Rogério Gaspar. “Egoísmos nacionais levaram à situação que temos hoje”

Rogério Gaspar. “Egoísmos nacionais levaram à situação que temos hoje”


Há um ano a trabalhar na OMS, o professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa faz um balanço de 2021 e diz que é cedo para falar no fim da pandemia. 


Está a fazer um ano que se mudou para Genebra, em plena pandemia, para assumir um novo desafio: deixar a vida em Lisboa, as aulas na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, onde era presidente do conselho de escola, e o trabalho em organismos internacionais para assumir a liderança do Departamento de Regulação e Pré-Qualificação da Organização Mundial de Saúde, responsável pelo processo de avaliação e distribuição de produtos farmacêuticos – e, nos tempos que correm, das vacinas e medicamentos necessários à resposta à covid-19.

Foi um ano de planeamento, reuniões e resposta a perguntas dos delegados dos países e da imprensa nos briefings da OMS, mas também de trabalhar para atingir objetivos, muitos claramente ultrapassados mas nem todos cumpridos.

Em tempo de balanços, Rogério Gaspar fala dos aspetos positivos do seu primeiro ano na Organização Mundial de Saúde, o segundo da pandemia, e do que para si foi mais negativo: os egoísmos nacionais, que levaram a que se chegasse ao final de 2021 com 94 países com menos de 40% da sua população vacinada contra a covid-19 (ainda há 23 abaixo dos 10% de cobertura vacinal). Até julho, a OMS espera uma mobilização maior para garantir uma cobertura de 70% em cada país.

O risco, sublinha Rogério Gaspar, é continuar a favorecer o aparecimento de novas variantes. E mesmo que a Omicron venha a confirmar-se menos severa, uma próxima pode não ser. Até lá, diz que é muito cedo para falar em fim da pandemia.

Que balanço faz deste seu primeiro ano na OMS, o segundo da pandemia?

Como positivo, claramente a capacidade da resposta da comunidade científica, dos produtores de vacinas e dos sistemas de saúde. É preciso lembrar que estamos a falar de um agente patogénico que não conhecíamos há dois anos. Em menos de um ano tivemos vacinas e, dois anos depois, temos mais de oito mil milhões de doses de vacinas administradas. Isso mudou completamente o contexto da pandemia e a capacidade de resposta dos países.

O trabalho em parceria entre o setor público e privado foi muito importante para termos este resultado a nível global e sem dúvida a resiliência e a capacidade de resposta dos sistemas de saúde dos diferentes países e de todos os que se mobilizaram.

O aspeto negativo foram os egoísmos nacionais, que levaram à situação que temos hoje: países com uma taxa de cobertura vacinal elevadíssima e outros com uma taxa de cobertura muito baixa. Esse balanço já foi feito neste fecho de ano pela OMS: atingimos o final do ano com 94 dos 192 países com uma taxa de cobertura vacinal inferior a 40%, que era a meta para todos e cada um.

E há vários abaixo dos 10%.

Sim. Os 40% em cada país eram a meta que tínhamos, não foi atingida e com uma consequência à vista do ponto de vista epidemiológico, que é não conseguirmos parar a evolução do vírus e, portanto, estarmos sujeitos ao aparecimento de variantes – a mais recente a Omicron mas que não será provavelmente a última.

Este processo não irá parar enquanto não percebermos que precisamos de vacinar toda a gente. Como o diretor-geral da OMS tem dito repetidamente: não estamos protegidos enquanto não estivermos todos protegidos.

Estava mais confiante no início do ano de que esse objetivo seria atingido?

Por um lado não nos surpreende o que aconteceu, por outro gostaríamos de esperar que, se tivéssemos aprendido um conjunto de lições durante esta crise, esta fase já estivesse ultrapassada com uma maior mobilização da comunidade global para vacinar toda a gente. A forma como na OMS olhamos para os problemas é mais numa perspetiva de os resolver do que estar a fazer uma lista do que correu mal.

Nesta passagem do ano, o nosso objetivo como organização é o de mobilizar toda a gente para a próxima meta que é dentro de 185 dias (contados a partir de 29 de dezembro) termos pelo menos 70% da população em cada país completamente vacinada.

É para isso que estamos a trabalhar na OMS e que estão a trabalhar muitas outras pessoas. Hoje temos uma capacidade de produção de vacinas como nunca tivemos historicamente e portanto, se houver equidade na distribuição, acesso garantido e decisões de política nacional consequentes, deveríamos conseguir esse objetivo antes do dia 1 de julho de 2022, mas claro que só depende de nós.

Os países estão a alargar o reforço a toda a população com mais de 18 anos, Portugal incluído. Já se fala de quarta dose. Com quartas doses e reforços gerais nos países desenvolvidos, é um objetivo concretizável? Há o argumento de que nos países mais desenvolvidos, mais envelhecidos, o risco da doença é maior. 

A situação epidemiológica vai ser evolutiva nos próximos meses. Teremos de tomar decisões de acordo com os dados científicos e não com base em critérios de natureza política ou comunicacional. A resposta terá de ir sendo adaptada garantindo dois aspetos essenciais: proteção das populações mais vulneráveis e equidade global na distribuição e acesso a vacinas. Sem o conseguirmos, não protegeremos os mais expostos, em situação de maior risco, nem travaremos a velocidade de aparecimento de novas variantes.

Como correu a sua mudança para Genebra em plena pandemia, para uma cidade nova e para uma organização da dimensão da OMS?

Não posso dizer que não tivesse já experiência internacional. Antes da pandemia tinha uma média de perto de 25 viagens internacionais por ano, com reuniões de três e quatro dias, portanto desde 1992, quando regressei a Portugal do doutoramento na Bélgica, que a minha vida era metade do ano passado num ambiente internacional. Não tive esse choque, foi mais o choque de começar num sítio novo quando estava tudo de certa forma descontinuado no dia a dia. Vivi dois meses num quarto no hotel.

Ainda assim pude ir sempre trabalhar fisicamente para a sede da OMS, onde estavam poucas pessoas. Isso permitiu-me de certa forma encaixar naquela rotina e foi tudo muito facilitado pela forma como fui integrado e acolhido. Com muito apoio da liderança e designadamente da diretora-geral assistente para Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos, Mariângela Simão. No primeiro dia estive logo num briefing aos estados-membros.

Quando cheguei, a minha antecessora, Emer Cooker, atualmente a diretora-executiva da Agência Europeia do Medicamento, tinha saído há três meses, por isso foi necessário preencher um vazio de liderança que havia numa área que era crítica. Existia uma equipa de transição que preparou muito do trabalho. E a equipa é absolutamente fantástica, competente e dedicada, e isso também tem sido muito positivo.

Como tem sido trabalhar com Tedros Adhanom Ghebreyesus?

É das pessoas mais fáceis de trabalhar do mundo. É um líder muito exigente. Se for preciso discute connosco até à exaustão cada um dos dossiês, mas se está convencido dos argumentos apoia-nos completamente. Não é aquele tipo de chefe que diz que sim a tudo, pelo contrário, questiona muito, pede para justificar tudo, os porquês, mas quando está convencido dá muito apoio.

Houve um período em que o diretor-geral da OMS esteve bastante debaixo de fogo. Donald Trump chegou a acusá-lo de ser uma “marioneta” da China. Vê falhas na atuação da OMS?

São duas questões diferentes. Uma são as críticas que refere do antigo Presidente dos EUA, que não me compete comentar. Somos uma organização comandada pelos 194 estados-membros, não por um mas por todos. O Presidente dos EUA, como de qualquer outro estado membro, merece-nos todo o respeito.

O fundo da questão que esteve na base da divergência com o antigo Presidente dos EUA mantém-se atual, que é termos uma corrente na sociedade que nega a ciência, nega os dados científicos, e esse é um problema que vamos continuar a ter, uma infodemia por cima da pandemia.

Os aspetos em que a OMS pode não ter estado melhor no início, e estou à vontade para falar deles como o diretor-geral também já tem falado, prendem-se com mecanismos institucionais que são determinados pelos estados-membros.

O tempo que demorou a ser declarada a pandemia, por exemplo.

A OMS não pode fazer mais do que aquilo que os estados-membros permitem. E é isso que agora está em cima da mesa com aquilo a que se tem chamado o “Tratado da Pandemia” e que provavelmente não será um tratado mas uma convenção ou um acordo-quadro que nos permita garantir uma melhor preparação e resposta para emergências em saúde.

O que se questionou foi a morosidade dos primeiros passos da OMS, esquecendo-se as pessoas que isto passa por decisões do comité executivo em que todos os estados-membros têm direito a falar, e que enquanto faltar alguém para intervir as reuniões podem demorar os dias que for preciso. São três pilares que estão a ser revistos no âmbito deste futuro instrumento internacional: o financiamento da OMS, a sua missão e a sua organização institucional.

Será uma das principais consequências da pandemia a nível internacional?

Claramente. E é importante que neste início de 2022 todos os estados-membros também deem prioridade à aprovação desse instrumento. Não se pode exigir à OMS que exerça um mandato que não tem. Hoje o mandato da OMS é o que existia no início de 2020. Será no futuro aquilo que os estados-membros permitirem ou desejarem que seja.

Será possível alguma vez perceber como começou a pandemia?

É importante perceber a origem da pandemia para antecipar e prevenir eventuais ocorrências futuras. Uma coisa é certa: vamos ter mais pandemias. É importante começar a rever as lições desta crise e dotar a OMS de instrumentos que lhe permitam exercer uma maior capacidade de coordenação operacional da resposta à escala global, que é um mandato que hoje tem fortes limitações.

Para conhecermos a origem, seja quando for, é preciso uma colaboração intensa das autoridades chinesas e com as autoridades chinesas. Portanto, tudo o que leve a aumentar a tensão internacional e a um menor envolvimento ou cooperação de e com as autoridades chinesas vai dificultar esse resultado final que pretendemos, que é perceber o que se passou e como se passou, sempre com base em dados científicos e não em convicções pessoais ou considerações geopolíticas.

A tese de fuga do vírus de um laboratório mantém-se uma hipótese em cima da mesa ou está afastada?

Acho que todas as hipóteses estão em cima da mesa enquanto não tivermos a resposta final. Agora estar a mencionar uma em detrimento de outras é quase estar a fazer uma opção quando não há dados para fazer essa opção. Neste momento temos necessidade de mais informação. Há um comité de peritos (SAGO) designados pela OMS para este tipo de investigações e não nos podemos esquecer que, desde que começou a pandemia de covid-19, tivemos dois surtos de ébola e um surto de vírus de Marburg.

São questões que não se esgotam apenas num agente patogénico. Hoje a OMS tem este comité que se dedica a analisar como surgem estas epidemias ou pandemias, dependendo do impacto que têm a nível regional ou global, o que já é um passo importante para prevenir futuras ocorrências.

Sente que os países vão passar a levar mais a sério os alertas depois desta crise?

Existe uma memória coletiva que certamente permanecerá durante algum tempo. Mas só teremos verdadeira mudança se os instrumentos institucionais estiverem garantidos, sem necessidade de, no futuro, recomeçarmos a discussão de novo a partir do zero.

Alguns cientistas começam a dizer que a Omicron poderá ser o fim da pandemia e mesmo a equacionar a estratégia de infeção natural. A OMS mantém uma mensagem de prudência. Parece-lhe que pode ser o fim ou é cedo para o afirmar?

É muito cedo para dizer seja o que for. Temos alguns dados que sugerem menor severidade, mas é preciso percebermos os dados que existem. Por exemplo na África do Sul há um conjunto de dados de uma seguradora que reportam as hospitalizações em hospitais privados. Esses dados mostram uma severidade menor da doença, mas dizem respeito a uma população que, tendo acesso a hospitais privados, num país como a África do Sul, terá uma cobertura vacinal muitíssimo superior. Extrapolar dados desse contexto para um contexto mais geral é algo arriscado e sem base científica.

No caso de África do Sul a população é também muito mais jovem do que a europeia: apenas 6% dos sul-africanos têm mais de 65 anos.

Sim, é um segundo elemento importante. Os surtos de Omicron começaram numa população mais jovem e há um tempo de latência até à disseminação da infeção na população em geral, o que não nos permite ainda ter dados para perceber o que acontece quando a variante circula numa população mais idosa, seja com cobertura vacinal, seja sem cobertura vacinal, até em países mais desenvolvidos.

Temos por exemplo os EUA que têm uma cobertura vacinal relativamente baixa (62% da população tem a vacinação completa), sabemos que também por razões político-ideológicas, e em que vamos ter uma parte da população com idade mais avançada, com comorbilidades e que não está vacinada a ser exposta ao vírus. Só quando começarmos a ter esses dados é que vamos perceber melhor a severidade da Omicron.

Além disto é bom perceber duas coisas: em primeiro lugar, que a Omicron é uma evolução quase paralela das anteriores variantes do SARS-COV-2, o que significa que não é uma evolução da Delta.

Não foi a Delta que evoluiu para ficar mais “branda”, digamos assim.

Sim. E isso também significa que amanhã podemos ter uma nova variante que siga uma evolução paralela da Delta ou da Omicron com uma grau de variabilidade bastante grande em relação às duas. Sabemos, historicamente, que uma das formas dos vírus evoluírem é não matarem o hospedeiro – aumentarem o nível de infecciosidade mas diminuir a severidade da doença, podendo assim continuar a circular – mas neste momento não sabemos em qual das situações estamos com a Omicron.

E mesmo que estejamos numa situação em que daqui a umas semanas confirmamos que é de menor severidade, o que desejamos, não significa que em paralelo não surja uma outra variante mais severa. A lição a retirar é que, enquanto tivermos grupos significativos com uma baixa taxa vacinal, abrimos a porta a que a evolução dos vírus vá continuando, conduzindo ao surgimento de novas variantes.

É um bocadinho uma roleta: pode correr bem um dia e correr correr mal com a variante seguinte. Seria irresponsável gerir a situação desse modo esperando que corra sempre bem. Aqueles que ainda pensam que se trata de questões sem consequências, deveriam falar com os familiares de quem está em unidades de cuidados intensivos.

Agora que se discute menos tempo de isolamento e se deve testar menos, baixando a testagem pode levar a menor rapidez na deteção de novas variantes.

É um dos problemas. E uma das lições a tirar desta crise da Omicron foi que o país que melhor se portou, a África do Sul, que testou e partilhou de imediato dados com toda a gente, foi o primeiro país a ser penalizado com corte de ligações aéreas, o que já se demonstrou que não tem qualquer impacto no controlo da proliferação. Quando se detetam estas variantes, obviamente já circularam e já estão noutros países e será tarde demais para confinar a nova variante a uma região.

A África do Sul parou agora o rastreio de contactos de infetados e a quarentena de contactos. A OMS pediu também cautela nessas decisões. Pode fazer sentido?

Acho que é importante perceber que existirá sempre um quadro referencial de medidas mas que devem ser ajustadas à realidade de cada país pelas autoridades nacionais, em função da natureza do seu sistema de saúde, dos fatores de saúde pública, da evolução epidemiológica. Medidas “one fits all” (que sirvam para todos) não existem. Penso que isso ficou muito claro na explicação dada pelo Mike Ryan (no briefing da semana passada) sobre a diminuição do período de isolamento para cinco dias, na altura anunciada pelo CDC.

O que ele disse é que é uma decisão possível mas é uma decisão com risco, porque deixa a porta aberta a termos um número, ainda que potencialmente pequeno, de pessoas que continuam infecciosas ao fim de cinco, seis dias e podem de alguma forma continuar a propagar a infeção. São decisões de saúde pública que as autoridades de cada país têm de tomar em função da avaliação da sua situação, do balanço entre o sistema de saúde e o desenvolvimento socio-económico, dos recursos que têm. Em vez de criticar atitudes, temos de tentar perceber os porquês de decisões locais que muitas vezes têm um sentido que não percebemos quando vemos de fora.

A adesão à vacinação em Portugal chegou a estar no top mundial. No reforço, houve um atraso um pouco maior. Imagino que lhe possam ter feito perguntas até na OMS. Como explica esse sucesso? O que nos tornava até aqui mais imunes a movimentos antivacinação e até que ponto a “infodemia” o pode alterar?

O sucesso da vacinação em Portugal deve ser enaltecido e tratado como o resultado de uma organização sólida, implantada de forma eficaz no terreno, e um envolvimento que contou com a dedicação coletiva de todos os portugueses, ou pelo menos de uma esmagadora maioria. Uma vitória da racionalidade e da ciência sobre a infodemia.

Mas não nos pode tornar displicentes com os enormes desafios futuros que se colocam, quer com o surgimento de novas variantes, quer com a necessidade de dosear estratégias de vacinação com a adoção de medidas de saúde pública tradicionais, envolvendo o uso de máscaras, álcool-gel, distância física, comportamentos seguros, arejamento de espaços, etc.

O futuro não ficou decidido com esta primeira grande vitória. Falta ainda um longo caminho até ao final e a capacidade de mobilizar todos, comunicando bem e atempadamente vai ser sempre o grande desafio para todos os Governos e para todas as autoridades de Saúde.

Além das vacinas, em 2022 os medicamentos para tratar a covid-19 grave serão uma arma ao dispor? Como antecipa o ano, desde logo o inverno e ultrapassada essa fase?

Estávamos agora na fase de preparar o EUL (Emergency Use Listing) de alguns anti-virais e também de anticorpos monoclonais. A Omicron veio mudar as condições anteriormente estabelecidas e há uma análise em curso face a esta nova situação.

Em qualquer caso, a sua utilização começará certamente por situações muito específicas, terá de enfrentar desafios de produção distribuída, acesso e equidade, e durante algum (muito?) tempo não será uma alternativa às vacinas mas antes um complemento nos instrumentos de combate a pandemia, a par das vacinas e de medidas de saúde pública.