Está criada a tempestade perfeita. Numa altura em que a indústria e as empresas ainda estão a recuperar dos impactos da pandemia veem-se agora a braços com outros obstáculos que vão desde à falta de matérias-primas até aos elevados preços da energia. A estes problemas juntam-se ainda as dificuldades no transporte marítimo, “onde a falta de contentores está a provocar enormes atrasos nas encomendas e a elevar sobremaneira os preços do transporte nos fluxos do comércio internacional”. O alerta é dado ao i pela Associação Empresarial de Portugal (AEP) que lembra também que a par “destes enormes constrangimentos, a indústria continua a manifestar problemas de falta de mão-de-obra, nomeadamente especializada”.
Uma opinião partilhada por Nuno Mello, analista da XTB . “A falta de contentores e as mercadorias retidas em portos por falta de ligações levam a atrasos de meses na receção das encomendas. Tudo isto porque a China e a Coreia retomaram a sua atividade antes da Europa em 2020, aquando da primeira vaga da pandemia, o que levou todos os contentores a serem deslocados para as rotas do Pacífico. A juntar a isto tudo está ainda a organização do trabalho no pós-pandemia”, refere ao nosso jornal.
E a fatura mais cedo ou mais tarde vai ser paga. “Os atrasos nas entregas penalizam a produção e terão um impacto negativo no PIB. As subidas dos preços dos metais industriais e dos produtos agrícolas, bem como o crescente aumento dos preços da energia, do petróleo e do gás natural impulsionam os custos de transporte e penalizam os custos das empresas. Estes custos afetam toda a economia e penalizam empresas e consumidores”, garante ao i, Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa.
Os exemplos destas falhas não param de aumentar: chips – que penaliza acima de tudo o setor automóvel e isso é visível pelas várias paralisações feitas pela Autoeuropa e atrasos na sua produção implicam menos receita no final do ano e menor contributo para o PIB nacional – ao aço, ferro, alumínio, níquel, cobre e estanho que atingem diretamente a indústria portuguesa da metalurgia e da metalomecânica, enquanto na indústria de mobiliário, o metal, as ferragens, a espuma e o cartão são as mercadorias que mais escasseiam e que portanto tiveram uma maior variação no preço homólogo. Já na indústria têxtil são vários os tipos de fios que escasseiam, como o algodão (ver páginas 12/13).
E se a matéria-prima falta ou é mais cara, o resultado está à vista: os preços disparam. “O preço final da construção de uma casa, por exemplo, é mais elevado nos últimos meses e está a ser penalizado desde o início do ano pela considerável subida dos preços dos metais industriais, desde o alumínio ao cobre, bem como o preço do vidro”, diz Paulo Rosa, acrescentando que “não é fácil substituir o vidro ou o alumínio por outros materiais, que provavelmente também subiram de preço ou são escassos”.
Este cenário, de acordo com o líder da AEP, Luís Miguel Ribeiro, não deixa margem para dúvidas: “Esta combinação explosiva do aumento dos custos das matérias-primas, dos custos energéticos e dos transportes só poderá ter uma consequência: elevar o preço final dos bens. Muitos produtores não terão margem para absorver tais impactos, pelo que serão obrigados a repercutir no preço final do produto – é uma inevitabilidade. Apesar da potencial perda de alguns clientes, a alternativa seria encaixar prejuízos que poria em causa a viabilidade da empresa”.
E os números falam por si. De acordo com as contas de Nuno Mello, as empresas portuguesas já enfrentam uma subida brutal de custos, que se reflete num aumento homólogo, em agosto, de 11% dos preços de produção industrial. “Numa tentativa de segurarem a carteira de clientes, muitas empresas estão abdicar das suas margens para compensar o aumento dos custos. Mas inevitavelmente o aumento do Índice de Preços nos Produtores irá refletir-se, mais cedo do que mais tarde, nos preços dos consumidores”, assegura.
Como resolver? Para o analista da XTB, a falta de matérias-primas e componentes põe em causa a capacidade de muitas empresas, de diversos setores. A incapacidade para responderem às encomendas poderá levar à necessidade de suspender a atividade por alguns períodos e até entrar em layoff. E, para contornar esta questão, defende que “seria necessário investir na Europa na produção de mais matérias-primas e de componentes intermédios, como os microprocessadores, o que não foi feito até ao momento. Um processo de reindustrialização poderia levar mais de uma década, pelo que a Europa continua à mercê dos países asiáticos”.
Uma opinião partilhada pela AEP ao garantir que a escassez “releva a necessidade de uma clara aposta numa estratégia de reindustrialização da Europa, isto é, com a valorização da indústria e com a garantia de reservas estratégicas para os setores industriais poderem funcionar”. Ainda assim, acredita que a União Europeia já percebeu que, do ponto de vista estratégico, precisa de ser mais independente de alguns mercados, nomeadamente do asiático. E como alternativa, dá como exemplo as compras conjuntas, beneficiando da experiência da aquisição de vacinas contra a covid-19. “As compras conjuntas poderão ser parte de uma resposta, a curto prazo, no caso do gás natural ou de outras matérias-primas”, refere ao i.
Crise sem fim à vista Se a crise acaba em breve ou não, “é difícil ou mesmo impossível prever”, explica Luís Miguel Ribeiro, lembrando que “a imprevisibilidade domina hoje o mundo dos negócios”. E, acrescenta: “Esta situação resulta de um ‘desnivelamento’ das duas forças de mercado a nível mundial, que atuam em sentido oposto e pressionam no sentido do aumento dos preços – quebra da oferta (produção e stocks), decorrente da crise pandémica, que demora a ser reposta, e recuperação mais acelerada da procura”.
Já Paulo Rosa aponta que “há expectativa de que a economia seja capaz de corrigir as atuais dificuldades nas cadeias de abastecimento no próximo ano”.
Quanto ao problema do transporte marítimo, a AEP admite que “este constrangimento nas cadeias logísticas requer uma atuação a nível mundial, que envolva os diferentes stakeholders, públicos e privados, em particular os grandes armadores globais, que são também os donos dos terminais de contentores, ‘controlando toda a fileira’”.
Por seu lado, Nuno Mello sugere duas alternativas mas também aponta dificuldades: “O transporte terrestre e aéreo”. Como? “O cruzamento de fronteiras terrestres está também bastante demorado devido às verificações alfandegárias e restrições mais apertadas de circulação, mas pode ser uma alternativa. Já o transporte aéreo poderá ser uma solução, mas isso terá impacto nas margens de lucro, não permitindo que todos os comerciantes suportem estes custos”, defende.
Culpa da China? Uma das justificações que é dada para esta escassez diz respeito ao facto de a China ter reforçado a compra deste tipo de materiais, nomeadamente no caso do alumínio, mas não só. Luís Miguel Ribeiro recorda que a China “é o maior consumidor mundial de muitos metais de base, incluindo o alumínio”. Por isso não há dúvidas que “certamente estará a ter um papel relevante nesse aumento, sobretudo se tivermos em conta que a China começou a recuperar mais cedo da crise pandémica”.
O economista do Banco Carregosa, Paulo Rosa, diz que a procura global é elevada e “os stocks de muitas matérias-primas foram sendo consumidos, penalizados pela paralisação ditada pela pandemia no ano passado”. Apesar de os países terem retomado a sua atividade gradualmente, a reposição de stocks ainda é uma necessidade. “Há um aumento considerável da procura de matérias-primas para reposição de stocks que pressiona a oferta ainda limitada e penalizada pelos atrasos nas entregas. Essa reposição pressiona e impulsiona os preços das matérias-primas”, defende.
Mais longe vai Nuno Mello ao afirmar que “o que aconteceu com o alumínio foi uma oportunidade de arbitragem aproveitada pela China, depois do surto de covid-19 ter tornado mais vantajoso comprar lá fora”. E lembra que as importações de matérias-primas na China, incluindo petróleo, soja e cobre, “atingiram recordes este ano”.
O que pode fazer o Governo? Para a AEP não há dúvidas que o Governo “poderá atuar naquilo que é da competência dos governos nacionais”. Ou seja, “a curto prazo, ao nível dos custos de energia, a AEP continua a defender a redução da tributação sobre os combustíveis, que pesa mais de metade no preço final”.
Mas a nível geral, Luís Miguel Ribeiro acredita que o Executivo deverá ajudar as empresas “noutros problemas também prementes, como a recapitalização e, sobretudo, não criar novos custos de contexto, nomeadamente a nível laboral, com a imposição de um quadro legal mais rígido e desadequado aos desafios de um mercado de trabalho dinâmico e em profunda transformação”. E defende ainda o “apoio a um amplo programa de valorização da indústria nacional”.
Já Nuno Mello acredita que “toda esta situação revela vulnerabilidades e dependências que devem ser combatidas através de uma reindustrialização do país, devendo para o efeito serem usados os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ao abrigo do programa Next Generation EU, criado pelo Conselho Europeu”.
Isso não resolve totalmente o problema das empresas e o analista da XTB acredita que “não será apenas função do Governo resolvê-lo”. Mas não tem dúvidas que “pelo menos exige-se sensibilidade para o problema por parte dos decisores políticos, e que as empresas não continuem a ser sobrecarregadas com mais impostos, mais burocracia e exigências legislativas”.