D. Basílio do Nascimento (1950-2021). Um bispo cheio de humor e coragem

D. Basílio do Nascimento (1950-2021). Um bispo cheio de humor e coragem


Prelado que desempenhou um papel proeminente nos esforços para conseguir a independência de Timor-Leste morreu, aos 71 anos, na sequência de um ataque cardíaco.


O mundo está em ruptura, e talvez nenhum posto de observação seja mais fiel a esses signos do caos e da desordem do que um território que tem por destino viver como que sitiado, numa deriva que tantas vezes o afasta de si mesmo, na sua viagem com destino desconhecido. Mas se Onde Nada Existe, Deus Existe (título de um conto de Yeats), D. Basílio do Nascimento soube ser uma voz que lembrou uma e outra vez o estatuto de terra sagrada de Timor-Leste, e manteve o seu compromisso com ela desempenhando as funções de bispo de Baucau, a segunda maior cidade do país, com um sentido de que lhe fora confiada uma grande missão espiritual. Em 2015, numa altura em que se assinalavam os 500 anos da evangelização do território, o Papa Francisco recordou a memória de inúmeros "empreendedores missionários" que tiveram a "coragem" de seguir para Timor-Leste e vincou também o papel da igreja na história timorense, o “suspirado e feliz nascimento desta pátria” e as “dolorosas surpresas” que a igreja ali enfrentou no longo processo de “concertação nacional”. Um dos nomes decisivos deste vínculo é Basílio do Nascimento, que morreu no passado sábado, no Hospital Nacional Guido Valadares, depois de ter sofrido um ataque cardíaco na cidade de Maliana, a Sudoeste da capital. O prelado havia completado em junho 71 anos, e era reconhecidamente uma das vozes que mais soube fazer-se ouvir no período que antecedeu o referendo sobre a independência de Timor-Leste, em 1999, tendo depois, ao longo dos anos, mantido essa confiança com o público, com os jornalistas portugueses a contarem com ele para esclarecer alguns momentos mais conturbados que se foram vivendo naquele território. 

Fernando Figueiredo, coronel de infantaria na reforma, recordou o bispo com quem manteve algum convívio, homenageando a sua relação próxima com o povo. “Muito atento às dificuldades do povo timorense, foi sempre um pilar na sua luta contra a ocupação indonésia e, mais tarde, uma voz sempre interventiva junto do poder politico timorense, exigindo a melhoria da qualidade de vida e a dignidade que lhe mereciam como cidadãos e fiéis”, escreveu Figueiredo numa publicação nas redes sociais. “Dotado de um excelente humor e profundo conhecedor do seu povo, que o admirava e respeitava, foi dele que recebi os melhores conselhos sobre a forma como entender a cultura timorense. Dizia-me que "em Timor o povo é bom mas o ar é diferente. Tem oxigénio, dióxido de carbono, pó, mosquitos e… muitos boatos". 

Além da afabilidade, o bispo era reconhecido pelos seus ditos espirituosos, e em 2001, nos primeiros esforços de reconstrução do país, lamentava perante uma delegação do Centro Nacional de Cultura a dificuldade que se sentia para pôr pedra sobre pedra: “Já lá vão dois anos e tudo caminha lentamente. Aqui o tempo é uma despesa, ao contrário da máxima inglesa que lhe chama dinheiro.” E se, anos mais tarde, o Papa Francisco desafiava os bispos e a igreja timorense para que continuassem a ser uma “consciência crítica da nação”, mantendo a independência do poder político, parecia assim dar o exemplo de D. Basílio, que nunca deixou de demonstrar o seu zelo na defesa dos interesses do povo, e que, depois da independência, manteve uma postura crítica, fosse para apontar o dedo à missão das Nações Unidas no país, ou aos próprios responsáveis políticos, nomeadamente para lembrar que, em certar regiões, a população sobrevivia de "alimentos alternativos", como raízes e troncos. "Quando se recorre a isto, é sinal que há de facto fome", disse o bispo aquando de uma visita privada a Lisboa, em 2005. Já antes, havia chamado a atenção para os problemas no ensino da língua portuguesa, notando que estava a ser ensinada "extra-oficialmente", quando "a grande maioria dos timorenses apoia a decisão do CNRT que a escolheu como língua oficial".

Mais tarde, num balanço da primeira década da independência, o prelado timorense não hesitou em traçar um quadro de decepção, afirmando que foram dez "anos de esperanças não respondidas e de sonhos e desejos também não realizados”. Dom Basílio, que o jornalista e escritor Pedro Rosa Mendes elogiava por ser um “analista fino da realidade timorense”, constatava então a erosão da liderança histórica, alertando para o isolamento dos pais da pátria. "Para esta população jovem, hoje em dia, a saga dos heróis faz parte do passado, faz parte já do antigo testamento. Estes jovens já não têm essa sensibilidade.” Aquele país de sincretismo católico e animista, como explicava o bispo, tinha encontrado um novo "deus": agora, a jovem nação idolatra o Mar de Timor. "Quem concentra neste momento as atenções e quem motiva as atenções do povo timorense é o dinheiro do petróleo. Só que, aí, toda a gente tenta ver como é que vai buscar o melhor quinhão em benefício próprio.”

Natural do Suai, Basílio do Nascimento tornou-se, em 2011, o primeiro presidente a Conferência Episcopal Timorense. Ordenado sacerdote em 1977, viveu em Paris até 1982, onde completou a sua formação académica, viajando nesse ano para Évora, onde foi pároco de Cano e Casa Branca (Sousel) e Santa Vitória do Ameixial (Estremoz). Em outubro de 1994 regressou à sua diocese original, Díli, e a 30 de novembro de 1996 foi nomeado pelo então papa Paulo VI como Administrador Apostólico de Baucau e Bispo de Septimunicia, passando a ser bispo titular da diocese, desde 6 de março de 2004. Em reconhecimento do papel preponderante no referendo sobre a independência de Timor-Leste, a 7 de dezembro de 1999 foi agraciado por Portugal com o grau de Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.

Entretanto, o Presidente da República de Timor-Leste, Francisco Guterres Lú Olo, anunciou que vai condecorar, a título póstumo, Basílio do Nascimento com a Ordem de Timor-Leste "pelo alto sentido humanista e pela dedicação e coragem".

"É fundamental que o Estado faça este público reconhecimento pelo alto sentido humanista e pela dedicação e coragem manifestadas pelo Bispo Basílio do Nascimento, em determinados momentos da nossa luta pela libertação da Pátria e também no sentido de concretizar os valores e os princípios cristãos em defesa da civilização, em prol da dignificação humana num país com a maior percentagem da população católica em todo o mundo, sempre com máxima tolerância em relação às pessoas de outras confissões religiosas", pode ler-se no decreto assinado por Francisco Guterres Lú Olo.

No texto recorda-se ainda que Basílio do Nascimento "trabalhou incansavelmente para a afirmação da identidade timorense através da elevação dos valores e princípios da vida católica em Timor-Leste, com especial ênfase na Diocese de Baucau" e a luta pela autodeterminação "através de reuniões secretas com dirigentes da Frente Armada", uma iniciativa classificada como um "acto corajoso" por parte do bispo.