Da mediatização à politização da Justiça


Mesmo um foragido à justiça, que tenha sido capturado, não perde a sua integridade moral como ser humano e o seu direito à imagem. Nem sequer um prisioneiro de guerra, de acordo com as convenções internacionais, pode ser exibido dessa forma, quanto mais um preso de direito comum.


Infelizmente nos últimos dias temos assistido a uma excessiva mediatização de um processo criminal, que envolveu a fuga e posterior captura de um arguido, e que tem servido simultaneamente para uma enorme politização desse processo. Essa situação é extremamente prejudicial para o bom funcionamento da justiça, que se deve fazer longe dos holofotes e sem intervenção política.

A situação começou com uma entrevista dada pelo foragido à justiça a uma estação de televisão, onde se permitiu referir que só voltaria ao país se fosse indultado. Obviamente que um indulto nessas circunstâncias seria completamente absurdo, mas o Presidente da República não deixou de comentar o caso, referindo apenas a ultrapassagem do prazo como obstáculo ao indulto.

Quando finalmente o foragido foi capturado, tal justificou que o Director da Polícia Judiciária desse uma conferência de imprensa e uma série de entrevistas televisivas a explicar os contornos da operação, onde se referiu amplamente às circunstâncias da detenção e até ao estado de espírito do arguido. Não se vê, no entanto, qualquer justificação para um órgão de polícia criminal vir dar conferências de imprensa e entrevistas sobre detenções e muito menos que faça revelações sobre o arguido aos jornalistas. Um fugitivo capturado não perde por esse motivo a sua dignidade e deve ser respeitado como cidadão, não devendo por isso os órgãos de polícia criminal fazer quaisquer declarações públicas a respeito do mesmo.

É, para além disso, absolutamente inaceitável que tenha sido publicada em diversos meios de comunicação social uma fotografia do arguido em pijama, alegadamente tirada aquando da sua detenção. Mesmo um foragido à justiça, que tenha sido capturado, não perde a sua integridade moral como ser humano e o seu direito à imagem. Nem sequer um prisioneiro de guerra, de acordo com as convenções internacionais, pode ser exibido dessa forma, quanto mais um preso de direito comum. Tal situação desrespeita claramente direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, os quais são obrigatórios para todas as entidades, públicas e privadas.

Mas, como se não bastasse toda esta mediatização à volta da fuga e da captura do arguido, verificou-se ainda uma totalmente indesejável politização deste processo. A Ministra da Justiça veio logo declarar que a Polícia Judiciária cumpriu a sua missão. O Primeiro-Ministro veio dizer que a detenção era uma prova de que as instituições funcionam. Já o líder da oposição veio sugerir que a detenção teria sido influenciada pelo calendário eleitoral, criticando no Twitter as sucessivas aparições do Director da PJ e referindo que “pelos vistos, o azar de João Rendeiro foi haver eleições em Janeiro”. Já o Presidente da República veio criticar a insinuação, dizendo que a mesma “é não conhecer o que é uma investigação criminal, as dificuldades que implica quando atravessa fronteiras de vários países. É não ter a noção”.

O que seguramente não deve ocorrer é ver os principais órgãos de soberania a pronunciar-se sobre o significado político de uma investigação criminal, que o princípio da separação de poderes reserva às autoridades judiciárias. Neste caso é que deve ser plenamente aplicada a frase tantas vezes repetida, de que à política o que é da política e à justiça o que é da justiça.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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