Ao contrário do anterior romance de Javier Marías (“Berta Isla”), construído em torno do fenómeno da ausência, sob o nebuloso ângulo de quem fica, este recente “Tomás Nevinson” (Alfagura, tradução de Vasco Gato) é narrado sob a perspectiva de quem parte. Um e outro livro formam, nas palavras do autor, uma espécie de “casal”, tal como cada uma das personagens que lhes dá nome: ela Berta, mulher que fica, professora de Filologia Inglesa; ele Tomás, marido que parte, agente dos Serviços Secretos britânicos. Embora as personagens sejam as mesmas, o tempo da acção é diferente: “Tomás Nevinson” começa uns anos depois do fim de “Berta Isla” (meados da década de noventa); a relação entre ambos é, pois, mais de continuidade do que de (re)explicação dos (mesmos) factos; a vida continua e, agora, é Tomás Nevinson quem a conta.
Após uma temporada de ausência e descanso, em que Tomás pôde ser Tomás sem se obrigar a ser um outro, eis que, em Janeiro de 1997, Bertram Tupra, seu ex-chefe dos Serviços Secretos, vem instá-lo a cumprir uma nova missão: identificar uma pessoa, de ascendência espanhola e norte-irlandesa, ligada ao IRA e à ETA, que participou em atentados ocorridos em 1987, nas cidades de Barcelona e Saragoça. Embora reticente, embora tentativamente insubmisso, Tomás acaba por aceitar: “é insuportável estar fora depois de se ter estado dentro”. E então parte, sendo outro, com outro nome (Miguel Centurión), desta vez para uma cidade do noroeste espanhol. É lá que tentará desvendar, de entre três mulheres, aquela que oculta a identidade escondida, a terrorista procurada.
O enredo, deste modo sucintamente apresentado, seria capaz, por si só, de prenunciar uma interessante história de espionagem. Mas esta não é apenas uma história de espionagem: é uma história de espionagem escrita por Javier Marías, guiada por um espião introspectivo e profundo, que parece não conseguir dar um passo sem a precedência dubitativa do pensamento, sem uma associação filosófica, sem um poema nos pés. É um romance que desmistifica a crença geral de que “nem um polícia nem um agente secreto são pessoas cultas ou adeptas da literatura ou da história”. Sustentado e embalado pelas mais diversas fontes do espírito — sobretudo literárias (de Reck-Malleczewen a Yeats), mas também cinematográficas (Fritz Lang à cabeça), filosóficas (Cesare Beccaria, por exemplo) e históricas (de Hitler a Ana Bolena) —, o espião Tomás Nevinson vai oferecendo avanços ao enredo — avanços sempre lentos, claro, sempre feitos de paragens, de silêncios e divagações, ou não fosse Marías o sopro que projecta a voz homodiegética do narrador.
Tomás Nevinson é, com efeito, um espírito menos prático do que interrogativo; é um agente que teima em questionar o porquê da sua missão, como o célebre soldado de “Henrique V”, de Shakespeare — obra cuja referência é tão central neste livro como em “Berta Isla”. Ao longo das páginas, obcecado com o questionamento ético das suas acções, Nevinson vai oferecendo — no início, no meio, no fim — divagações várias sobre a justificação dos crimes (é legítimo o tiro mortífero destinado a evitar uma bomba?, “quantos males se poupará às pessoas com isso, quantas vidas inocentes serão preservadas a troco de um único disparo?”); sobre as motivações dos homicidas (vingança ou prevenção?); sobre os fins das penas impostas pelos tribunais (vingança ou prevenção?); sobre o comum que há entre a lógica de funcionamento das máfias, das organizações terroristas e dos aparelhos repressivos do Estado (“há algo de religioso em todos eles, herdam inimigos e venerações e crenças que nunca ninguém questiona, a sua força é essa”); sobre a prescrição criminal (“o tempo transforma o que existiu numa não existência? A justiça é absurda, uma entelequia, é impossível”); enfim, sobre quase tudo o que precede, produz e autoriza o fumo da pólvora.
O herói deste romance tem, pois, a fragilidade típica dos que hesitam, dos que se questionam e se deixam consumir pelos dilemas morais, tal como o herói em “Macbeth” — outra obra de Shakespeare que estabelece, com esta, um permanente diálogo. Tomás Nevinson é um homem complexo e incoerente; o tal espião que oscila entre as amarras da culpa e o “coração tão branco”; o tal reticente, tentativamente insubmisso, que vai avançando, de “doentio cérebro”, que vai agindo, ciente de que “só o primeiro passo custa”.
Esta história de espionagem acaba, assim, ganhando quase as dimensões ou pretensões de um tratado filosófico. Mas, é claro, o engenho de Javier Marías está, também, na transposição do abstracto para o concreto — isto é, para a ficção. É que, como firmou Jorge de Sena (in “Sobre o Romance”), “o que pode fazer grandes intelectualmente os artistas e as suas obras é menos a «admissão de problemas» do que a acuidade com que são compreendidos e sentidos os efeitos, no comportamento dos seres humanos, do que significam humanamente”. Este “Tomás Nevinson” brilha também por isso: é o enredo e a construção das personagens que corporizam as divagações, estabelecendo o romance no exacto ponto de equilíbrio entre o peso da digressão e o peso do enredo, entre a complexidade da primeira e a simplicidade do segundo — esse equilíbrio que, sendo difícil, está, em Marías, sempre presente. A trama que aqui lemos é essencialmente percorrida por personagens cultas, num sentido estético e num sentido prático: “nunca me habituei inteiramente a que tantos homens e mulheres expeditos, mais ou menos de acção, tantos agentes, fossem cultos, embora eu próprio o fosse. Mas muitos eram também maquinadores, e para isso é preciso conhecer a história e a literatura, conhecer o máximo”, diz Tomás. Javier Marías demonstra, uma vez mais, ter o talento de imprimir verosimilhança a excentricidades, a pessoas que enfrentam a vida com citações de Baudelaire e Eliot em mente, ou ao facto de alguém poder afirmar, como que quem diz a mais prosaica das verdades, que “qualquer homicida cultivado sabe Macbeth”.
Para o almejado equilíbrio narrativo, entre o peso e a leveza, Marías faz-se valer de um certo despojamento formal. E esse é um estilo que assumidamente o marca há já alguns anos. Em 1996 (entrevista ao Canal Sur Televisión, de 14 de Fevereiro), o “menos espanhol dos escritores espanhóis” afirmava, de sorriso dividido entre o despretensiosismo e a superioridade, não se sentir identificado com os compatriotas autores que trabalham em demasia a linguagem, que exageram nos enfeites da sintaxe e da palavra, como se “a cada vez que escrevem uma frase, dessem um passo de toureio, como se cada frase tivesse de ser seguida por um «olé!»”. A linguagem em Marías é, de facto, despida de adornos; é simples, contemporânea, “próxima ao castelhano de hoje em dia”. A importância simbólica e prática da linguagem está no conteúdo, e um exemplo disso é o modo como Tomás Nevinson vai, ao longo da narração, reflectindo sobre o peso que há na escolha das palavras, na diferença abismal entre os sinónimos, na simbologia prática, por exemplo, de um pronome (“não tive a certeza se teria empregado a palavra «nós» de propósito […] esse «nós» infunde coragem, proporciona resistência, faz companhia imaginária e dissolve escrúpulos, ou pelo menos divide as responsabilidades”) ou da escolha entre um nome próprio e um apelido (“alternávamos conforme o grau de proximidade ou distanciamento que desejássemos aflorar com cada frase”). Esta peculiar sageza de observação vemo-la também quanto ao corpo — o significado de um dedo esticado num ou noutro contexto; uns pés femininos descalços; um orgasmo (“às vezes a única forma de alcançar a confiança de uma mulher é conquistando-a”). A missão de Tomás (ou Miguel Centurión) apresenta-se como o palco indicado para as pinças observadoras de Javier Marías: ouvir, falar ou cortejar as três mulheres, para descobrir a terrorista, é, no fundo, apenas a via que o autor encontrou para, com precisão, extrair da linguagem e do corpo a análise de cada uma delas, de cada um de nós.
Este é também um romance em que Javier Marías encontra espaço para, uma vez mais, se assumir — emprestando a sua voz ao protagonista — como um homem “educado à antiga”. Numa entrevista conduzida, em 2018, por Synne Rifbjerg (Louisiana Channel), o autor declara, sem rodeios, que as suas histórias não são passadas no século XXI porque, dessa forma, as suas personagens (dilemáticas, profundas, cultas) seriam inverosímeis: hoje “as pessoas são diferentes, são mais superficiais”. Provocador, também Tomás Nevinson vai apontando o dedo à recente geração “acelerada, pragmática e sem dilemas morais, que faz o que lhe apetece no plano pessoal ao mesmo tempo que cumpre com as suas obrigações sem questionar o estilo do mundo”.
Provocador, culto e imaginativo, eis Javier Marías, eis a sua escrita lenta, pensante e assustadoramente perspicaz: em cada frase, um perscrutar profundo sobre a natureza humana; em cada capítulo, uma peculiar simbiose entre o enredo, as fontes do espírito e o pensamento abstracto — esse que, com pinças, um passo depois do outro, nos despe e descreve, a todos, ao pormenor.