“Sem patrão”. “Mau feitio”. “Pragmático puro”. “Espécime único de Sapiens Sapiens que é diferente de todos os que conhecemos e que sempre nos surpreende e se supera”. “Leal para quem é amigo”. “Astuto e paciente”. “Com ambição política nas veias”. “Nível de conhecimento cultural acima da média”. “Utiliza o poder como ferramenta evangelizadora para a solidariedade”. Mais do que socialista, um homem de esquerda.
António Costa nasce em Lisboa, a 17 de julho de 1961. Filho de dois intelectuais de Esquerda e atirado ao mundo no rescaldo da Abrilada, é de admirar que não tenha desatado a colar cartazes anti-regime na clínica onde nasceu. Recebe um pai – Orlando Costa –, e uma Mãe – Maria António Palla. Poderia ter conhecido a sua irmã Isabel, não tivesse esta morrido num acidente de aviação com apenas três anos. Os pais viriam a divorciar-se e, poucos anos depois, António veria chegar ao mundo o seu único irmão: o jornalista Ricardo Costa, filho de um segundo casamento do seu pai.
“Filho da liberdade” – assim o descreve o camarada Ascenso Simões –, tem como mãe uma das mais proeminentes jornalistas da sua geração: Maria António Palla – feminista, oriunda de uma família laica e republicana do Seixal. Por parte do pai tem ascendência goesa. Orlando Costa, bandeirante da empreitada anticolonialista desde a elite de Goa, viria a aterrar em Portugal em 1948 pelo gosto pela literatura portuguesa. Seis anos depois, alistava-se no PCP, “tranquilizando a consciência o mais à esquerda possível”. Além do cravo ao peito, António também herdou do seu pai as características fenotípicas, o que resulta no seu tom de pele acastanhado, tal qual a população indiana.
A cor de pele, essa, “nunca o limitou” ou foi razão para se sentir discriminado. Pelo menos assim o dizia, ao Público, em 2014: “Eu, pessoalmente, nunca senti. Posso ter ouvido uma ou outra vez chamarem-me ‘monhé’, mas é episódico”. Uma ascendência que Costa não rejeita e se identifica: “Percebi desde sempre, tanto que em miúdo era chamado babush [garoto]”. Neste sentido, Maria Palla relata um dia tê-lo ido buscar à escola (Fernão Lopes, já no Palácio dos Condes de Cabral) e o contínuo, confuso sobre quem seria, identificá-lo como “o preto”. Já em casa, Palla, preocupada com eventual racismo de que o seu filho poderia estar a ser alvo na escola, relata-lhe o sucedido horas antes. “Ó mãe, tu já olhaste para mim? Já viste a minha cor? Eu sou escuro mesmo”, ter-lhe-á respondido a criança que viria a governar o país. Criança essa que “era boa a quase tudo sem ser excecional em coisa alguma” – relatam os amigos de infância – e que “gostava de liderar”, tendo tal ficado notório na sua juventude. Vamos a essa.
O namoro com a jovem social-democrata Entre 1971 e 1974 frequentou a Escola de Dança e Música do Conservatório, onde viveu o vigésimo quinto dia de abril. António Costa pode até não ter colado cartazes nas paredes da clínica enquanto recém-nascido (apesar de nada haver a desmenti-lo), porém, viria a fazê-lo com apenas 14 anos, durante o PREC. Com essa idade, optou pela punho esquerdo em detrimento da foice e do martelo do seu pai, filiando-se na Juventude Socialista – onde marcou “uma infindável lista de camaradas e depois amigos”, como escreveu Ascenso Simões no Público, a propósito dos seus 60 anos.
A revolução toma curso e, por essa segunda metade da década de 70, cria amizade com Manuel Monteiro, antigo líder do CDS-PP. Conheceram-se no Liceu Passos Manuel, em Lisboa, onde completaram o 6.º e 7.º anos (atuais 10.º e 11.º). Ao i, Manuel Monteiro conta que tinham “uma relação próxima”. Estudavam juntos na casa da mãe de António e partilhavam um grupo que, apesar de “muito heterogéneo do ponto de vista político”, era “muito unido”. Nesse grupo constava também uma cachopa da juventude social-democrata, de seu nome Fernanda Tadeu, com quem mais tarde António Costa viria a casar e criar família. Pertencia ainda Rómulo Mateus, diretor dos serviços prisionais, e Hermínia Vilar, que foi vice-reitora da Universidade de Évora. “Fomos colegas que desenvolveram uma relação de profunda amizade”. Na altura, tanto aproveitam os tempos livres para ir em grupo ao cinema ou à praia como para debater a leitura de livros. Divertiam-se “muito”: tanto em tardes passadas nos jardins da Gulbenkian como em noites mais alegres, em bares – “íamos muito para bares” -, sem que isso lhes “impedisse o lado mais sóbrio e mais empolgante da vida política”, recorda Manuel Monteiro. Vamos a essa.
O esboço da geringonça Vivia-se a época das “aulas políticas ao vivo”, em que se fazia “propaganda nos cadernos”. “Éramos muito politizados. O António era de Esquerda e eu um conservador. Ele chega ao Liceu depois da revolução. Quando entra, esse ambiente ainda se vivia, embora não tão intenso como em 75”. A António corria a “política nas veias” e, embora nunca tenha sido eleito para nenhum cargo no liceu, “era o grande líder e organizador daquilo. Tinha mais prazer nisso do que em concorrer”. Nessa lógica, Manuel Monteiro recorda um acontecimento particularmente caricato – que ganha importância ao perceber-se que poderá ter sido uma espécie de esboço da geringonça. “Na altura havia eleições dos estudantes para vários órgãos, entre eles o Conselho Diretivo. Para esse órgão, o António promoveu uma lista que juntava o PCP, a UDP [de quem o Bloco é filho] e a JS”. Será, portanto, este, o António Costa descrito como tendo “sempre uma solução para os grandes problemas, em que deles poderemos sair sem um braço ou uma orelha, mas sairemos vivos”, nas palavras de Ascenso Simões. Será, portanto, este, o António Costa “pragmático” que em 1978 já unia a esquerdas em torno do poder, ação que viria a repetir 37 anos mais tarde – desta vez por um país e dando o seu rosto.
Um espírito político fomentado desde novo, com certeza fruto do meio em que fora criado. Pelo menos é o que pensa o seu amigo Monteiro: “A maioria do grupo conheceu a política primeiro pela prática e só depois pela teoria. Primeiro combatemos e fizemos listas, e só depois é que lemos o que era o conservadorismo ou a democracia-cristã. O António não porque já vinha de uma família politizada. A política veio ao nosso encontro, a passo que o António já tinha ido ao encontro da política”. Estavam, politicamente, em barricadas diferentes – Monteiro na então Juventude Centrista (JC) e Costa na Socialista –, mas não falavam sobre a vida interna das estruturas: “Nunca conversei com ele sobre a JC e ele nunca sobre a JS”. Discutiam apenas “ideologia”, algo que António “adorava fazer” e que Manuel considerava “extraordinário”. À época já se “destacava”, mostrando níveis de conhecimento cultural superiores aos dos seus pares. Também a ambição política já lhe “corria pelas veias”, sendo que, já nessa altura, naquele liceu, a “JS não fazia nada sem lhe perguntar”. Anos mais tarde, percebemos que essa ambição de Costa viria a resultar numa carreira política sólida. Vamos a essa.
De Loures a São Bento Findo o ano propedêutico, António Costa segue Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Lá, foi dirigente associativo e diretor da revista AAFDL. Durante os seus tempos de faculdade, tanto criou amizades com jovens católicos como com jovens socialistas. A par disso, estava cada vez mais entranhado na Juventude Socialista – de que foi impedido de dirigir por Mário Soares. Uma situação que, relata Ascenso Simões, “marcou, de forma decisiva, a sua ação política”.
Findo o curso de Direito, segue-se a Ordem. Fá-la, após estágio no escritório de Jorge Sampaio e Vera Jardim. Um estágio que viria a ser fulcral no seu percurso político: durante estes tempos, Costa travou uma forte amizade com Jorge Sampaio, tornando-se seu defensor e crescendo no PS a partir daí. Em 1992, já deputado e dentro da sua direção nacional, viria a apoiá-lo contra Guterres na corrida à liderança ao partido, vendo a sua escolha sair derrotada.
Em 1993 encabeça uma candidatura do PS à Câmara Municipal de Loures, quase roubando a autarquia aos comunistas. Foi durante essa campanha que Costa saltou para os holofotes nacionais. De forma a provar que o trânsito no município era um desastre, decidiu dinamizar uma competição, à hora de ponta, entre um burro e… um Ferrari. Ganhou o burro e, assim, de forma disruptiva, Costa conseguiu provar o seu ponto: que a acessibilidade era um grave problema daquele concelho. Ficou como vereador, função que exerceu a par de deputado até 1995.
Apesar do apoio a Sampaio em 1992, Guterres acabaria por, em 1995, convidá-lo para o XIII Governo. Dentro desse, Costa teve dois cargos: primeiro secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e, depois, ministro dos mesmos. No seguinte Governo, também de Guterres, foi ministro da Justiça, acabando por se demitir. Durante essa primeira governação, António Costa abria as portas da sua casa para sentar à mesa o primeiro-ministro com um dos membros da oposição: Manuel Monteiro, à época líder do CDS-PP. “Quando eu reunia com o primeiro-ministro em conversas mais discretas era em casa do António, que já era ministro dos Assuntos Parlamentares”, conta ao i.
Findo o Governo de Guterres, em 2002, volta ao Parlamento, tendo presidido o grupo parlamentar do PS. Em 2004 ruma a Bruxelas, onde foi eurodeputado e vice presidiu o Parlamento Europeu. Regressa a Portugal para, em 2005, no Governo de Sócrates ser ministro de Estado e da Administração Interna.
Chega o ano de 2007 e Costa atinge, nas palavras de Ascenso Simões, a “sua maior realização pessoal”: Ser presidente de Câmara. Ficou como edil em Lisboa até 2015, ano em que a entrega a Fernando Medina. Em 2014 vence as internas a António José Seguro e, em 2015, é eleito primeiro-ministro, formando a famosa geringonça com o Bloco e o Partido Comunista.
Uma geringonça que, para alguém tão “filho da liberdade”, aparece sem surpresa. Algo talvez impensável para outro líder partidário, mas não para Costa, que “familiarmente, estudantilmente, sempre conviveu muito de perto com o PCP e com as pessoas do PCP”, nas palavras de Manuel Monteiro.
Assim foi, e é, António Costa: de Goa a Portugal, dos jardins da Gulbenkian a bares, de burros a Ferraris, navegou. Sempre com ambição a correr-lhe pelas veias. Até chegar a primeiro-ministro. De casa trouxe a alma vermelha e os cravos que espalha pelas ruas. Da escola, a experiência de respeitar o adversário e conseguir convergir forças à esquerda. Da vida, a insubmissão a regras e a luta incansável por uma cor que em Portugal talvez lhe deva mais do que ele a ela: a vermelha, a de esquerda.
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