Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para o drama de “muitas mulheres [que] sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde”, afirmando que esse tratamento viola os “direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação”.
A violência obstétrica é uma realidade pela qual muitas mulheres passam sem sequer a identificar como uma violação dos seus direitos. No entanto, o isolamento, a prática de atos médicos sem consentimento informado, os abusos físicos, psicológicos e verbais, a negação de anestesia, de acompanhamento ou de respeito pelas escolhas da mulher no momento do parto são uma experiência comum.
Em 2015, a Associação Portuguesa pelos direitos da Mulher na Gravidez e no Parto publicou um relatório sobre as “Experiências de Parto em Portugal", no qual 1468 mulheres (43,5% da amostra) afirmam não ter tido o parto que queriam. Estando em causa não a ocorrência de situações inesperadas, mas a “perda de controlo sobre o processo do parto”. Tudo devia começar com a prestação de todas as informações necessárias a uma decisão sobre o próprio parto, no entanto, 43,3% declaram que não receberam “informação sobre algumas das suas opções possíveis no trabalho de parto e parto” e 43,8% não foram consultadas sobre as intervenções às quais foram sujeitas. Na segunda edição deste estudo, com dados relativos a 2015-2019, 68% das 7555 inquiridas não tinham plano de parto e 14% não tiveram o seu plano de parto respeitado.
Estes estudos são inequívocos. De tal modo que, em maio de 2021, uma ampla maioria na Assembleia da República aprovou uma recomendação ao Governo para a eliminação de práticas de violência obstétrica como a manobra de Kristeller, a episiotomia de rotina, e o escandalosamente chamado "ponto do marido". A episiotomia (corte no períneo, área muscular entre a vagina e o ânus, para ampliar o canal) tem sido desaconselhada pela OMS como prática de rotina. No entanto, a taxa de episiotomia em Portugal tem-se registado acima dos 70% (de acordo com os dados do Euro-Peristat e do Observatório Português dos Sistemas de Saúde).
Os atos médicos não consentidos ou desnecessários são a faceta violenta de uma realidade mais complexa que é rgente conhecer e combater. A sua criminalização num quadro penal específico tem sido apontada como a solução mais rápida, mas a verdade é que todo o fenómeno carece de estatísticas oficiais e de uma análise sobre a ineficácia da legislação atualmente existente, tanto no âmbito penal como a que confere direitos às mulheres e que não tem sido cumprida. De uma forma ou de outra, é evidente que qualquer alteração do quadro penal poderia vir a frustrar-se pelo problema a montante: o desconhecimento ou a negação da violência obstétrica.
Enquadra-se na segunda opção o parecer da Ordem dos Médicos que recomenda o termo “maus tratos obstétricos" para negar a existência de violência obstétrica “em países onde se prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência". Recorrendo a um eufemismo, a Ordem dos Médicos simplesmente nega a existência de qualquer problema, arrasa o testemunho de milhares de mulheres, todos os estudos conhecidos e recomendações de organizações internacionais e nacionais.
Nos últimos dias, muitas pessoas têm-se insurgido contra esta reação conservadora e corporativa da ordem dos médicos. Num desses contributos, um grupo de médicos reconheceu a violência obstétrica como uma forma de violência de género, e recomendou “a promoção de literacia em saúde, a normalização dos planos de parto, a auditoria pública de indicadores de saúde, a disseminação de boas práticas promovidas pela Organização Mundial de Saúde, a promoção de campanhas de sensibilização sobre direitos dos utentes, assim como sobre Violência Obstétrica junto dos profissionais, e a criação de um método de reporte simples, acessível às vítimas, e uma forma organizada de posterior análise das queixas”.
Estas medidas fazem parte do acervo de recomendações da OMS e do Parlamento Europeu, organizações que já deixaram claro que a violência obstétrica não se resume a um problema de crueldade em países com sistemas de saúde fragilizados ou inexistentes.
O debate está lançado e é crucial não frustrar a expectativa sobre mudanças concretas. É preciso, por todos os meios, combater a normalização da violência obstétrica e capacitar o Serviço Nacional de Saúde para respeitar o direito à autodeterminação do nosso corpo e saúde reprodutiva.