O que foi Stuart? (3)

O que foi Stuart? (3)


Stuart adorava as mulheres, e demonstrava-o gulosamente. Uma vendedora de fruta aparece-nos cheia de sensualidade e raça.


A bonomia de Stuart estava afeita aos quadradinhos, pelo que não é de estranhar que também por aí caminhasse abrindo caminho – João Paulo Cotrim observou ter sido ele o primeiro bandadesenhista europeu a recorrer à filactera, o balão que identifica a fala das personagens. Tiras humorísticas e uma série pioneira Quim e Manecas (1915-1953), quase 40 anos de tropelias atrás de diabruras, cuja influência José-Augusto França filiou em Max und Moritz (1865), de Wilhelm Bush, o que nos parece questionável. A haver uma, ela radicará num brilhante sucedâneo da série alemã, os terríveis Hans e Fritz, vulgo Os Sobrinhos do Capitão (1897), de Rudolph Dirks.

Mas como vimos, Stuart faz-se de muito mais do que apenas BD. Grandes escritores debruçaram-se sobre o seu trabalho, no que, para além do talento único, constitui mais um seguro de vida póstuma. A propósito de Lisboa, que aqui merece um capítulo, escreveu Manuel Mendes: “Encarnou a alma da terra que escolheu para viver […] e acabou por melhor a sentir e expressar do que os próprios naturais. Viu tudo, amou e sentiu tudo […], entrou-lhe na alma e lá se instalou como na própria casa.”

Stuart adorava as mulheres, e demonstrava-o gulosamente. Se vemos mundanas, viciadas, prostitutas, também aí estão, sobretudo, as mulheres do povo, dignas, altivas, elegantíssimas. Uma vendedora de fruta aparece-nos cheia de sensualidade e raça, nunca postiça, mas bem real. Stuart conhecia por dentro aquilo de que tratava. E isso estende-se à crítica impiedosa da sociedade doente. Fiquemos com as palavras de Aquilino Ribeiro: “Stuart era um rebelde; mais do que isso, por baixo do seu desmancho de boémio havia um revolucionário, muito senhor de si […]”. A sua ferocidade enquanto cartoonista social é diretamente proporcional à selvajaria da classe dominante.

Ferreira de Castro, por ele três vezes retratado, e cujos romances iriam advogar a revolução social e libertária, irmanava-se com Stuart na repugnância não só da miséria ou dos mecanismos que a perpetuavam, mas também da indiferença com que era aceite e vivida. E por isso escreverá, em 1926: “Mais do que um ilustrador, Stuart Carvalhais é um água-fortista. Na arte portuguesa, ele está, como desenhador, ao lado de Raul Brandão, como literato. E até como este, Stuart repete-se […] como se entendesse que a carranca da vida, enrugada, desgrenhada, há-se sempre refletir-se num mesmo e imutável espelho.” Veja-se o retrato sombrio de Camilo Castelo Branco, como se possuído por um demónio interior que cedo ou tarde lhe cobrará a dívida do génio; ou o de um mefistofélico Ferreira de Castro (ambos de 1928), num quase sorriso de esgar, como se dali viesse uma ameaça de não deixar pedra sobre pedra, num mundo a derrubar para voltar a construir. Mas ao lado, contudo, uma jazz-band embevecida, olhando para uma Amália ridente… Stuart não é (só) para meninos.

Stuart – A Rua e o Riso

Autor João Paulo Cotrim

Editora Assírio & Alvim e El Corte Inglés, Lisboa, 2006

 

BDTECA

Abecedário. K, de Krazy Kat (George Herriman, 1910). Uma gata apaixonada por um rato chamado Ignatz, que corresponde lançando-lhe um tijolo à cabeça, sempre que Ofissa Pupp, um cão-polícia, que ama a felina, não consegue evitá-lo, metendo o rato na cadeia. Durante mais de 40 anos foi assim. Ninguém substituiu Herriman depois da sua morte; parece que não havia ninguém à sua altura. Walt Disney terá dito que sem Krazy Kat não teria havido Michey. Foi com ela e Ignatz que o antropomorfismo entrou nos quadradinhos.

O Combate Quotidiano, vol. 1, de Manu Larcenet. “Um relato, com toques de autobiografia, de um fotógrafo, já não tão jovem quanto isso, que decide trocar a cidade pelo campo, enquanto tenta encaixar as peças da sua vida: o trabalho, as angústias, a mulher, o passado…” (Arte de Autor)

Fatty, le Premier Roi de Hollywood, de Julien Frey e Nadar. Roscoe Fatty Arbuckle foi o primeiro grande comediante da Meca do Cinema, e protagonista do primeiro escândalo que aí ocorreu. A morte da acriz Virginia Rappe com uma peritonite, após um encontro com Fatty Arbuckle, lançou sobre este a suspeita de agressão sexual, levando-o a tribunal, onde foi absolvido. Porém, o seu nome foi proscrito durante longos 12 anos. Em 29 de Junho de 1933 assina um contrato com a Warner, estava por fim reabilitado. Morreria nessa mesma noite, de um fulminante ataque cardíaco. (Futuropolis)