída dos especialistas para outros hospitais e há que ser realista: se uma pessoa que pode ganhar numa tarde aquilo que ganha num mês no hospital…

Mas é assim?

Em algumas especialidades há-de ser, pelo menos dos relatos que oiço.

Trabalha só no SNS?

Sim, já fiz privada mas a partir do momento em que fui para diretor de serviço existe uma regra que impede de ser ao mesmo diretor de uma clínica de diálise privada. Tive de optar.

O Governo chegou a lançar a ideia de um pacto de permanência para internos que se formam no SNS terem de ficar os primeiros anos a trabalhar no setor público ou então devolver parte dos custos de formação ao Estado. Seria por aí?

Penso que isso poderia levar mais pessoas então a não escolherem o SNS para fazer a especialidade se soubessem que havendo uma oportunidade seriam prejudicadas em anos que são importantes. Acho que é preciso os vencimentos serem mais consentâneos com o nível de diferenciação dos profissionais e hoje não são. Um médico é uma pessoa com responsabilidade acrescida e que fez um investimento muito grande em termos profissionais. Só é médico na sua plenitude com 35, 40 anos, quando noutras áreas isso acontece 18 anos antes. Claro que podemos dizer que o salário médio nos outros países é maior, mas também não se pode comparar alguém que trabalha 40 horas por semana num centro hospitalar com o grau de responsabilidade que tem um médico com outros ordenados de outras profissões.

Como viu a discussão da saúde nos debates e na campanha eleitoral?

Não falando partidariamente, o que diria genericamente é que os políticos têm de perceber que o desenvolvimento de um país assenta na sua saúde. E não há boa saúde sem haver qualificação, sem haver carreiras, sem haver remuneração condizente com o desenvolvimento e grau de investimento dos profissionais que trabalham nesta área. Não sei dizer se se debateu muito ou pouco, se a preocupação foi muito ou pouca porque acho que toda a preocupação com a saúde peca por insuficiente, sobretudo numa situação como a que vivemos. Só há boa saúde se houver investimento e se os profissionais, que a par dos doentes são as pedras basilares do sistema, estiverem satisfeitos, estiverem a fazer o seu trabalho como deve ser, em locais que permitam o seu desenvolvimento, e para isso os pagamentos atuais são precários.
Mesmo que o Estado contratasse ao privado, como sugerem algumas propostas, se for para contratar ao preço mais baixo…Evidente. Se bem que os preços tendem a imitar o que o Estado paga no público, onde às vezes andamos a trabalhar quase por carolice.

Entre os médicos com melhores notas na prova de seriação muitos escolhem especialidades como dermatologia e ofaltmologia, onde a maioria da resposta é no setor privado e há talvez uma oportunidade de ter uma carreira melhor remunerada. É isso que os move?

Não creio que seja. Não digo que não haja uma percentagem em que seja, mas é preciso vê-lo também de outra forma. Uma especialidade é tanto mais apetícivel quanto mais vertical for. Ninguém mais mexe num olho que um ofalmologista. Isto tem implicações em termos de carreira no privado, com certeza, mas quando se escolhe oftalmologia escolhe-se porque é uma especialidade muito completa em termos de diagnóstico e cirurgia. A especialização crescente tem vindo a tornar apelativas áreas em que os médicos conseguem fazer um pouco de tudo: uma pessoa tem um sinal da pele, entre a primeira observação e tirá-lo é o dermatologista que faz tudo. Haverá a parte económica, não digo que não, mas tudo isto pesa para que se escolham estas áreas em detrimento de outras mais transversais, em que há menor autonomia e se depende mais de outros.

Faz sentido que o critério para entrar em Medicina seja só a nota?
A nota é um parâmetro que terá sempre de existir para seriar as pessoas. Tem de haver um parâmetro objetivo, senão não haveria numerus clausus, o que no limite iria entupir as faculdades e o próprio sistema de formação médica. A nota pode não permitir distinguir quem vá para Medicina por interesse económico ou por vaidade, porque ser médico tem ainda alguma conotação social, agora em todos estes casos quem for exclusivamente para ostentar uma nota não vai conseguir ser médico. Ser médico é a soma de muitos fatores em que a nota é dos menos importantes. Isto pode parecer um contransenso porque para se avançar são precisas notas elevadas nas diferentes etapas, mas a progressão resulta sempre da apreciação do médico como um todo, pelos seus pares, mas sobretudo pelos seus doentes. As pessoas, tal como se apercebem rapidamente de outras coisas, também percebem se um médico não tem o menor interesse em sê-lo. É o que digo sempre aos meus internos: “A nota é importante mas mais importante que isso é o que as pessoas que vos circundam pensam de vocês”.

Há mais alguma coisa que costume dizer aos seus internos, até que lhe tenha ficado do seu internato?

As pessoas às vezes têm um pouco a mania que a pressa leva a algum lado e há um ditado que me disseram sempre: “Roma e Pavia não se fizeram num dia”. Tudo tem o seu tempo. E na Medicina, sobretudo, tudo demora muito tempo. E é esse sempre o conselho que dou: fazer tudo sempre no tempo certo, quando deve ser, com o respeito máximo por quem nos rodeia, pela profissão e por si próprios, focados em serem médicos na sua plenitude. As oportunidades hão-de surgir e a satisfação à medida de cada momento. Mas acho que isto é uma regra elementar de vida, não dar um passo maior que a perna.

Consegue-se ser médico na sua plenitude no SNS? 

Consegue. Não digo que não haja constrangimentos, e já falei do lado financeiro, mas falo por mim e pela minha mulher que também é médica, consegue. Uma pessoa sentir satisfação com o que faz ao final do dia é muito importante.
Como se constrói a confiança? Muitas vezes há aquela hesitação quando somos vistos por um médico muito jovem, aquele pensamento de “será que sabe o que está a fazer”. Do lado do médico constrói-se vendo muitos doentes, tendo sempre disponibilidade para os ver, para estudar, para aprender com os seus superiores que têm anos de experiência acumulada. E fazendo diariamente uma autocrítica do que se fez bem e do que se fez mal. É um processo contínuo mas só assim é que um médico ganha estaleca, como em tudo.

Alguma vez teve de dizer a um dos seus internos: desculpe mas é melhor procurar outra profissão.

Não, nunca, mas tenho uma postura frontal e já tive de alertar algumas pessoas para que não voltassem a repetir determinada atitude.

A paixão pela Medicina tem um ponto alto nesses primeiros anos ou mais tarde?

Os mestres mantêm esse brilho até ao fim, vão-se aprimorando. Na Medicina estuda-se muito mas a experiência dá outra parte e isso só se adquire com a idade.

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