Jean-Luc Nancy (1940-2021). O último dos incorruptíveis

Jean-Luc Nancy (1940-2021). O último dos incorruptíveis


Com a morte de Jean-Luc Nancy não desaparece apenas o filósofo eminente, autor de mais de uma centena de livros. Desaparece também uma certa atmosfera e um modo de pensar.


Morreu na noite de segunda-feira, com 81 anos, o filósofo francês Jean-Luc Nancy. Professor na Universidade de Estrasburgo de 1968 a 2002, autor de mais de uma centena de livros, entre ensaios e entrevistas, e um dos mais importantes filósofos dos últimos decénios, Jean-Luc Nancy começa a editar na década de 70 do século passado e a construir uma obra extensa. Títulos como Le titre de la lettre: Une lecture de Lacan, L’absolu littéraire: théorie de la littérature du romantisme allemand, escritos em conjunto com um outro filósofo também já desaparecido, Philippe Lacoue-Labarthe, ou La Communauté désoeuvrée, importante reflexão sobre o conceito de comunidade em diálogo com Maurice Blanchot e George Bataille, contribuíram para conferir, a Jean-Luc Nancy, o estatuto que hoje tem e são hoje indispensáveis para quem queira compreender Lacan, o romantismo alemão ou o obscuro conceito de “comunidade” – e essa pequena palavra, sem equivalente em português, “désoeuvrement”, em explícito diálogo com Bataille.

No entanto, com a morte de Jean-Luc Nancy não desaparece apenas o filósofo eminente, cujas obras continuarão, sem dúvida, a ser lidas e estudadas. Desaparece também uma outra coisa, uma certa atmosfera, uma tonalidade, um ethos que percorreu um conjunto de pensadores ao longo do século passado, um modo de pensar, ou melhor, de prática do pensamento – mas também da escrita, no que ambos têm de profundo entrelaçamento, de indiscernibilidade. De facto, Jean-Luc Nancy fazia parte de uma “geração”, no que esta palavra tem de equívoco e de ambíguo, que marcou profundamente o panorama do pensamento contemporâneo. Mais do que uma certa contemporaneidade ou a existência de qualquer traço em comum, o que une Jean-Luc Nancy a nomes tão diferentes como Deleuze, Derrida, Foucault, Lyotard ou Blanchot é uma certa radicalidade sem qualquer tipo de concessões ao nível do pensamento e da escrita – o que não exclui, bem pelo contrário, as guerras, as diferenças, os afastamentos ou mesmo os ódios. São os incorruptíveis, como lhes chamou, a dada altura, Hélène Cixous – e onde podemos integrar Jean-Luc Nancy nesse conjunto heterogéneo de pensadores -, com o seu gosto pelo paradoxo, pela aporia, por uma reinvenção perpétua dos problemas e da própria linguagem, acusados tantas vezes de obscuridade quando não de obscurantismo. Pensadores privados, mesmo quando bastante conhecidos, e não professores públicos. Na última entrevista que dá, já bastante doente (e que título notável: “Aprender finalmente a viver”, com tradução portuguesa de Fernanda Bernardo), Jacques Derrida falava de um “ethos da escrita e do pensamento”, “intransigente” e “incorruptível”, que nunca se deixou amedrontar por todas as imposições que a opinião pública, os media, ou a sinistra figura do leitor tendem a impor – e essas imposições diziam respeito sempre a uma certa legibilidade, a uma forma de escrever, a uma razoabilidade que este conjunto de pensadores achou sempre por bem transgredir de diversas formas. Com o desaparecimento de Jean-Luc Nancy é esta forma de pensar e de escrever sem concessões, este posicionamento público que lembrava que a escrita e o pensamento são sempre e necessariamente plurais, que, em certa medida, desaparece – o último dos incorruptíveis, anos depois do desaparecimento de Derrida, Blanchot ou Lacoue-Labarthe. O que encontramos em diversos momentos da sua obra – mas também de todos os filósofos com os quais partilhou um certo gosto pelo impossível – é esse escândalo da razão que contraria todas as imposições que se tentam colocar ao pensamento. Este não funciona, não existe, para justificar o senso-comum – o que não quer dizer que defenda qualquer forma de irracionalismo ou que dispense a argumentação -, nem vem acompanhado daquelas boas intenções moralistas que uma certa retórica humanista continua a fazer funcionar no espaço público, como se o pensamento estivesse subordinado a uma universalidade vazia – virado para o “todos sabem”, para a constituição de uma comunidade a partir do conhecimento ou do saber, como se o filósofo fosse um sábio que fosse necessário auscultar. Pelo contrário, o pensamento, para Jean-Luc Nancy será sempre essa “impropriedade do próprio”, como diz em O Peso de um Pensamento (traduzido em português por Fernanda Bernardo, a quem devemos muito, tanto a nível das traduções como da disseminação do pensamento de Nancy e não só), o momento da errância, da ausência de qualquer essência – reivindicando, para o pensamento, um estatuto perigoso, e arrancando o filósofo ao concerto dos sábios onde o tentam tantas vezes encerrar. O pensamento é a diferença, uma singularidade sem subjectividade aberta ao outro.

Nascido em 1940, em Bordéus, aluno de Paul Ricoeur, amigo de Jacques Derrida e de Philippe Lacoue-Labarthe (o primeiro dedica-lhe um livro, Le Toucher, Jean-Luc Nancy), há, ao longo de toda a sua obra, essa entrega sem reservas ao pensamento, uma interrogação inclemente, sem concessões, que percorre a psicanálise, a sexualidade, a ética, a política, a literatura e a estética, todos esses campos que interrogou ao longo de mais de uma centena de textos. Pela proximidade de pensamento que tem com Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy ficou conhecido como um dos nomes maiores de uma conhecida “corrente” filosófica, a assim chamada “desconstrução”. Mais do que um conjunto determinado ou determinável de teses filosóficas, a desconstrução – um dos projectos que mais envolveu Jean-Luc Nancy foi, na década de 90, um conjunto de livros sob o título geral de “desconstrução do cristianismo” – configura, se assim se pode dizer, uma “cena da tradução” – a tradução incessante, singular, do outro, com tudo o que isso implica de perda, sem dúvida, mas também de incalculável. Porque sempre foi singular plural, para evocar o título de um texto de Jean-Luc Nancy (‘Être singulier pluriel’), a desconstrução foi sempre um fenómeno de fronteiras, o “rigor da errância” como refere em O Peso de um Pensamento.

Foi, sem dúvida, um pensador da comunidade, da possibilidade do em-comum, mas foi também um grande pensador do corpo, da sexualidade e da finitude – em Portugal encontramos um pequeno texto, traduzido por Pedro Eiras, O «Há» da relação sexual, onde dialoga com um dito de Lacan, e um outro opúsculo, traduzido por Tomás Maia, intitulado Corpus. É neste último que podemos ler, pouco depois de nos dizer que os corpos, num tempo como o nosso, se encontram cada vez mais escondidos nos hospitais, nos cemitérios e nas fábricas:

“A pintura é a arte dos corpos, porque ela conhece apenas a pele – porque é pele de parte a parte. E um outro nome para cor local é carnação. A carnação é o grande desafio lançado por esses milhões de corpos de pintura: não a encarnação, onde o corpo é insuflado de Espírito, mas a simples carnação, como o batimento, a cor, a frequência e cambiante de um lugar, de um acontecimento de existência. Diderot irá assim invejar o pintor capaz de abordar, pelas cores, aquilo que ele, como escritor, não podia abordar: o prazer de uma mulher”.

Nesta passagem encontramos todo um programa – que será, em parte, o programa de Jean-Luc Nancy. Tal como Merleau-Ponty, outro filósofo francês que escreveu extensamente sobre o corpo, também Jean-Luc Nancy tenta algo bastante difícil: pensar o corpo fora das condicionantes da publicidade e da teologia – que precisa sempre de ver o corpo “insuflado de Espírito”.

É nesta medida que Jean-Luc Nancy é, igualmente, um pensador da finitude (Une Pensée Finie é um outro conjunto de ensaios dedicados ao tema) e, por consequência, dos fins. Porque só há corpo finito, localizado e localizável – o que quer dizer, também, disponível para uma contabilidade -, a finitude terá de ser pensada, de acordo com o filósofo francês, de forma independente a qualquer infinito.

“Mas a finitude no seu conceito moderno – no seu conceito nosso, a tornar nosso, a apropriarmos, e portanto ainda por vir – forma pelo contrário a absolutidade do finito. Este não constitui mais a negação do infinito, e que o infinito deve negar. Forma antes este modo de finição (do acabamento, do sentido) que não finda, que não acaba, que não totaliza e que, neste sentido preciso, não «infinitiza»”.

A linguagem, difícil, paradoxal, aporética, é, como facilmente se percebe, pouco conforme ao corpo transparente da língua que tantos querem impor. Mas o que significa é, talvez, mais simples, se é que, de facto, é possível reduzir: é preciso afirmar o corpo, isto é, os corpos, vê-los em toda a sua diferença, pensá-los fora de qualquer totalidade, desligar o corpo de qualquer noção de infinito. Reclamar, por fim, um ateísmo próprio ao pensamento.