SNS. Os desafios e os planos dos futuros médicos especialistas

SNS. Os desafios e os planos dos futuros médicos especialistas


Nunca tinham aberto tantas vagas para o internato médico no SNS (1961), mas pela primeira vez ficaram 50 por preencher. O Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, a par do São João no Porto, é o que recebe mais internos: 98 iniciaram este mês a formação específica na especialidade. Vão ser médicos para lá…


A tenra idade não passa despercebida aos doentes e quando iniciam a formação na especialidade já fizeram o curso de Medicina, o ano comum de internato, já rodaram por várias áreas, mas é agora que começam a ver doentes no ramo que escolheram com um pouco mais de autonomia, que só terão quando forem especialistas. No início dos inícios da formação específica, que acontece todos os anos para milhares de jovens médicos em janeiro, esperam nos hospitais a hora de fazer as primeiras cirurgias – uma apendicite, um terçolho mais complicado, contam-nos, ainda que o nome técnico seja outro. Quando não se está a ver doentes, estuda-se para se estar preparado. E estudar é o que mais se faz nos primeiros anos da profissão. Admitem que há alturas em que se sentem “lançados aos lobos”, mas os turnos nas urgências são também do que mais marca nos primeiros tempos. E onde se aprende.

Os mais novos têm 25 anos e só vão ser médicos especialistas já com 30. Se a idade de reforma não mudar, andarão pela Medicina para lá de 2060. Nunca houve tantos internos a fazer a formação na especialidade no Serviço Nacional de Saúde mas também nunca tinham ficado vagas por preencher (50 este ano) e nos últimos anos 30% a 40% das vagas que abrem depois nos hospitais para os integrar nos quadros do SNS não são preenchidas, com alguns a optar por trabalhar no privado, por emigrar ou seguir outro rumo qualquer. Porquê? O que move um jovem médico? Como encara o futuro?

No Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que a par do Hospital de São João, no Porto, é o que recebe mais médicos internos – entre ano comum e formação específica chegaram a Santa Maria este mês 210 internos, 112 para o ano comum e 98 para iniciar a especialidade. Conversamos com quatro médicos a dar as primeiras pisadas.

Francisco Faustino, 27 anos, Gastrenterologia – “A praxe é fazer urgência”

Francisco é um dos dois novos internos de Gastrenterologia no Hospital de Santa Maria, entre 27 jovens médicos que escolheram esta especialidade no país. Teve 125 pontos na prova de seriação que ordena os médicos para escolherem as vagas de especialidade e ficou no top 100 nacional entre cerca de 2600 médicos que fizeram a prova. Porquê ‘Gastro’? “É uma especialidade completa: tem muitas técnicas, muita clínica, muita consulta, tem muita urgência, que no fundo são as quatro áreas que existem na Medicina. Foi por isso e porque tem muitas patologias diferentes e exige muita compreensão da fisiologia, de como funciona o fígado por exemplo e todas as implicações, que é o que mais me interessa”, explica Francisco, que tinha também o bichinho da investigação. “Achei que de tudo o que podia escolher na área das ciências, a Medicina era o que me permitiria associar a parte científica à parte humana, que foi o que acabou por pesar mais na decisão”. 

Se não adivinha um internato fácil – “nunca são em nenhuma especialidade” – o estudo já foi intenso nos últimos anos: acabou o curso de Medicina com média de 17 na Universidade Nova de Lisboa, algo mais difícil do que entrar para Medicina com grandes médias. Marrão? “Não sou, mas sem trabalho não se chega lá. É preciso fazer uns sacrifícios mas é possível conciliar alguma vida social com o trabalho”. 

Recém-chegado depois de ter feito o ano comum em Portimão, confessa que ainda se sente “muito verdinho”. Houve praxes? “A praxe é fazer urgências”, sorri. O primeiro turno de serviço no balcão da “urgência externa” já como interno de formação específica aconteceu na segunda semana, 12 horas numa noite de segunda-feira, geralmente as que têm mais doentes nos hospitais. Foi “cansativo”, admite. Que imagem se guarda? “Não vou dizer o caos, foi um momento de aprendizagem e quando cheguei a casa estava muito feliz”, conta. “Cheguei, colocaram-me logo nos laranjas, que são os doentes graves. Recebi seis doentes que estavam internados, havia uma fila de espera de duas horas e tinha de dar vazão. Foi um início um bocado complicado mas depois de uma pessoa aprender a trabalhar com o sistema informático, de ganhar confiança para começar a falar com os colegas mais graduados, tudo se faz”, diz. “Somos um bocado lançados aos lobos mas temos apoio. Se fosse uma alta ou uma medicação em que não me sentia tão confortável, ia sempre falar com o colega que estava disponível. E para aprender temos ser um bocado lançados aos lobos, entre aspas claro”, conta. 

Quando muito se discute a saída de médicos do SNS, Francisco, quando já for especialista, tenciona ficar. “O SNS oferece muito mais possibilidade de desenvolvimento de projetos de investigação e tem uma casuística muito maior. É um projeto incrível e quero fazer parte dele. E daquilo que vejo, toda a gente tenta fazer o maior possível. A grande dificuldade é mesmo o volume de doentes que em alguns momentos não está de acordo com o número de profissionais.” Solução? “Convencer mais médicos a ficar”. 

Admite que para a sua geração conseguir conciliar trabalho com vida pessoal é importante, mas acredita que pode ser possível fazê-lo, como tem sido até aqui. “Se calhar com um bocado de mais organização consegue-se ter melhores resultados com menos sacrifício pessoal para todos”, aponta, acreditando que quando por vezes se diz que têm “menos amor à camisola”, as queixas vêm mais de se sentir que o esforço poderia ser mais distribuído se houvesse um número de recursos adequado. “Se tivermos de ficar a ver um doente, claro que não queremos ir embora. Mas isso é diferente de termos dez doentes porque não há mais ninguém.” Que Medicina ajudará esta geração de médicos a construir nos próximos 40 e 50 anos? Ninguém adivinha o que se descobrirá, mas “será certamente mais tecnológica, menos invasiva”, diz Francisco.

Ana Sofia Lopes, 25 anos, cirurgia geral – “A pandemia deu-nos capacidade de lidar com a adversidade”

Ana Sofia Lopes escolheu Cirurgia Geral, uma das especialidades com mais vagas no internato médico e com 72 novos internos no SNS este ano. No Santa Maria são quatro. “Foi a primeira escolha. Ao longo do meu percurso as áreas cirúrgicas foram sempre daquilo que mais me deu gosto estudar . No primeiro ano gostei logo de anatomia, que é uma cadeira de que às vezes as pessoas não gostam tanto”, explica. Antes disso, sempre quis ser médica. Porquê?“A ideia de poder ajudar as pessoas sempre me cativou”. 

Apesar de só agora estar a começar o internato de especialidade, já é um pouco da casa: estudou na Faculdade de Medicina de Lisboa, paredes meias com o hospital universitário, e fez o ano comum em Santa Maria, onde aterrou na fase mais crítica da pandemia em janeiro de 2021. “Foi complicado. Comecei pela Medicina Interna aqui no hospital, naquela altura em que havia ambulâncias à porta, fazer turnos toda equipada, fazer testes aos doentes. Depois quando passei para cirurgia havia ainda muitos internos mobilizados para a covid-19 mas hoje as coisas estão um bocadinho melhor: temos muitos casos de covid-19 mas os casos graves são menos.” 

Será uma geração de médicos marcada pela pandemia? “Acho que sim, deu-nos capacidade de lidar com a adversidade, o aceitar que há momentos em que as coisas são como são e temos de fazer. Chegar à frente e fazer. Em primeiro lugar quem está ali são os doentes e temos de ajudar como for preciso. Foi importante na minha formação, sem dúvida”. Ficará a futura cirurgiã no SNS? “Para ser sincera não sei. Conheço a história do SNS, sei as fragilidades, mas estou a começar, não sei qual será o meu futuro. Espero um dia poder estar a trabalhar numa boa equipa, ser um bom contributo e uma mais-valia para essa equipa, onde será não sei dizer.”

É que esse futuro ainda tem muito trabalho pela frente e é nisso que está focada, resume Ana Sofia: “Fazer o trabalho bem feito”. Sobre as fragilidades que encontra no sistema, acredita que em parte ficaram também mais visíveis com a pandemia e não acredita que a falta de recursos humanos a principal. “Não creio que seja tanto assim. Se formos a ver bem, não há propriamente falta de médicos. Os recursos se calhar estão é um bocadinho mal distribuídos e tentando colmatar essas falhas teríamos um melhor Serviço Nacional de Saúde”. 

E é verdade o que se diz desta geração fazer mais questão de conciliar vida profissional e trabalho? “Não vejo o trabalho como uma coisa negativa, longe disso. É a trabalhar que se aprende, mas também não deixamos de ser pessoas e temos de saber quais são os limites”. 

Com cada vez mais mulheres a dominar a profissão, aos 25 anos pensa-se por exemplo em como será conciliar com ter filhos? Mais uma pergunta para a frente, mas Ana Sofia não vê por que não: “Conheço casos em que isso é possível, por isso há esperança! (risos) Uma pessoa não tem de abdicar da carreira para ter uma vida pessoal e temos de encontrar um meio-termo. Ao longo do curso isso é-nos sempre exigido, por isso já há uma preparação. Temos exames, trabalhos, aulas teóricas e práticas mas temos de ter outras atividades também para manter a nossa sanidade mental”. 

Como imagina a Medicina a evoluir? “Basta olhar para trás para ver como as coisas evoluíram nos últimos anos e espero que continuem, com melhores cuidados para os doentes. Hoje fazemos cirurgias por laparoscopia, com pequenos buraquinhos. Tenho curiosidade para saber como serão as coisas daqui a 40 anos e espero estar cá para assistir e participar.” Por agora não tem propriamente uma cirurgia inovadora em mente: o dia que se aguarda no primeiro ano de internato é o da primeira operação, ainda “tutelada”, o que pode acontecer ao fim de três ou quatro meses, podendo ser chamada a fazer intervenções mais simples na urgência antes disso. E se o mundo dos internatos, segundo o que pode contar esta jovem médica, não tem tanta animação como se vê nas séries, aqui é como se imagina: “Normalmente as apendicites são para os alunos do primeiro ano e às vezes no Pulido Valente há alguns casos de hérnias”, conta Ana Sofia. Nestas primeiras semanas os pontos altos foram mesmo estar na urgência e assistir. E depois estudar, para quando chegar o dia.

Marta Lopes, 25 anos, endrocrinologia – “Por muito que queiramos contribuir para o SNS, se as condições forem muito melhores, é difícil sermos completamente altruístas”

Marta também fez o ano comum do internato no Hospital de Santa Maria e está entre os 19 jovens médicos que escolheram a especialidade de endocrinologia a nível nacional, que intervém na componente hormonal e na nutrição. Sempre gostou de ciências e o desafio do diagnóstico foi o que a moveu, seguindo as pisadas da mãe que também é médica, oncologista. “Gosto da Medicina do pensar, de achar diagnósticos, da parte mais lógica e não tanto da técnica e da parte mais cirúrgica. É mais de pensar nos mecanismos por detrás das doenças e em como podemos pensar neles para decidir as terapêuticas”. Conciliar investigação com a clínica é uma área que a atrai e foi o que a levou a escolher o serviço no Santa Maria, que tem essa vertente. “Há ainda a ligação à Faculdade, ao Instituto de Medicina Molecular”. Por outro lado, admite que ser uma área com menos trabalho noturno é outro fator na equação:“É uma área que se calhar permite uma melhor qualidade de vida.”

Apesar de ter começado o ano comum em pandemia, não o sentiu tanto no hospital por ter estado nos primeiros meses em pediatria. Viveu mais o outro lado: o stresse de se poder apanhar o vírus e infetar os familiares, que nos primeiros meses era uma constante. “Vivo com a minha mãe e como somos as duas médicas tínhamos muito essa preocupação e agora continuamos a ter um bocadinho porque há de novos mais casos. Já fiz as primeiras urgências e temos tido muita gente”, diz. 

E isso tem sido o mais exigente nestes primeiros tempos. “Queremos fazer um bom trabalho e ver bem os doentes mas depois são muitos doentes para ver, as vagas de internamento estão cheias e os doentes permanecem na urgência às vezes dias porque estão sempre a chegar e não estão a sair”. 

Ficar a trabalhar no SNS faz parte dos planos? É algo de que conversam, até com colegas mais velhos que optaram por sair. “Gostava de continuar no Serviço Nacional de Saúde, gostava de contribuir para que continue a existir e corra bem, mas por outro lado cada vez são mais as ofertas no privado e compreendo os médicos que têm estado a sair. Por muito que queiramos contribuir para o SNS, se as condições forem muito melhores no privado, é difícil as pessoas serem completamente altruístas. Idealmente gostaria de trabalhar no SNS primariamente e talvez fazer privada à parte. Não gostava de abandonar a 100% o SNS, mas as condições pesam um pouco”. Será também uma questão geracional? “Os médicos mais velhos também trabalham muitas horas, acho que a nossa preocupação é tentar que se encontre um equilíbrio e, se se trabalha muitas horas, ser compensado por isso. O que é importante para a nossa geração não é o trabalhar pouco mas conseguir ter qualidade de vida. Não nos matarmos a trabalhar sem sermos devidamente compensados, que é um dos motivos para se calhar as pessoas abandonarem o SNS”, diz Marta, apontando por exemplo o valor pago pelas horas extra à noite e outras que se fazem durante o dia e não são remuneradas. Ficamos porque é necessário, não por sermos preguiçosos e não fazer as coisas. Além de ser uma grande carga de trabalho e uma pessoa ter pouco tempo livre, isso não é muito compensado.”

 E acredita que será reversível? “O problema é que acaba por ser uma bola de neve. As pessoas estão insatisfeitas por estes motivos e saem, os hospitais públicos ficam com menos pessoas, a carga de trabalho para os que ficam é maior. E vemos muito isso: ao longo do ano houve especialistas a sair, nem todos os internos se calhar ficarão e se as pessoas se queixam agora das condições, no próximo ano ainda se vão queixar mais.” E os pensamentos para o futuro vão um pouco por aí:“Acho que é importante manter o SNS a funcionar, não sei é muito bem como é que isso vai acontecer”.

Afonso Cabrita, 25 anos, oftalmologia – “O olho é uma porta para o resto do corpo”

Filho de uma família de oftalmologistas, Afonso Cabrita, de 25 anos, entrou em Medicina já a querer seguir esta área mas a paixão foi amadurecendo ao longo do curso. Ficou no top 5 na prova de seriação a nível nacional e escolheu fazer o internato em Santa Maria. E o fascínio pela área fica depressa, passe a expressão, à vista. “O olho, apesar de ser um órgão muito circunscrito, envolve muitas patologias sistémicas e muitas vezes é a primeira manifestação de muitas doenças seja a diabetes, doenças infecciosas ou auto-imunes e isso atrai-me. O olho é uma porta para o resto do corpo”, diz. Mas há mais: a possibilidade de ter um impacto quase imediato na vida dos doentes, melhorando a sua a qualidade de vida. A investigação é outra área que o seduz e já tinha feito a tese de mestrado com Luís Abegão-Pinto, médico do serviço distinguido pelo trabalho em torno do glaucoma, área a que Afonso também gostava de se poder dedicar durante o internato. Sendo a maioria dos consultórios de oftalmologia particulares, Afonso diz como será o seu caminho “só o futuro dirá”, mas os défices de resposta nesta área no SNS também precisam de profissionais de saúde, nota. “Desde que todos continuemos a defender os direitos dos doentes, esperemos que as coisas melhorem”. Na hora de resumir as preocupações desta nova geração de médicos, está com os colegas: “Penso que ter uma remuneração adequada é muito importante, ter uma boa qualidade de vida e “sentir que se está a melhorar a vida dos doentes com o seu trabalho e que não se está a limitar essa capacidade por limitações físicas e monetárias do SNS”. E tem-nas sentido? “Não, mas estou cá há duas semanas”, sorri. Até aqui o ponto alto foi poder assistir a cirurgias, ver o interior do olho através dos microscópios, com algumas funções de ajudante como corte de fios. O dia em que se pode operar é também para Afonso uma das expectativas. E se na Cirurgia Geral se começa pelas apendicites, na oftalmologia são aquilo a que vulgarmente se chamam treçolhos. Como será o futuro da especialidade quando for um sénior oftalmologista, para lá de 2060? “A inteligência artificial tem tido um papel muito importante, consegue-se juntar muito mais dados de doentes com as mais diferentes patologias e consegue-se prever com maior probabilidade a progressão da doença. A Oftalmologia penso que irá passar muito pela incorporação de inteligência artificial nas decisões terapêuticas e técnicas menos invasivas”. Um sonho? “Encontrar-se uma solução para a degenerescência macular da idade, que afeta pessoas em idade avançada. Se se conseguisse curar seria excelente, melhoria a qualidade de vida de muitas pessoas”.

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