Ouve-se o toque de chamada do Skype. Em frente ao computador, Tereza aguarda ansiosamente o surgimento do homem com quem conversara no site Lidé.cz. Com o cabelo ruivo e os olhos esbugalhados, cruza-se de imediato com um homem que se masturba.
“É mesmo nojento”, diz, e quem se encontra à sua volta aponta a existência de uma “sexualidade desprovida de sentimento”. Após o primeiro choque, contacta um homem de 45 anos que lhe pergunta se já está de pijama e se quer ver o pénis dele. A rapariga nem sequer tem tempo de responder, pois, no espaço de segundos, o homem já se despiu, disse que ela o excitava e pediu que, “pelo menos”, mostrasse os seios.
“És um jovem botão rosa”, afirmou, pensando que cativava a atenção de uma pré-adolescente de 12 anos. Embora com uma aparência jovial, Tereza Tezká tinha, à época, 23 anos e foi uma das três atrizes escolhidas para interpretar o papel de uma menina inocente que se perde nos meandros do lado obscuro da Internet.
“Alguém me ligou e perguntou se poderíamos encontrar-nos por causa de um documentário e que não me podia dizer o assunto por chamada. Fiquei muito curiosa. Quando cheguei ao estúdio, estavam lá apenas o Vít [Klusák], a Bára [Barbora Chalupová] e o produtor Pavla [Klimešová]. Falaram-me acerca do projeto e eu soube imediatamente que queria fazer parte dele. Depois, decidiram fazer um casting e juntei-me a outras raparigas. Fomos vestidas como se tivéssemos 12-13 anos. Esperava que me escolhessem. E fizeram-no”, conta a atriz, em declarações ao i, acerca do documentário que pode ser resumido na frase “três quartos de criança, 10 dias e 2.458 predadores sexuais”.
Entre as 23 raparigas que aceitaram o desafio de recuar no tempo e vestirem-se como crianças, 19 disseram ter sofrido algum tipo de abuso online quando eram mais novas. “Como já conhecia o assunto desde a primeira conversa, tive tempo para pensar mais. Memórias ocultas e há muito esquecidas sobre a minha experiência do passado emergiram e contei-as. Foi estranho falar disto de repente tão abertamente”.
Mesmo reconhecendo que viveu momentos assustadores, Tereza confessa que o facto de ter integrado o processo de decoração do quarto fictício levou a que se sentisse minimamente confortável. “Isso realmente ajudou a que me sentisse novamente com 12 anos. Levei as minhas partituras e o meu teclado, estava lá a tocar e parecia ter voltado atrás no tempo”, explica a jovem que interpretou o papel de Mishka.
“Desde o início ficou acertado que havia um código de conduta e não poderíamos violá-lo. Mas durante todo o processo conversámos com uma sexóloga e uma psicóloga que estavam connosco e elas disseram-nos que parecíamos mais crianças de nove anos do que de 12. Ajudaram-nos a ajustar o comportamento a essa idade”. As meninas desta faixa etária, esclareceram, “são um pouco mais curiosas e estão dispostas a ir um pouco mais longe”.
Este código de conduta seguido por Tereza, Sabina Dlouhá (Niki) e Anezka Pithartová (Týnka) baseava-se nas seguintes regras: não abordar ninguém, apenas responder; dizer sempre a idade no início da conversa; não namoriscar, seduzir ou provocar; responder com ingenuidade a ordens sexuais; só responder a pedidos de envio de imagens de cariz erótico (nudes) se fossem pedidas insistentemente e deixar que a proposta dos encontros presenciais fosse sempre realizada pelos predadores.
“Um novo nível de repulsa” Após Tereza ter visto um homem masturbar-se, nos primeiros minutos do filme, Anezka protagonizou um dos momentos mais arrepiantes: bastou que dissesse que frequentava o 7.º ano de escolaridade para um jovem predador começar a masturbar-se.
Quando ela lhe perguntou por que motivo estava com as mãos debaixo da mesa, o rapaz não lhe deu uma resposta concreta, perguntando apenas se aquela que achava ser uma criança se importava com aquela ação. À medida que a conversa se desenrolou, admitiu que criava maioritariamente laços virtualmente e que nunca havia tido relações sexuais.
A determinado ponto, Tereza conversava com um homem que teria 30 anos e a maquilhadora Barbora Potuníková, aterrorizada, garantiu que o conhecia. Vít questionou-a acerca do grau de certeza que tinha quanto à afirmação e a rapariga confirmou a ideia inicial.
“Foi um choque para toda a equipa. Tinham passado alguns dias desde o início das filmagens e estávamos todos bastante enojados com a forma como os predadores se estavam a comportar. Mas de repente, quando soubemos que trabalhava com crianças e contactou-me, assim como à Sabina e à Anezka… Foi um novo nível de repulsa”.
Este pediu a Tereza que andasse à volta do quarto, mas acabou por ouvi-la tocar uma composição de Johann Sebastian Bach. “Queria dizer-lhe que não sou burra e sei porque queria que andasse pelo quarto e que não o faria. Mas eu estava a interpretar um papel, sabia que uma criança é muito mais submissa e tinha de seguir as instruções”. Tereza poderia ser Mishka, até porque a personagem que encarnou representa os milhares de crianças que caem na armadilha montada online pelos pedófilos e, muitas das vezes, transposta para a vida real.
Foi esta a razão pela qual, no outono de 2017, a operadora de telecomunicações O2 pediu ao realizador Vít Klusák que criasse um vídeo que se tornasse viral, com o propósito de chamar a atenção para o enorme crescimento do número de crianças vítimas de abuso online na República Checa. Klusák juntou-se a Chalupová e criaram o falso perfil de Týnka, uma rapariga de 12 anos, para ver aquilo que acontecia. Num período inferior a cinco horas, 83 homens com idades compreendidas entre os 23 e os 63 anos estabeleceram contacto com a suposta menina. Muitos sugeriram a masturbação mútua por videochamada.
E, como não atingiam essa meta, enviavam fotografias dos pénis eretos, links para diferentes tipos de pornografia, incluindo com animais, e mensagens de teor totalmente sexual sem sequer demonstrarem preocupação com a pessoa com quem interagiam. Nesse mesmo dia, quatro homens masturbaram-se em frente à webcam sem nunca terem visto Týnka – somente nas fotografias que os realizadores partilharam – e, assim, depressa se percebeu que o vídeo seria um documentário, na medida em que se acumulava cada vez mais informação que tinha de ser dada a conhecer ao público.
E o panorama português não é mais positivo, muito pelo contrário: a título de exemplo, no passado dia 21 de outubro, a agência Lusa adiantou que o aumento da pornografia de menores fez com que o número de inquéritos sobre crimes sexuais crescesse 25% nos últimos dois anos.
Estes são dados do Observatório da Criminalidade Sexual da Polícia Judiciária (PJ), cujo estudo nos mostra que entre 2019 e 2020 se registou um aumento dos inquéritos na área dos crimes sexuais em 25%, o que representa mais 882, passando de 3591 para 4473.
Há apenas um mês, a PJ divulgou a detenção de 15 homens, com idades entre os 23 e os 60 anos, durante uma operação de combate à pornografia de menores na Internet. Foram realizadas buscas em território continental, bem como nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, e por terem sido apreendidos computadores, dispositivos de armazenamento de ficheiros, smartphones e milhares de ficheiros que contêm pornografia, esta força de segurança alertou que os suspeitos destes crimes podem “atuar e interagir diretamente com os menores, por exemplo, em contexto de jogos online”, além de colecionarem, promoverem, partilharem e até produzirem conteúdos de pornografia de menores, “que posteriormente alimentam as redes organizadas” e o abuso sexual, como foi salientado em comunicado enviado aos órgãos de informação e salientado pela Lusa.
“É chocante que alguém envie algo assim a uma criança” No decorrer das conversas, um homem disse a Tereza que ela deveria mostrar-lhe os seios ou o sémen voltaria ao corpo e ele teria de ir ao hospital, lembrando que as fotos dela seriam publicadas online porque ela gosta de “magoar as pessoas”.
Como ela não acedeu ao pedido, apareceu nua na Internet. Mas aquilo que o predador não sabia é que, além de Tereza não ter 12 anos, aquelas fotografias não eram suas. “Cada uma de nós tinha cerca de quatro fotomontagens que foram feitas juntando a nossa cara ao corpo de modelos, então não sinto que fossem fotos minhas. Se alguém as tivesse atualmente, seria uma prova de que esteve em contacto connosco e isso é algo que essa pessoa não vai querer porque o filme foi muito popular aqui”.
“Fizemos muitas pesquisas antes de começarmos a rodar o filme. Tínhamos vários perfis e conversámos com muitos predadores, então estávamos preparados para isso. Mas assim que chegámos ao estúdio, começámos a filmar e vimos as raparigas vestidas como crianças de 12 anos a conversar com predadores que estavam a masturbar-se, de repente percebi que nunca nos podemos preparar para isto”, clarifica Vít Klusák, em conversa com o i, recordando excertos do documentário como aquele em que um homem perguntou a Sabina se queria ganhar dinheiro a mostrar o corpo e fez exatamente a mesma proposta a Tereza, que ficou preocupada com as transações em que as crianças se envolvem. “No começo fiquei chocada por ver que alguém queria ir tão longe. Mais tarde, percebi que, se essas pessoas estão a oferece-nos dinheiro para nos despirmos ou masturbarmos, significa que às vezes as meninas dizem sim e, por isso, eles continuam a tentar. E isso realmente deixou-me muito triste”.
Por outro lado, o realizador aponta o predador que contou a Anezka que teve uma namorada de 13 anos e que ela fugiu de casa dos pais para ir viver com ele. Contudo, a menina perdeu muito peso e descobriram que tinha cancro, tendo morrido um ano depois. Mas não parecia afetado, até porque perante a expressão facial de Anezka, que provava a tristeza que sentira, sugeriu que não falassem do passado e se focassem no futuro.
A certa altura, o advogado que trabalhava com a equipa explicitou que estes homens estavam a cometer “crimes muito graves” – como violação e chantagem – e teriam de ser detidos, realçando que estava a presenciar “a imundície mais baixa que já viu” e transmitindo que não entendia como é que as plataformas permitiam a permanência de utilizadores como estes.
“A questão é muito complexa – o problema é que o assunto era um tabu e a prevenção era bastante reduzida por isso. Além disso, as regras das plataformas nem sempre são seguidas, mas acreditamos que o nosso filme ajudou a abrir um amplo debate social sobre o assunto e, deste modo, os abuso sexual de crianças online diminuirá no futuro”, refere Klusák, que ficou profundamente consternado quando uma das atrizes recebeu um link que a direcionou para um vídeo de uma criança a usar um vibrador.
Tereza partilhou da mesma incredulidade e angústia. “Esse foi um dos piores momentos das filmagens. Já passou um bom tempo desde aquele dia e ainda me lembro muito bem. Toda a equipa ficou absolutamente enojada. É chocante que alguém envie algo assim a uma criança”, declara, recuando até ao dia em que um homem que supostamente teria 50 anos e dois netos lhe perguntou se não tinha “um príncipe encantado” com o qual se pudesse “aconchegar”, masturbando-se e rematando que estava ‘a polir uma coisa’. Aqui, polir algo é uma referência à masturbação. O homem só esperou que a criança não entendesse. Foi difícil não rir. Mas havia momentos em que ríamos de alguma coisa porque essa era uma maneira de lidarmos com a situação”.
Entre quase 3.000 homens, apenas Lukáš, um estudante de enfermagem de 20 anos, agiu decentemente e deu conselhos a Anezka. Todos ficaram emocionados quando a videochamada terminou. Será que a equipa esperava que apenas uma pessoa fosse verdadeiramente humana nesta experiência? “Lukáš era realmente o único rapaz decente que não fazia nada sexual. A Anezka esteve em contacto com ele por mais 3 semanas e ele realmente não queria nada, exceto uma simples conversa. Na verdade, ele esteve na sala de edição connosco e deu-nos permissão para que mostrássemos a cara dele. Foi o único que não tinha segundas intenções e não abusou da menina com quem conversou”, frisa Klusák.
“O medo nos olhos” Na reta final do documentário, temos a possibilidade de entender como se processaram os encontros presenciais entre as atrizes e os predadores. Exemplificando, um homem disse a Tereza que ela tinha de decidir o que queria, isto é, se queria ficar com ele ou não. E um jovem disse a Anezka que o mundo hoje está doente como se ele não fosse uma das pessoas que contribuíram para isso.
“É claro que estava muito stressada e fiquei com medo de que alguém visse as câmaras ou alguém da equipa. Mas estávamos muito bem preparados e tínhamos seguranças por perto. Os pedófilos geralmente eram muito mais tímidos do que quando conversávamos online”.
Estes predadores, que transitaram do mundo virtual para o real, perguntaram a Tereza e Anezka se sabiam o que era um clitóris e mostraram imagens do mesmo. “Isso também nos surpreendeu. O café estava bastante cheio, mas a nossa mesa estava na lateral, então eles não estavam muito próximos de ninguém”.
Seguindo a mesma linha de pensamento, um predador perguntou a Tereza se queria espalhar óleo pelo corpo dele, outro a Anezka se já teve um orgasmo e um, juntamente com a companheira, propôs a Sabina que participasse num mènage à trois. Apesar de ninguém ter desconfiado da filmagem do documentário, um rapaz pediu a Anezka que apagasse as mensagens que trocaram.
E Tereza atingiu o ponto de rutura quando se encontrou com o rapaz que partilhara as suas fotomontagens online. “Este predador era um dos piores e queríamos acabar com ele. Eu tinha um auscultador e a Bára e o Vít disseram que podia dizer-lhe aquilo que quisesse e fazer aquilo que me apetecesse também. Por isso, a limonada entrou em jogo e apenas me recordaram de que tirasse a colher para não arrancar o olho dele. Fiz isto para descarregar a frustração acumulada durante três meses de abuso”.
Curiosamente, quando Vít telefonava às atrizes, fingindo ser o pai e que as iria buscar ao café, os predadores começavam a inventar desculpas para saírem daquele local e fugirem. “Dava para ver o medo nos seus olhos. Na verdade, em toda a linguagem corporal. A partir disso, entendemos que eles sabem muito bem que estão a fazer algo que não deviam”, constata Tereza.
Porém, ainda não tinham estado cara a cara com o homem que trabalhava com crianças. Deslocaram-se até casa dele. O homem apressou-se a deixar claro que não tinha cometido qualquer crime e que, se as crianças são abusadas sexualmente, a culpa é dos pais. “Ficámos surpreendidos por ele ser tão arrogante e dizer todas estas coisas. Ele estava tão confiante de que não fez nada de errado… Sabíamos que estávamos a entregar todo o material à polícia e que fariam aquilo que fosse mais adequado. Somos cineastas. Queremos apenas mostrar toda a questão e abrir o amplo debate social, sendo que o nosso objetivo não era colocar a culpa em vários indivíduos”.
Todos os conteúdos obtidos durante as conversas com os predadores estão na posse das autoridades checas e, até agora, foram iniciados 52 processos no âmbito das descobertas realizadas durante as filmagens. “Em muitos casos, os predadores estavam em contacto com crianças reais. Alguns deles tinham pornografia infantil nos seus computadores.
Por exemplo, outro estava em liberdade condicional, por causa do nosso filme, e tentou entrar em contacto e conhecer mais uma menina de 12 anos”, finaliza o realizador. A experiência levou Tereza a refletir sobre o assunto: “Eu tinha 23 anos quando o documentário foi filmado e não foi fácil para mim. Mas eu não posso imaginar como isso deve afetar uma menina de 12 anos que realmente não está pronta para ver determinadas coisas e ser abusada desta forma. Temos de conversar sobre isto”.
28 de outubro a 3 de Novembro
Cinema City Alvalade 19h
UCI El Corte Inglés 19h25
UCI Arrábida Shopping 18h55
Debates
28 de outubro / Cinema City Alvalade 19h00
debate com Dra. Rosário Farmhouse
Comissão nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens
2 novembro / Cinema City Alvalade 19h00
debate com Dra. Dulce Rocha do Instituto de Apoio à Criança
3 novembro / Cinema City Alvalade 19h00
Carla Ferreira
Responsável pelo Departamento de Assédio Sexual Infantil da Rede CARE