Michel Desmurget. “Estamos a criar uma geração de crianças que consegue fazer coisas simplistas, carregar num botão”

Michel Desmurget. “Estamos a criar uma geração de crianças que consegue fazer coisas simplistas, carregar num botão”


Neurocientista, autor de A Fábrica de Cretinos Digitais, aponta o dedo à indústria de videojogos e redes socais. “Sabem que estão a vender m*”


O livro A Fábrica dos Cretinos Digitais, lançado em Portugal em outubro pela Contraponto, foi publicado em França em agosto de 2019. Com uma pandemia pelo meio, que trouxe a muitas crianças (e adultos) mais tempo de ecrã e a experiência do ensino à distância, Michel Desmurget, neurocientista francês determinado em combater o “mito” de que a tecnologia está a tornar os “nativos digitais” mais espertos, acredita que não há nada a rescrever e que olhar para o digital como progresso pedagógico é uma “treta”. Aponta o dedo à indústria dos videojogos e redes sociais, que acusa de saber perfeitamente o que está a fazer – na sua visão, uma operação de “descerebração” a uma escala inédita. E que aproveita “fraquezas” do cérebro para atrair e prender o mais tempo possível os utilizadores. Recomenda tempo zero de ecrã antes dos seis anos e nisso inclui televisão e desenhos animados, que as crianças hoje consomem por dia em doses que os pais não tinham nem numa semana. Depois dos seis anos, não mais de 30 minutos por dia (tudo incluído…).

Começa este livro com a ideia de que o consumo recreativo do digital pelas novas gerações é absolutamente astronómico. Estamos habituados a discutir o consumo recreativo de drogas. Foi uma primeira provocação?

Não é uma provocação. Quando se fala de ecrãs, as pessoas tendem a dizer ‘lá estão os tecnofóbicos, depende daquilo que se faz com os ecrãs…”. Obviamente que depende daquilo que se faz. Se as crianças usassem os ecrãs para ler o Guerra e Paz ou para consultar tutoriais sobre como se resolvem equações de segundo grau, não estaríamos aqui a falar. Não é ser tecnofóbico. Claro que há coisas boas que se pode fazer com o digital, uso ecrãs o dia todo no trabalho e é algo positivo em termos de acesso a dados. Há softwares hoje muito mais eficientes do que os métodos de trabalho que tínhamos – quando comecei a fazer investigação era um pesadelo escrever um paper. Agora também há muita coisa que já se revelou ser negativa e prejudicial para o desenvolvimento. Por isso não me interessa o que é que as crianças poderiam fazer com o digital num mundo ideal, o que me interessa é o que elas fazem e o que elas fazem na realidade é usar os ecrãs para entretenimento.

Cita uma frase de Chris Anderson, ex-editor da revista Wired, em que ele diz que numa escala do açúcar ao crack, os ecrãs estão mais perto do crack. À luz do que sabe em termos de efeito cerebral, pode falar-se mesmo de algo comparável a drogas em termos de adição ou alienação?

Há um debate aberto sobre a adição. Neste momento parece-me que há o consenso de que a adição aos ecrãs existe e que partilha elementos em comum com a adição a substâncias. A minha dificuldade é como se mede isto. Dependendo da escala que se usa, os resultados vão de 3% de adição a 40%. Penso que o prudente tendo em conta o que já se sabe é dizer que a adição existe. É uma loucura contestar isso. O segundo ponto é que se formos pensar em adição patológica, estamos a falar de uma minoria das crianças, 1% a 3%, mas ainda assim temos de pensar que 1% a 3% de milhões de crianças começa a ser muita gente. A adição é uma questão importante mas não se deve pensar que se a criança não está viciada não é um problema. Quando olhamos para os números, o que vemos é que crianças muito novas, com cinco anos por exemplo, estão quase três horas por dia à frente de ecrãs. Chega-se aos oito anos e são cinco horas. Nos adolescentes são sete. Quando se soma até aos 18 anos, é o equivalente a 32 anos letivos.

Mais do tempo que passaram na escola.

É uma loucura. Quer possamos ou não chamar-lhe adição, é uma coisa que não me cabe na cabeça.

Mas no cérebro, o que é que acontece? Já há muito tempo se fala de as redes sociais proporcionarem uma sensação de recompensa como as drogas ou o chocolate.

O sistema de recompensa está envolvido em muitos dos nossos comportamentos por isso aqui também é acionado, o problema é quando se torna algo patológico. Evidentemente que em alguns casos teremos as mesmas distorções no funcionamento cerebral que vemos no consumo de substâncias. E o que sabemos de estudos com animais, com roedores, é que quando são bombardeados com estímulos, há uma maior suscetibilidade para a adição. O que se pensa é que não se será apenas a adição a ecrãs mas uma maior suscetibilidade para a adição no geral. Há um risco de menor desempenho cognitivo, de menor concentração mas também um maior risco de adição. Claro que muitos dos estudos que temos são em roedores e nós somos mais complexos, mas aquilo que aprendemos sobre mecanismos básicos do cérebro aprendemos com animais.

Antes deste livro escreveu TV Lobotomie. Coloca a televisão na mesma categoria dos smartphones e tablets?

Quando se olha para o comportamento das crianças, o primeiro ecrã continua a ser a televisão, mas a televisão num sentido alargado. Não é a televisão que está ligada na sala lá de casa, são séries, filmes, streaming, Netlix. O segundo ecrã são os jogos. E este tipo de ecrãs, dos 2 aos 12 anos, representa mais de 90% do uso. Depois vêm as redes sociais na adolescência. Claro que a televisão na sala de estar, os tablets e os smartphones não são a mesma coisa, mas um smartphone é apenas uma forma de ter uma televisão e uma consola de jogos no bolso, porque é para isso que são usados pelas crianças. São ferramentas diferentes mas no final do dia é para isso que serve.

Mesmo na televisão, hoje as crianças têm uma oferta inesgotável, não se compara com quando os desenhos animados eram ao fim de semana de manhã ou à hora do lanche.

Sim, a cada três ou quatro anos há um novo estudo sobre uso de ecrãs, a cada estudo pensa-se que se atingiu um pico mas no estudo seguinte o número de horas passado em frente aos ecrãs é maior. Uma das razões é essa. Quando eu era miúdo, havia desenhos animados de manhã ao sábado, às vezes à tarde. Não sei se em Portugal era assim, mas em França a televisão acabava às 11 da noite ou algo assim, e só voltava na manhã seguinte. Agora é 24 horas por dia, inclusive nos canais para crianças. Num dia as crianças provavelmente consomem destas coisas como nós consumíamos numa semana. É um aumento enorme.

No livro menciona várias estimativas do tempo passado em frente ao ecrã. Uma criança no pré-escolar passa 50 minutos por dia em frente a um ecrã, o que dá 300 horas por ano.

Isto são os números dos zero aos 2 anos. No pré-escolar até aos cinco anos já é mais. Entre os 2 e 4 anos, chegamos a duas horas e quarenta e cinco minutos por dia, um quinto do período normal de vigília da criança. Ao longo de um ano, estamos a falar de mais de mil horas.

Chega-se aos 18 anos com um tempo de ecrã equivalente a 32 anos letivos ou a 15 anos num emprego normal, como também escreve. Por que lhe parece importante pôr a questão nestes termos?

Porque não é só uma questão do tempo que estão à frente dos ecrãs, é do tempo livre que estão à frente dos ecrãs a ver televisão, a jogar e depois no Instagram, Tik Tok, etc. Se uma criança de dez anos está meia hora por dia à frente do ecrã não é um problema. Se o sono estiver bem, se não houver outros problemas, tudo bem. Agora quando estamos a falar de cinco, seis horas, estamos a falar de não fazerem mais nada. Vão à escola, precisam de dormir e o tempo é precioso, especialmente nas crianças. É uma moeda preciosa e estão a gastá-lo em entretenimento que não constrói o cérebro e que, em muitos aspetos, torna mais difícil o seu desenvolvimento.

Achei interessante as comparações que faz com o que se perde. Escreve a certa altura que quando uma criança de dois anos passa “50 minutinhos” por dia em frente ao ecrã, isto ao fim de dois anos equivale a 600 horas, à duração de um ano letivo do pré-escolar e, em termos de linguagem, à perda de 200 mil declarações, ou seja, perto de 850 mil palavras não ouvidas.

Sim, há alguns estudos sobre isso. Uma das primeiras vítimas do ecrã são as interações intrafamiliares, desde logo com os pais. Nas crianças mais novas, isso é muito importante para aprender a linguagem e adquirir vocabulário. Numa criança de dois anos, por cada hora em frente ao ecrã, remove-se quase 50 minutos de interação verbal. Isto não é um juízo que estou a fazer, é uma observação. E digo isto porque o tempo que as crianças passam em frente aos ecrãs é prejudicial, mas o tempo que nós passamos em frente aos ecrãs também é. Quando se está a ver Netflix, a jogar ou a fazer o que quer que seja no telemóvel, tem-se o mesmo impacto em termos de diminuição de interação verbal. E gastámos muito tempo para a desenvolver.

Em Portugal, os miúdos hoje usam muitas palavras do brasileiro. Não pode ajudar a familiarizar com outras línguas, outras culturas?

O que está demonstrado é que nas idades mais novas, quanto mais tempo de ecrã, mais dificuldades de linguagem, por causa da tal falta de interação verbal mas também por haver menos tempo de leitura e leitura partilhada. Podem aprender a falar brasileiro, mas tente ir ao Youtube ver um vídeo em chinês e diga-me se conseguiu aprender alguma coisa. E depois a mãe diz “vê, já sabe dizer yellow, já sabe falar inglês”. É uma treta. Os estudos mostram que até aos dois anos os miúdos não retêm nada daquilo a que se chama “conteúdos educativos”. A partir dos três, claro que conseguem aprender algumas palavras, mas exige muito mais repetição do que na aprendizagem na vida real. Há trabalhos feitos com palavras raras, palavras menos frequentes mas que são importantes. Por exemplo “gravidade”. Num livro infantil, há provavelmente 30 a 40 palavras raras a cada mil palavras. Na Rua Sésamo, são duas ou três. Claro que dizem palavras simples – mesa, cadeira, essas coisas – mas a aquisição de léxico é incomparável. Aprendem algumas palavras simples, mas muito menos do que aprenderiam em interações verbais.

Vemos também que as crianças acabam por ter vídeos e episódios favoritos, que repetem à exaustão. 

Sim. Como resumir… É melhor do que pôr a criança num armário, sem interações. Mas aprende-se menos do que numa interação normal e se o ecrã não estivesse lá. Aprende-se mais em interações livres entre pais e filhos. Pode haver algum efeito positivo em crianças de contextos mais desfavorecidos, mas é menos bom do que seria ler um livro ou conversar, estamos a falar de algo que é bom à falta de melhor.

Defende neste livro que a ideia de que a geração dos nativos digitais vai ter um super-cérebro é um mito. O que antecipa? 

Meu Deus… As pessoas dizem que eles sabem o que nós não sabíamos, que são diferentes, mas ninguém consegue responder: mas são diferentes em quê? O que sabem que as gerações anteriores não sabiam? Não é linguagem. A capacidade de concentração foi-se. Há um estudo nos Estados Unidos sobre conhecimento de contexto e a capacidade de ter um stock de informação que nos ajude a pensar sobre o mundo. Também não têm mais disso. Também não é de informática e ciência de computadores. Em França tivemos o confinamento, saiu um relatório a dizer que o digital foi um desastre pedagógico e uma das razões é que os miúdos não tinham as competências básicas para usar emails, pdfs, etc. Então o que é que eles conseguem fazer, raios? Encontrei uma resposta no relatório PISA da OCDE, em que dizem que são bons a resolver tarefas concretas. Isso é bom, pensamos. Depois vai ver quais são as tarefas em que foram tão bons e é perturbador, é quase um insulto. As tarefas eram conseguir ligar um leitor de som, ligar o ar condicionado, comprar um bilhete de comboio na internet. Estas são as tarefas em que são bons.

Crianças de que idade?

Adolescentes. Conseguem comprar um bilhete de comboio na internet. Desculpe a linguagem, mas deixa-me furioso. Leu o Admirável Mundo Novo? A certa altura temos exatamente aquilo. Temos a casta dos alfas que consegue pensar, que tem informação de contexto, vocabulário, que consegue concentrar-se. São intelectualmente saudáveis. E depois temos a casta dos gama, uma enorme população que vai comprar ao pão, vai ao restaurante, fazem tudo mas não têm outras competências para pensar o mundo. Para mim é o que esse estudo da OCDE descreve. Estamos a criar uma geração de crianças que consegue fazer coisas simplistas, carregar num botão, comprar apps que um tipo de Google decidiu que vão ser tão fáceis de usar como uma escova de dentes. Mas depois falta-lhes o que faz de nós humanos, linguagem, conhecimento, cultura. A cultura é o que nos permite pensar no mundo. Esta geração gama deixa-me zangado. Não, não sabem coisas que as gerações anteriores não sabiam.

Serão mais impulsivos, mais manipuláveis?

Há um estudo da Universidade de Stanford que tentou medir como avaliavam a informação que encontravam na net, por exemplo a credibilidade. A conclusão é que não conseguem avaliar. Conseguem distinguir entre Facebook e Instagram, mas a capacidade para perceber o que leem é praticamente zero. Na altura resumiram-no a uma palavra: bleak (sombrio). Os investigadores diziam mesmo que ao início pensavam que as perguntas que estavam a fazer eram demasiado simples e afinal não. Isto é um perigo para a democracia. São tão incapazes de processar de informação e têm tão pouca informação de contexto… Lá está, porque alimentámos esta coisa de que é só ir ao Google. “Google it” e não precisamos de saber mais nada. Não é assim que o cérebro funciona. Se cada vez que recebemos uma informação tivermos de ir à internet para a descortinar…

Na prática, o que vê já hoje por exemplo nos seus estudantes, nos jovens que nasceram no início dos anos 2000 e estão hoje no ensino superior?

O que noto são défices de linguagem. Aqueles que usaram menos smartphones dizem que foi por causa dos pais, que dava enormes discussões mas que agora agradecem. Mas no fundo fico triste, porque há montes de miúdos com potencial e são tão inundados por estas aplicações da treta e inúteis que não desenvolvem competências emocionais e intelectuais. E há uma coisa: quando perdes o comboio, perdes o comboio. Chega uma altura em que é demasiado tarde. Não gostamos de o ouvir, mas é o que é. Podes correr mas já não vais apanhar o comboio. Tenho pena porque podiam fazer muito mais e limitam-se a estar ali a carregar, a comprar e roubamos-lhes a concentração, a cultura.

Em Portugal temos escola pública e privada. Quem tem dinheiro consegue à partida comprar mais e melhores telefones, mas vemos também políticas mais rígidas com os telefones, não os poderem ter até ao final do dia ou só nos recreios maiores, o que num agrupamento com milhares de alunos é mais difícil de implementar. As desigualdades tenderão a agravar-se?

Há um enorme gradiente de uso de tecnologia e smartphones relacionado com o contexto socioeconómico. Quanto mais as crianças vêm de meios mais favorecidos, menos os usam. É quase o dobro do uso. O estímulo está lá, mas usam-no menos. Na escola acontece é o mesmo: quanto mais estas coisas são usadas na escola para ensinar, mais aumenta a desigualdade. Durante muito tempo a questão na sociologia da educação tem sido qual é o motivo para o fracasso académico. Há imensos estudos. Nos últimos dois anos tem-se virado para como expandir o sucesso académico. Quando se olha para famílias menos favorecidas com crianças que se saem muito bem e para que estratégias adotam, há duas coisas: uma é o investimento que fazem na leitura – acho que ainda não inventámos nada melhor para a construção do cérebro que ler. E a segunda é um controlo brutal de uso de ecrãs. E o que é interessante é quando se olha para os resultados do PISA, vemos por exemplo como a China está muito acima dos resultados de desempenho académico da maioria dos países da OCDE. Os piores alunos na China são melhores que os alunos médios na OCDE. Claro que há diferenças estruturais na forma como se valoriza trabalho, escola, mas isto tem um impacto. Na Europa, 10% a 20% dos adolescentes diz que lê alguma coisa todos os dias, um livro, uma revista. Na China é mais do dobro. Leem muito mais do que nós. E basta vermos como recentemente o Governo chinês avançou com controlo brutal sobre videojogos, redes sociais.

Mas concorda com esse caminho de proibir o uso e aplicar multas?

Concordo que ninguém me deve dizer como devo criar os meus filhos. Agora eles olham para isto como se fossem maus tratos infantis. Se o virmos como escolha educativa, não têm de interferir. Se pensarmos que é uma forma de mau trato, o Estado pode ter de intervir. Acho que em primeiro lugar deve estar a informação, mas não é justo o que se está a fazer às crianças.

Mas concorda que a exposição aos ecrãs desde tenra idade é uma forma de mau trato infantil?

Não tenho uma resposta definitiva sobre isso. Mas acho que a certa altura teremos de fazer alguma coisa. Não sei se terá de ser um passo assim tão brutal, mas reconheço que temos um problema. As crianças são o futuro dos nossos países, é um pensamento bonito. E quando olhamos para redes sociais, Netflix, televisão, videojogos, todo este universo, eles usam todos os truques que podem para pôr as crianças a fazerem o que lhes interessa: gastar tempo e dinheiro ali. Enquanto não jogarem de forma justa com as crianças, provavelmente a única maneira é ter algum tipo de intervenção.

Aumentar a regulação?

A China não bate nas crianças, bate nas companhias que batem nas crianças. E acho que isto é justo porque estes tipos não são sérios. Quando se olha para o Facebook, eles sabem como manipulam as crianças.

Houve nos últimos tempos uma forte discussão com as denúncias feitas por Frances Haugen sobre como havia dados internos sobre como o Instagram contribui para distúrbios alimentares e pensamentos suicidas de crianças. O que é que o impressiona mais?

O que tem saído cá para fora sobre o Facebook não é novo. Já tínhamos tido o antigo vice-presidente Facebook a fazer críticas muito fortes. O que me irrita é que eles sabem que estão a vender merda. Mas continuam a fazê-lo. Estão ricos, têm biliões, o que querem mais? É nojento pensar que por causa de mais dinheiro se está a pôr em causa o futuro.

O que é o seu olhar de neurocientista vê por exemplo quando faz login no Facebook?

A primeira questão é porque é que faz login e eles sabem-no perfeitamente. Existe aquilo que em inglês se chamou FOMO: fear of missing out (o medo de ficar de fora). O cérebro tem esta fraqueza, foi construído para encontrar informação, era uma questão de sobrevivência. Tínhamos de encontrar o máximo possível de informação no nosso ambiente para saber o que podia ser uma oportunidade de alimento, etc. O cérebro, em particular o cérebro das crianças, está programado para isto. Imagine esta experiência: estou a dar-lhe uma aula, tem um papel e uma caneta e está a escrever o que eu estou a dizer. Noutro cenário, tem papel, uma caneta e o telemóvel em cima da mesa. O telefone está desligado, não devia ter qualquer impacto mas tem. Está a prestar menos atenção ao que eu estou a dizer porque há sempre ali uma coisa no cérebro a lembrar: “Está alguma coisa nova ali, está alguma coisa nova ali”. Portanto nem é preciso as notificações, há esta motivação para procurar informação. Esse antigo vice-presidente do Facebook descreveu isso muito bem quando disse que é tudo feito para procurar satisfazer essa motivação. E por cima disso colocam-se os likes, que são bons para o ego, que ainda reforçam mais essa busca. É tudo feito para te levar para lá e, lá chegado, para te manter lá.

Os jogos dirigidos a crianças também já estão cheios de cenouras, “surpresas” marcadas para uma determinada hora do dia para as fazer querer voltar. Lá em casa no Natal passado chegava uma “prenda” a um dos jogos do tablet todos os dias.

Sim, está tudo programado. E acho que as pessoas deviam olhar seriamente para o escândalo do Cambridge Analytica. Houve alguma desvalorização. Na Austrália, foram conhecidas informações internas do Facebook que mostravam como monitorizavam raparigas com sinais de depressão e insegurança pelos conteúdos que liam para serem direcionadas para determinadas publicidades [investigação publicada em 2017 pelo jornal The Australian]. Isto não é publicidade normal, isto é usar informação que uma pessoa dá sem saber para ser usada contra si aproveitando as fraquezas do cérebro. E não há nenhuma forma de as crianças se defenderem disto, está para lá do consciente. Como já aconteceu no passado: qual é o primeiro fator que prevê que uma criança se vá tornar fumadora?

Os pais fumarem?

O número de horas que passa à frente de séries e filmes. A certa altura até o Rocky começou a fumar. Porquê? O Stallone aceitou 500 mil dólares de uma empresa que queria juntar a imagem de viralidade ao tabaco. As pessoas que fumam em televisão habitualmente são bonitas, têm dinheiro, bons carros, fumam em situações prazerosas e as memórias vão associar estas características. Acontece o mesmo com o álcool e outras coisas mas o ponto aqui é que este tipo de coisas estão para lá daquilo que temos consciência e não nos conseguimos defender. Às vezes nem as vemos. Viu o filme Avatar?

Sim.

A Sigourney Weaver aparece a fumar, a dizer que precisa de um cigarro. Ninguém repara nisso mas o cérebro repara. A grande maioria começa a fumar antes dos 18 anos. Antes dos 18 a região frontal do cérebro que nos ajuda a tornar decisões razoáveis está a ser desenvolvida, por isso corremos mais riscos. Há um grande estudo na população adolescente que mostra que metade das crianças que experimenta fumar foi exposta a imagens positivas sem saber. E é este tipo de coisas que as redes sociais fazem: são expostas a informação, estereótipos e as crianças não se conseguem defender.

Os primeiros estudos que ligaram tabaco a cancro são dos anos 30 e 40 do século passado. Vê as redes sociais a replicar a estratégia das tabaqueiras?

Não só as redes sociais mas a indústria dos videojogos também. Estamos lidar exatamente com a mesma coisa. O que o tabaco, as alterações climáticas ou outros escândalos de saúde pública nos ensinaram é que pode haver um hiato de 20 ou 30 anos entre consenso científico e o reconhecimento público e dos media. As evidências de que os ecrãs são maus para as crianças estão aí. E se fui obsessivo em pôr todas as referências no livro foi porque as podem ir ler e ver. Por exemplo falo de linguagem e as pessoas dizem que é controverso… Não há controvérsia nenhuma. Há meta-análises, há experiências, há tudo e vai tudo na mesma direção: há mais atrasos.

Hoje continuamos a ter o tabaco à venda. Daqui a 50 anos, esteja o planeta como estiver, o que antevê?

O tabaco está à venda mas hoje toda a gente sabe que é uma merda que te dá cancro e mata. O que não era o caso há 30 anos, quando as pessoas diziam que não é verdade, não é bem assim. 

Estamos ainda na fase de negação no caso do recreativo digital?

Sim, na fase do lobby comercial que diz que os videojogos são bons para os resultados escolares e para a linguagem. Qualquer coisa em que eles consigam pensar vão dizer. Estamos em negação mas a ciência está aí. Como alguém disse, as crianças são a mensagem que enviamos para o futuro. E não sei que tipo de mensagem estamos a mandar para o futuro. Serão gamas felizes? Não estaremos cá para ver, mas temos razões para ter vergonha. A minha geração tem razões para se envergonhar do que fez ao planeta e do que está a fazer às crianças.

Neste livro escreve a certa altura que nunca na história da humanidade foi realizada uma tal experiência de descerebração em tão grande escala. Acredita que é isso que está a acontecer?

O nosso cérebro é antigo. As pessoas dizem que o cérebro vai adaptar-se, mas o cérebro não vai mudar antes de milhares e milhares de anos. O cérebro é como um músculo. Precisa de ser alimentado mas precisa de alimentos específicos, nem toda a comida é boa para o desenvolvimento. Precisa de interações, precisa de dormir, precisa de atividade de atividade física, que hoje se sabe que é importante para maturação do cérebro. Estamos num ambiente que é sub-ótimo em todas as dimensões que são importantes e críticas para o desenvolvimento cerebral. A forma como vivemos e utilizamos os ecrãs afeta linguagem, concentração, memória, atividade física e o sono. Imagine uma doença que causasse todos estes problemas nas crianças, haveria milhões de euros a ser investidos em investigação para a erradicar. Nós estamos a tentar vendê-la, é um puro contrassenso.

Alerta neste livro que pela primeira vez estamos diante de uma geração com o Quociente de Inteligência (QI) inferior ao dos pais.

O milagre seria vermos o QI aumentar. É preciso ver que o QI numa população pode ser influenciado por diferentes coisas. Se está num país em que o sistema de saúde ou o sistema educativo está a desenvolver-se, isso tem um efeito positivo no QI nas novas gerações. Mas estou a falar por exemplo de estudos feitos em países nórdicos, onde testam as crianças há várias décadas e têm um sistema de saúde e de ensino que tem sido linear. E o que perceberam, é que nestes países e também o vemos em França, é a primeira geração em que o QI desce.

Não pode ser o caso dos testes não estarem adaptados?

Os testes são calibrados. Mas mesmo não olhando para o QI que sempre foi um indicador problemático, a inteligência das crianças só pode estar a diminuir quando estamos a prejudicar tudo aquilo que distingue a inteligência humana: linguagem, socialização, cultura, memória.

Recomenda tempo zero de ecrãs abaixo dos seis anos de idade. Inclui aqui desenhos animados na televisão? Não é um pouco excessivo?

Os estudos mostram que mesmo um uso pequeno quando se é criança, 10 a 15 minutos por dia, tem impacto. E o que sabemos é que quanto mais novos são expostos, mais usam. Portanto não estou a dizer que não se pode ver ao sábado, ao domingo, uma ou duas vezes por semana ver algo que seja adaptado à criança, de preferência com os pais a falarem depois. Agora ficar a ver Netlfix toda a tarde ao fim de semana não. Mesmo quando digo ver ao fim de semana, estou a dizer meia hora ou algo assim. Claro que pode ir ao cinema, mas se for todos os dias tem impacto. De manhã então antes de ir para a escola deve ser abolido. É um tempo privilegiado para falar com as crianças. Quando se liga um ecrã nesse curto período, automaticamente multiplica-se quase por quatro o risco de ter atrasos de linguagem. 

Acima dos seis anos, uma hora por dia já é de mais?

Os dados que temos mais robustos são de resultados escolares, que refletem desempenho e funcionamento social e emocional. Se os conteúdos forem adaptados e o sono não for afetado, diria meia hora. Se for muito otimista, pode ir até uma hora mas a partir daí começa a ser mau. Um dos estudos de que falo no livro foi uma experiência com crianças de nove anos, sem problemas escolares, de famílias ricas e sem controlo de tempo para jogar. Pega-se num grupo e dá-se uma consola no início e a outro dá-se uma consola no fim, passados quatro meses. As crianças que tiveram a consola jogaram em média 40 minutos por dia. Os outros jogavam 10 minutos, havia na prática mais 30 minutos de jogo. Quando foram ver, isso retirou tempo a fazer trabalhos de casa e houve uma diminuição dos resultados escolares de 5% a 7%. Pode dizer-se que não é muito, mas estamos a falar do resultado de 30 minutos por dia ao fim de quatro meses. Houve outro estudo com crianças de 11 anos em que estudavam uma determinada matéria, depois um grupo passada uma hora ia jogar e passadas duas horas ia dormir e outro grupo não jogava. De manhã foram medir aquilo de que se lembravam e o grupo de controlo lembrava-se de mais de 80% e o grupo que jogou lembrava-se de 50%. E o que é interessante neste estudo é que monitorizaram o sono e viram que mesmo duas horas depois de terem acabado de jogar, o sono destas crianças estava desorganizado e havia menor duração de sono profundo (deep sleep), que é muito importante para a consolidação de memória. No fundo, como o cérebro esteve mais excitado, o que é stressante, é como se soubesse que tem de permanecer atento. Estamos a falar de 30% de itens que não retiveram. E quem comercializa este tipo de coisas sabe perfeitamente o que está a fazer.

Escreveu este livro antes da pandemia, em que o digital apareceu como solução para as escolas e para o distanciamento social. Vai escrever um segundo livro?

Não, porque acho que a pandemia só tornou mais visível o que já estava a acontecer. No que diz respeito à escola, é a prova de que a digitalização é um desastre. Não sei como foi em Portugal, mas em França a escola remota foi um desastre. Gastaram-lhe milhões em computadores, etc., para nada. Portanto é a prova de que este caminho da digitalização é muito negativo e não sei que alternativa teremos porque em França, não sei como é em Portugal, é muito difícil encontrar professores. São tão mal pagos que ninguém quer ser professor.

Temos o mesmo problema cá, com milhares de alunos sem professores a pelo menos a uma disciplina. 

Pois, uma opção será substituir professores por computadores. É o que fazem em França. Não utilizamos os computadores para ensinar computação e programação, usamos os computadores para substituir tempo humano.

Mas estão a fazer isso em França?

Sim, estão a usar computadores em áreas em que faltam professores, por exemplo matemática, usam software para fazer exercícios. Não é algo a grande escala como acontece nos EUA, mas a tendência está aí. Se disserem não há alternativa, não dá para contratar, ok. Mas quando o argumento é que é bom para a pedagogia, os miúdos vão ficar mais espertos, isso é uma mentira. Todos os estudos mostram que quanto mais se põe o digital nas escolas, menos as crianças aprendem. Se for por razões económicas, assuma-se. Agora não é progresso pedagógico, diminui a qualidade pedagógica e aumenta as desigualdades.

Recebeu ameaças da indústria ao longo destes anos? Ou tentativas de suborno por exemplo com financiamento de investigação?

Recebi algumas propostas que se pareciam com subornos. Ameaças da indústria não, mas claro que a vida é mais simples quando se diz coisas boas. Mas acho que as pessoas que costumavam dizer que televisão, telefones são coisas boas para as crianças já não o dizem tanto. Fui salvo pelo facto de o livro ter saído quando saiu. Hoje quem trabalha com crianças, pediatras, neuropediatras faz as mesmas observações. É como as alterações climáticas, durante anos foi dito não é verdade. Agora consegue ver-se. Vai-se ao Monte Branco e não há neve. É a mesma coisa com os ecrãs, agora começa a ver-se e é cada vez mais difícil negar.

Os miúdos também já pedem para usar, da mesma forma que perguntam se podem comer um chupa.

Depende um bocado daquilo que os pais lhes disserem. As crianças precisam de ouvir isso, que faz mal ao sono, que têm piores resultados. Conseguem perceber.

Doutorou-se com uma tese sobre os mecanismos de controlo do gesto. A esse nível, estamos a perder controlo?

É como tudo o que se passa no cérebro, seja a linguagem ou a memorização: para desenvolver uma função temos de a utilizar. Há cada vez mais crianças com problemas de descoordenação, algumas com dispraxia. Mas há muitas crianças classificadas como tal mas que não são dispráxicas, falta-lhes experiências suficientes por exemplo a usar as mãos. Se só usa o tablet e não desenha o suficiente, não brinca, perde a motricidade fina. não desenvolve os nervos da mão. Mas há muito mais impactos visíveis numa população muito mais sedentária. Em França e em muitos países nos últimos 30 a 40 anos as crianças perderam 20% a 25% da capacidade pulmonar, medida pelo indicador VO2 max, porque a atividade física diminuiu brutalmente. E porque vivemos em cidades seguramente mas hoje por causa dos ecrãs. Portanto não estamos a falar apenas de impactos em termos cognitivos e intelectuais, mas de impactos físicos que estão à vista.