A rejeição da transferência do Tribunal Constitucional para Coimbra


O argumento da falta de estudos para se fazer uma simples deslocação de dois Supremos Tribunais não tem qualquer cabimento. 


Desde Setembro de 2020 que o Parlamento discute o Projecto de Lei 516/XIV/2ª, do PSD, que determinava a transferência do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal Administrativo e da Entidade de Contas dos Partidos Políticos para Coimbra. Esse projecto teve desde o início a concordância da Ordem dos Advogados, que emitiu um parecer favorável a essa mudança. Na verdade, a mesma corresponde ao efectivo interesse nacional de descentralização dos serviços do Estado a nível judicial, representando igualmente um reforço do princípio da separação de poderes, uma vez que o Tribunal Constitucional não deve estar colocado a dois passos da sede do Governo e do Parlamento, quando lhe compete fiscalizar os diplomas emanados dos mesmos. A deslocação do Tribunal Constitucional para Coimbra, uma cidade que sempre teve uma enorme relevância para o desenvolvimento do Direito Português, seria assim altamente benéfica para o nosso sistema judicial. 

Por esse motivo, apesar da rejeição da proposta pelo próprio Tribunal Constitucional, num controverso parecer que emitiu, o Projecto de Lei do PSD foi merecendo consenso no Parlamento e na opinião pública, tendo por isso sido aprovado na generalidade e na especialidade, sem que ninguém tivesse manifestado uma verdadeira oposição à iniciativa. Na verdade, julgava-se que essa transferência já se tinha tornado absolutamente pacífica.

No entanto, uma vez que se trata de uma Lei Orgânica, a mesma exige a aprovação pela maioria absoluta dos deputados no Parlamento, ou seja 116 deputados. Estranhamente, no entanto, essa proposta teve apenas o voto de 109 deputados a favor, embora só nove deputados tenham votado contra. A proposta não foi, no entanto, aprovada devido à abstenção de 108 deputados do PS e do PCP, tendo sido argumentado em defesa dessa abstenção que eram necessários “mais estudos” sobre o assunto.

É absolutamente lamentável que um Projecto de Lei que teve tão ampla maioria no Parlamento, e que estava em discussão há mais de um ano, venha a ser inviabilizado através de abstenções, demonstrando a pouca vontade dos deputados em proceder à efectiva descentralização do país em termos judiciais. Depois de em 2013 ter sido eliminada por lei do Parlamento a maior parte dos tribunais que existia no interior do país, prejudicando-se assim gravemente essas populações, verifica-se que agora o Parlamento nem sequer é capaz de um gesto de enorme importância para a descentralização judicial, que seria a colocação em Coimbra do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo. E aqueles que inviabilizaram essa transferência nem sequer se dão ao trabalho de apresentar qualquer argumento sério para rejeitar a mudança, já que nem um voto contra assumem, mas apenas uma abstenção envergonhada. O argumento da falta de estudos para se fazer uma simples deslocação de dois Supremos Tribunais não tem qualquer cabimento. Se eram necessários estudos, os mesmos deviam ter sido pedidos antes da votação, sendo que, havendo vontade política no sentido da mudança, há sempre possibilidade de arranjar uma solução adequada para a instalação desses tribunais em Coimbra. Já a falta de vontade política em concretizar a descentralização judiciária é que não se consegue pelos vistos ultrapassar.

Na sua monumental obra Os Maias, publicada em 1888, Eça de Queiroz traça um retrato absolutamente corrosivo da sociedade portuguesa. Nessa obra, a personagem João da Ega a certa altura grita numa discussão com o inglês Craft: “Lisboa é Portugal (…). Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e São Bento”. A única evolução que se verificou nos últimos 133 anos foi que, para além do Terreiro do Paço e São Bento, há ainda que considerar a Rua do Século e a Rua de São Pedro de Alcântara, que aliás distam muito pouco daqueles dois lugares. Quanto ao resto, Portugal continua com o habitual centralismo de sempre, tudo sendo decidido no centro de Lisboa.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

A rejeição da transferência do Tribunal Constitucional para Coimbra


O argumento da falta de estudos para se fazer uma simples deslocação de dois Supremos Tribunais não tem qualquer cabimento. 


Desde Setembro de 2020 que o Parlamento discute o Projecto de Lei 516/XIV/2ª, do PSD, que determinava a transferência do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal Administrativo e da Entidade de Contas dos Partidos Políticos para Coimbra. Esse projecto teve desde o início a concordância da Ordem dos Advogados, que emitiu um parecer favorável a essa mudança. Na verdade, a mesma corresponde ao efectivo interesse nacional de descentralização dos serviços do Estado a nível judicial, representando igualmente um reforço do princípio da separação de poderes, uma vez que o Tribunal Constitucional não deve estar colocado a dois passos da sede do Governo e do Parlamento, quando lhe compete fiscalizar os diplomas emanados dos mesmos. A deslocação do Tribunal Constitucional para Coimbra, uma cidade que sempre teve uma enorme relevância para o desenvolvimento do Direito Português, seria assim altamente benéfica para o nosso sistema judicial. 

Por esse motivo, apesar da rejeição da proposta pelo próprio Tribunal Constitucional, num controverso parecer que emitiu, o Projecto de Lei do PSD foi merecendo consenso no Parlamento e na opinião pública, tendo por isso sido aprovado na generalidade e na especialidade, sem que ninguém tivesse manifestado uma verdadeira oposição à iniciativa. Na verdade, julgava-se que essa transferência já se tinha tornado absolutamente pacífica.

No entanto, uma vez que se trata de uma Lei Orgânica, a mesma exige a aprovação pela maioria absoluta dos deputados no Parlamento, ou seja 116 deputados. Estranhamente, no entanto, essa proposta teve apenas o voto de 109 deputados a favor, embora só nove deputados tenham votado contra. A proposta não foi, no entanto, aprovada devido à abstenção de 108 deputados do PS e do PCP, tendo sido argumentado em defesa dessa abstenção que eram necessários “mais estudos” sobre o assunto.

É absolutamente lamentável que um Projecto de Lei que teve tão ampla maioria no Parlamento, e que estava em discussão há mais de um ano, venha a ser inviabilizado através de abstenções, demonstrando a pouca vontade dos deputados em proceder à efectiva descentralização do país em termos judiciais. Depois de em 2013 ter sido eliminada por lei do Parlamento a maior parte dos tribunais que existia no interior do país, prejudicando-se assim gravemente essas populações, verifica-se que agora o Parlamento nem sequer é capaz de um gesto de enorme importância para a descentralização judicial, que seria a colocação em Coimbra do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo. E aqueles que inviabilizaram essa transferência nem sequer se dão ao trabalho de apresentar qualquer argumento sério para rejeitar a mudança, já que nem um voto contra assumem, mas apenas uma abstenção envergonhada. O argumento da falta de estudos para se fazer uma simples deslocação de dois Supremos Tribunais não tem qualquer cabimento. Se eram necessários estudos, os mesmos deviam ter sido pedidos antes da votação, sendo que, havendo vontade política no sentido da mudança, há sempre possibilidade de arranjar uma solução adequada para a instalação desses tribunais em Coimbra. Já a falta de vontade política em concretizar a descentralização judiciária é que não se consegue pelos vistos ultrapassar.

Na sua monumental obra Os Maias, publicada em 1888, Eça de Queiroz traça um retrato absolutamente corrosivo da sociedade portuguesa. Nessa obra, a personagem João da Ega a certa altura grita numa discussão com o inglês Craft: “Lisboa é Portugal (…). Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e São Bento”. A única evolução que se verificou nos últimos 133 anos foi que, para além do Terreiro do Paço e São Bento, há ainda que considerar a Rua do Século e a Rua de São Pedro de Alcântara, que aliás distam muito pouco daqueles dois lugares. Quanto ao resto, Portugal continua com o habitual centralismo de sempre, tudo sendo decidido no centro de Lisboa.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990