“Quem tem medo do mérito absoluto na universidade?”


Porque quem, afinal, tem medo da promoção por mérito absoluto são os que se afastam de uma visão da universidade com autonomia reforçada, colegial e meritocrática.


Este é o título de um artigo escrito por Orfeu Bertolami, actualmente professor catedrático na Universidade do Porto, a 3 de abril de 2004 no jornal Público, inspirado, com toda a certeza, na peça teatral Who’s afraid of Virginia Woolf? de Edward Albee e sua adaptação cinematográfica, que por sua vez referencia a canção (do filme de Walt Disney Os três porquinhos) Who’s afraid of the big bad wolf? que é cantarolada por duas das personagens ao longo da peça. Nesse artigo, que infelizmente se mantém actual, Orfeu Bertolami defende que os processos de promoção dos professores e investigadores universitários devem ser separados dos processos de recrutamento.

A actual carreira pública dos professores universitários e investigadores científicos é anacrónica: um doutorado que vença um concurso internacional para professor auxiliar (o primeiro patamar da carreira) tipicamente terá que, para aceder ao lugar do topo da sua carreira, vencer mais dois concursos internacionais (para professor associado e para professor catedrático). Em Portugal, muitos argumentam que este percurso aumenta o escrutínio, a exigência e a competitividade. Por estranho que pareça, nenhuma das melhores universidades do Mundo segue esta originalidade nacional. Promovem, em alternativa, uma avaliação frequente do percurso individual de cada professor ao longo de toda a sua carreira, com padrões de mérito absoluto para a progressão muito mais exigentes do que aqueles que se estabelecem em qualquer concurso em Portugal. 

Na semana passada, o Conselho de Ministros aprovou (e muito bem) um passo importante, que deve ser reforçado na revisão dos estatutos das carreiras, para a separação entre progressão e recrutamento através da aprovação da regulamentação de concursos internos nas instituições de ensino superior. Há alguns meses, quando foi anunciada esta intenção, inúmeras vozes se levantaram contra a medida e fizeram-me recordar este artigo de 2004. O que leva uma parte da comunidade académica portuguesa a resistir a uma das mais importantes medidas para uma universidade mais exigente, bem gerida e alinhada com as melhores práticas internacionais? 

O actual modelo em Portugal é uma fonte permanente de conflitualidade, desincentivando a colaboração e a colegialidade – todos os professores em cada área estão em permanente competição com os seus colegas. Não promove a transparência, quer nos processos de decisão que levam à abertura de um concurso nos lugares intermédios ou de topo nem quanto aos objectivos e às expectativas da instituição relativamente aos seus professores e investigadores na sua evolução profissional. 

O modelo português reflecte um legado histórico centralizador e uma desconfiança do legislador relativamente à autonomia e à capacidade de auto-regulação das instituições de ensino superior para tomarem as melhores decisões para a instituição e para o bem público. Esta desconfiança é geradora de burocracia que torna as universidades menos competitivas e mais difíceis de gerir.

Em minha opinião, a adopção de processos de promoção por mérito absoluto conduz a uma maior responsabilização e “prestação de contas” de todos os envolvidos no processo, instituições, líderes académicos e dos próprios professores e investigadores. Exige uma clarificação (e comparação) do que são os padrões em cada área para acesso aos diferentes níveis da carreira e um acompanhamento interno e valorização mais regulares da carreira de cada um dos professores e investigadores. Exige uma maior proactividade dos próprios professores e investigadores na gestão da sua própria carreira. Exige ainda um maior escrutínio em toda a instituição, e pelos órgãos responsáveis pela gestão científica das instituições, relativamente às opções tomadas e aos padrões de qualidade em cada área. Esta maior exigência institucional aumenta a transparência e estabelece mecanismos de controlo e verificação que evitam discricionariedades e promovem a meritocracia, a colegialidade, a colaboração e a partilha de boas práticas. Idealmente, exige também um alinhamento dos processos externos de avaliação e.g. no âmbito da avaliação dos cursos ou das avaliações institucionais da A3ES ou da avaliação das unidades de investigação pela FCT que também devem passar a avaliar mais profundamente a forma como as universidades gerem (ou não) as carreiras dos professores e investigadores. 

Uma parte importante do orçamento das universidades é investida nos salários dos seus professores e investigadores. A boa gestão deste investimento e destas carreiras deve ser uma das prioridades das universidades, em particular num contexto em que existe uma competição global pelos melhores professores e investigadores. Por um lado, reforçando os padrões de exigência no acesso à carreira, com medidas que combatam a endogamia e promovam a diversidade. Por outro lado, promovendo a progressão na carreira através da valorização das carreiras individuais dos professores e investigadores de acordo com objectivos exclusivamente meritocráticos e cada vez mais exigentes. Porque quem, afinal, tem medo da promoção por mérito absoluto são os que se afastam de uma visão da universidade com autonomia reforçada, colegial e meritocrática. 

Professor Catedrático do Departamento de Física

Instituto Superior Técnico

web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/
twitter: @luis_os

“Quem tem medo do mérito absoluto na universidade?”


Porque quem, afinal, tem medo da promoção por mérito absoluto são os que se afastam de uma visão da universidade com autonomia reforçada, colegial e meritocrática.


Este é o título de um artigo escrito por Orfeu Bertolami, actualmente professor catedrático na Universidade do Porto, a 3 de abril de 2004 no jornal Público, inspirado, com toda a certeza, na peça teatral Who’s afraid of Virginia Woolf? de Edward Albee e sua adaptação cinematográfica, que por sua vez referencia a canção (do filme de Walt Disney Os três porquinhos) Who’s afraid of the big bad wolf? que é cantarolada por duas das personagens ao longo da peça. Nesse artigo, que infelizmente se mantém actual, Orfeu Bertolami defende que os processos de promoção dos professores e investigadores universitários devem ser separados dos processos de recrutamento.

A actual carreira pública dos professores universitários e investigadores científicos é anacrónica: um doutorado que vença um concurso internacional para professor auxiliar (o primeiro patamar da carreira) tipicamente terá que, para aceder ao lugar do topo da sua carreira, vencer mais dois concursos internacionais (para professor associado e para professor catedrático). Em Portugal, muitos argumentam que este percurso aumenta o escrutínio, a exigência e a competitividade. Por estranho que pareça, nenhuma das melhores universidades do Mundo segue esta originalidade nacional. Promovem, em alternativa, uma avaliação frequente do percurso individual de cada professor ao longo de toda a sua carreira, com padrões de mérito absoluto para a progressão muito mais exigentes do que aqueles que se estabelecem em qualquer concurso em Portugal. 

Na semana passada, o Conselho de Ministros aprovou (e muito bem) um passo importante, que deve ser reforçado na revisão dos estatutos das carreiras, para a separação entre progressão e recrutamento através da aprovação da regulamentação de concursos internos nas instituições de ensino superior. Há alguns meses, quando foi anunciada esta intenção, inúmeras vozes se levantaram contra a medida e fizeram-me recordar este artigo de 2004. O que leva uma parte da comunidade académica portuguesa a resistir a uma das mais importantes medidas para uma universidade mais exigente, bem gerida e alinhada com as melhores práticas internacionais? 

O actual modelo em Portugal é uma fonte permanente de conflitualidade, desincentivando a colaboração e a colegialidade – todos os professores em cada área estão em permanente competição com os seus colegas. Não promove a transparência, quer nos processos de decisão que levam à abertura de um concurso nos lugares intermédios ou de topo nem quanto aos objectivos e às expectativas da instituição relativamente aos seus professores e investigadores na sua evolução profissional. 

O modelo português reflecte um legado histórico centralizador e uma desconfiança do legislador relativamente à autonomia e à capacidade de auto-regulação das instituições de ensino superior para tomarem as melhores decisões para a instituição e para o bem público. Esta desconfiança é geradora de burocracia que torna as universidades menos competitivas e mais difíceis de gerir.

Em minha opinião, a adopção de processos de promoção por mérito absoluto conduz a uma maior responsabilização e “prestação de contas” de todos os envolvidos no processo, instituições, líderes académicos e dos próprios professores e investigadores. Exige uma clarificação (e comparação) do que são os padrões em cada área para acesso aos diferentes níveis da carreira e um acompanhamento interno e valorização mais regulares da carreira de cada um dos professores e investigadores. Exige uma maior proactividade dos próprios professores e investigadores na gestão da sua própria carreira. Exige ainda um maior escrutínio em toda a instituição, e pelos órgãos responsáveis pela gestão científica das instituições, relativamente às opções tomadas e aos padrões de qualidade em cada área. Esta maior exigência institucional aumenta a transparência e estabelece mecanismos de controlo e verificação que evitam discricionariedades e promovem a meritocracia, a colegialidade, a colaboração e a partilha de boas práticas. Idealmente, exige também um alinhamento dos processos externos de avaliação e.g. no âmbito da avaliação dos cursos ou das avaliações institucionais da A3ES ou da avaliação das unidades de investigação pela FCT que também devem passar a avaliar mais profundamente a forma como as universidades gerem (ou não) as carreiras dos professores e investigadores. 

Uma parte importante do orçamento das universidades é investida nos salários dos seus professores e investigadores. A boa gestão deste investimento e destas carreiras deve ser uma das prioridades das universidades, em particular num contexto em que existe uma competição global pelos melhores professores e investigadores. Por um lado, reforçando os padrões de exigência no acesso à carreira, com medidas que combatam a endogamia e promovam a diversidade. Por outro lado, promovendo a progressão na carreira através da valorização das carreiras individuais dos professores e investigadores de acordo com objectivos exclusivamente meritocráticos e cada vez mais exigentes. Porque quem, afinal, tem medo da promoção por mérito absoluto são os que se afastam de uma visão da universidade com autonomia reforçada, colegial e meritocrática. 

Professor Catedrático do Departamento de Física

Instituto Superior Técnico

web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/
twitter: @luis_os