Miguel Miranda. “Não estamos preparados para evacuar uma cidade. Se calhar vamos ter de estar”

Miguel Miranda. “Não estamos preparados para evacuar uma cidade. Se calhar vamos ter de estar”


Presidente do IPMA defende que é preciso repensar a estratégia de adaptação às alterações climáticas.


Um verão até aqui mais calmo por cá, cenários extremos de recordes de temperatura e inundações trágicas em vários pontos do hemisfério Norte. Como pano de fundo, um alerta que fez no final de julho: Portugal tem de se preparar para cenários que podem ser francamente maus.

Miguel Miranda recebe-nos no Instituto Português do Mar e da Atmosfera, que dirige desde 2013, num dia de agosto de céu já limpo da parte da tarde depois de mais uma manhã encoberta. Já o vento parece estar para ficar. Podem não ser os dias bons de verão, mas não são os dias maus que têm chocado noutros países e a que nenhum país está imune, alerta.

O geofísico fala-nos sobre o clima em mudança e como a sociedade, a solidariedade (interna e externa) e a Proteção Civil terão de mudar também.

O que se passa com este mês de agosto? Começou mais fresco do que habitual, continua vento, as pessoas queixam-se da água fria.
O vento e a água fria são parte do mesmo fenómeno do ponto de vista físico. Temos tido um regime de vento mais intenso do que é habitual, que já se tem verificado nos últimos anos. A nortada é superior e isso tem um bocadinho a ver com o contraste da temperatura entre a terra e o mar. Quando temos nortada intensa, a água do fundo vem à superfície. Quem vive da pesca fica satisfeito, quem está mais interessado em desfrutar dá com temperaturas 15,5ºC, 16ºC na costa oeste, que são águas frias.

O que seria normal?
18ºC. Aqui um dia excelente são 19ºC de temperatura na água. No Algarve 24ºC. 

E vai melhorar?
Nos dias em que o vento abranda, pode melhorar. O Algarve, apesar de tudo, tem tido umas temperaturas simpáticas. Este regime parece que se vai manter ao longo de agosto. Há dois meses a previsão apontava para o contrário, para um agosto quente. O sudeste da Europa de facto está a ter um agosto muito quente mas nós não.

Há alguma explicação?
Temos tido uma sequência de situações excessivas face ao que estava previsto. A situação mais extrema foi a que se viveu no Canadá, com recordes de temperatura nove graus superiores aos anteriores. A situação das cheias no Norte da Europa foi preocupante, porque foram dias de chuva de intensa, em países que têm uma grande tradição de planeamento urbano e ficaram com tudo destruído.

Agora esta situação na Turquia e na Grécia, com temperaturas a rondar os 40 e muitos graus. Quando os meteorologistas falam de temperatura, é medida 10 metros acima do solo. Em estradas alcatroadas, com grande capacidade de aquecimento, podemos ter temperaturas quase nos 50 graus, o que não é uma situação gerível se for muito prolongada no tempo.

Foi o que se viu no Canadá, com muitas mortes associadas ao calor extremo.
Sim, não é possível. E há outros efeitos em que por vezes não se pensa. Ao fim de um período longo de temperaturas elevadas, como se está a ver agora na Turquia, os consumos de energia começam a disparar e as redes não estão preparadas para isso.

Como se viu com a covid-19, em que os sistemas de oxigénio nos hospitais não estavam preparados.
Sim, as coisas estão dimensionadas para uma determinada realidade e não aguentam. E isto tem de nos dizer alguma coisa, porque são fenómenos extremos em vários pontos da Terra.

Voltando às explicações, parece-lhe que será um verão de mudança na perceção sobre os impactos de alterações climáticas?
Do lado da comunidade científica da meteorologia e do clima sempre houve um grande comedimento em relação às previsões. Todas as previsões que disponibilizamos não são propriamente alarmistas, são sensatas. O IPCC, o organismo que as Nações Unidas puseram de pé para acompanhar a mudança do clima, tem sempre posições bastantes conservadoras do que pode acontecer.

Já veio agora a público uma suposta fuga do relatório que será divulgado este ano em que dizem que a vida no planeta vai mudar bastante ao longo das próximas décadas.
Parece óbvio neste momento que podemos ter situações ingeríveis, mesmo que seja em períodos limitados de tempo e regiões limitadas. Se tivermos situações com 50 graus de temperatura vários dias seguidos, seja qual for a região, isso não é compatível com a vida que conhecemos. Isto não tem a ver com alarmismo, o alarmismo não leva a lado nenhum, apenas a atitudes irracionais. Mas a atitude racional é prepararmo-nos para cenários que podem ser extremos. Isso tem de entrar na nossa linguagem.

Foi por isso que alertou para cenários que podem ser francamente maus? É uma linguagem, lá está, fora do comum.
Não é nossa tradição, como disse, a tradição é sermos conservadores. Além disso sabemos que muitas medidas que é preciso tomar têm custos económicos significativos e têm custos sociais, mas o que estes acontecimentos nos estão a mostrar de forma clara é que existe uma capacidade limitada do sistema natural para resistir a estas situações. Podemos ter disrupções significativas, por exemplo o interrompimento de culturas agrícolas. Claro que hoje temos uma grande capacidade tecnológica, mas ainda estamos muito dependentes das condições de pressão, temperatura e humidade à superfície da Terra, mas muito.

Continuamos nesse aspeto muito rudimentares.
Sim, completamente. Não estamos preparados para viver na Terra como se imagina que se irá viver em Marte, numa biosfera controlada, numa cápsula. E essa é a questão: podemos estar em situações em que temos de ser capazes aqui de resistir a situações extremas, mesmo que por períodos curtos e em áreas limitadas, mas isso exige uma capacidade de gestão de meios, de recursos e das populações que nunca vimos.

O que é característico da situação que se viveu no Canadá e das cheias no sul da Alemanha e na Bélgica foi que ambas foram completamente previstas. Não foi uma situação em que diz “bem aconteceu e não se estava à espera”. Aconteceu e estava-se à espera.

Mas foi previsto como cenário ou com antecedência?
Foi previsto com antecedência de dias. A questão é que não estamos preparados para evacuar uma cidade.

E devemos estar?
Se calhar vamos ter de estar. Normalmente os sistemas de Proteção Civil fazem exercícios em que simulam o que pode ser um grande acontecimento, um sismo por exemplo, em que há destruição, é preciso transportar as pessoas para os hospitais. Fazem a simulação para ganhar músculo para uma operação deste género. Claro que quando acontece nunca é fácil mas estamos preparados.

Mas quando estamos a falar de evacuar uma zona densamente povoada como o centro de uma cidade, a situação é francamente mais complicada. Mesmo um tsunami, que era aquilo de que se falava muito aqui há uns anos, é uma onda que vem da costa em que as pessoas têm de se afastar e subir para uma cota mais elevada. Aqui são casas inundadas até ao segundo andar numa área extensa.

Ficou impressionado com as imagens da Alemanha?
Fiquei. Não estamos a falar de uma região com construção de baixa qualidade, nem de uma região que não tem esgotos e sistemas de saneamento eficiente.

Não é como as cheias de 1967 na grande Lisboa, que incidiram numa zona extremamente pobre.
Exatamente, na altura eram barracas construídas em leito de cheia.

Lá também era construção em leito de cheia.
O problema é que nos países com grandes superfícies aluviais, que são muito planos, têm esse problema: são muito sensíveis às cheias. Mas as pessoas têm de viver.

A Alemanha reagiu em choque, existe esse problema da vulnerabilidade e foi anunciada agora um inquérito a falhas na gestão dos alertas. Não pode haver, ao mesmo tempo, uma tendência para usar as alterações climáticas como desculpa para o que não se fez?
Esse é um problema bem mais complicado. Deixe-me pô-lo de outra maneira: temos um quadro psicológico ou psicossocial segundo o qual consideramos que se tivermos sempre bons comportamentos temos sempre bons resultados. Ou seja, se não construirmos aqui, não fizermos aqueloutro, estamos salvos de acontecimentos imprevistos.

A humanidade tem imensa dificuldade em gerir a ideia de que não controla toda a natureza. A verdade é que não controla. Esta ideia de que somos capazes de redesenhar uma paisagem que mitigue todos os riscos naturais… Penso que estes três ou quatro acontecimentos recentes começaram a mostrar que isso pode não ser verdade.

A ideia de termos uma situação estável socialmente, com uma agricultura competente, capaz de alimentar populações, que tenha uma utilização do território sensata, pouco exagerada e resiliente, apesar de ser ainda hoje o grande caminho que as sociedades estão a tentar travar, pode não ser suficiente.

Acha que não nos vamos conseguir adaptar às alterações climáticas?
Acho que podemos ter uma situação um bocadinho similar, passe a comparação sempre abusiva, com os desastres de automóvel. Podemos comportarmo-nos todos bem, mas há sempre uma certa fração de desastres de automóvel. Por distração, por incúria.

Até por azar, várias coisas ao mesmo tempo.
Sim, aquilo a que a gente chama azar. Uma coisa garanto: por vezes não somos bem capazes de perceber os efeitos da mudança climática. Somos capazes de quantificá-la, dizer que é 1,8 graus, menos 10% de humidade, mais 10 k/h de vento, mas o que é que isso significa na prática na vida de todos nós ainda estamos longe de ter essa perceção. E há outra coisa: posso prever que o nível do mar vai subir 50 centímetros em 50 anos, mas estou a falar de média. A média é como a história do frango: o problema é quem come o frango e quem não o sobe. Temos uma previsão de um aumento médio de temperatura, nuns sítios vai subir um bocadinho, noutros muito.

Depois dos recordes de temperatura nos EUA/Canadá houve cientistas a afirmar que seria algo virtualmente impossível sem alterações climáticas, expectável uma vez a cada mil anos. Há quem argumente que sempre existiram cataclismos naturais. Até que ponto é possível atribuir estes fenómenos às mudanças do clima?
Que existe já capacidade em algumas situações de demonstrar que há um efeito das alterações climáticas, não há dúvida, a questão é que isso serve para muito pouco. A justificação para pouco serve quando as coisas acontecem, serve para se perceber que é preciso atuar mais rapidamente sobre as emissões com gases com efeito de estufa, o que é importante, mas não é tudo. Temos de nos adaptar a uma situação em que os fenómenos extremos são mais frequentes.

Naquela conferência onde estive, um colega meu lembrou uma coisa importante: quando se falava de mudança de clima havia duas grandes ideias complementares. A pergunta era: o que é que vai acontecer, é a média dos valores que vai aumentar e a distribuição vai manter-se ou a média vai aumentar e a distribuição vai variar?

São duas coisas diferentes. Quando dizemos que a média vai aumentar mas a distribuição vai ser a mesma, o que isso significava era que nós ficaríamos com um clima não muito longe do de Marrocos, a Suíça ficava com um clima mais mediterrânico, etc.

Toda a gente subia um patamar.
Sim, e isso era uma coisa que, apesar de tudo, parecia razoavelmente gerível. Mas a outra questão que está presente desde o início da reflexão sobre as alterações climáticas é se a distribuição vai variar – e que era esta questão dos fenómenos extremos mais frequentes, que hoje já conseguimos ver estatisticamente que é o que está acontecer.

E um fenómeno extremo é mesmo isso, é extremo, o impacto é superior à capacidade de resistência do sistema. Perante isto podemos aumentar a capacidade, e temos de aumentar, e isso passa por melhor ordenamento do território, das atividades humanas e em particular do uso da água, mas também perceber que a capacidade pode não chegar. A água tem um efeito destruidor que penso que os portugueses conhecem pouco.

Tivemos as cheias de 1967, é verdade, mas é preciso ter a consciência de que as cheias são na Europa o fenómeno meteorológico que mais vítima causa. Todos os países da Leste da Europa, da Alemanha à Polónia, dedicam tanto esforço à meteorologia como à hidrologia.

Quais são as zonas mais vulneráveis em Portugal?
Temos a lezíria do Ribatejo, zonas planas à volta do Vouga e do Sado, mas temos zonas aluviais restritas, somos um país montanhoso. Desde a construção das barragens que permitiram regularizar os rios não temos tido muitas cheias históricas.

Mas podemos ter um cenário como este que se viveu na Alemanha e na Bélgica?
Quem sou eu para dizer que não. Podemos ter um efeito numa zona mesmo com a causa distante. Uma bacia hidrográfica recupera água de uma superfície muito grande. A bacia do Vouga não é só o vale do Vouga, vem desde a nascente. Se tivermos precipitação muito acima da média durante muitos dias, claro que o caudal vai subir dramaticamente.

Para um leigo, é uma das perplexidades: como é que chove num dia o mesmo que é suposto chover num mês? Na China houve agora uma região onde choveu em dias quase tanto como o normal num ano.
Arranjar uma justificação é fácil: a termodinâmica ensina que quando aumentamos a temperatura da atmosfera, ela tem mais capacidade de reter vapor de água. Tendo mais capacidade de reter vapor de água, vai haver mais precipitação.

Portanto é reflexo do aquecimento global da atmosfera.
Em média o aquecimento global dá mais precipitação. Mas, e há sempre um mas, o que se está a verificar é que o processo dinâmico está a dominar o processo termodinâmico. Ou seja, temos situações com esta da China mas nós somos essencialmente afetados pela dinâmica da atmosfera, não é pela estática. É a massa de ar que vem de África que entra aqui, são os fenómenos verticais de circulação do ar como houve em junho de 2017.

Os downbursts de que se falou no fogo de Pedrógão Grande.
Sim e veja como questões que eram palavrões da meteorologia e que se discutiam quando muito em aulas de Física Aplicada de repente começam a entrar no vocabulário e que a atmosfera afinal não é assim tão calma. Há aquela expressão francesa: um longo rio tranquilo.

Isto não é um longo rio tranquilo, é um sistema que tem uma dinâmica muito forte, que em situações limite pode causar extremos de temperatura e extremos de precipitação. Os extremos de temperatura têm resultados que vão desde os incêndios rurais a mortes súbitas. Os excessos de precipitação vão dar cheias rápidas em certas regiões. E não podemos viver todos no cimo da Serra da Estrela, a nossa vida de certa forma tem de conviver com o risco de desastre natural.

Conviver com o risco, a questão que tanto tem sido levantada pela pandemia.
Sim e a ideia de que podemos ter uma sociedade sem risco é ilusória. Convivendo com o risco, vamos ter situações que não vão ser agradáveis, vão ser muito desagradáveis. E a questão é como é que nós, que somos humanos, que temos uma vida limitada, que não temos interesse nenhum em situações de evolução rápida que ponham em risco a nossa existência, vamos lidar com isto. Estamos a aprender à medida que caminhamos. Agora o que todos estes acontecimentos nos dizem é que precisamos de uma estratégia de longo prazo, como se costuma dizer de alteração de paisagem, mas não só.

O país tem uma Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas desde 2015, agora prorrogada até 2025. Não chega?
Diria que tem de ser repensada como um misto de estratégias de longo prazo que tentam adaptar o sistema natural a um novo clima, onde entram questões como a descarbonização, mas temos de perceber que neste caminho que queremos fazer vamos ter grandes sobressaltos e ao mesmo tempo vamos ter de ter meios rápidos de intervenção. É preciso aumentar a cooperação da Proteção Civil a nível europeu e a nível global.

Precisávamos de ser capazes, havendo esta situação na Turquia, de concentrar lá meios. A nível da União Europeia esse sistema existe, ajudamos ou somos ajudados quando é preciso, mas vai ser preciso reforçar essa capacidade. Penso que outro aspeto muito importante que é preciso reforçar prende-se com a atuação individual. É algo que me tem preocupado muitas vezes: o que nos deu a ideia de que íamos ficar sem risco foi termos aumentado a nossa capacidade de previsão. Se somos capazes de prever, somos capazes de nos adaptar e não sofrer. 

A confiança na tecnologia, que também se vê na Medicina.
Exatamente como na Medicina e também por isso os paralelismos entre o problema das alterações climáticas e os da pandemia não são despiciendos. Se somos capazes de prever, somos capazes de atuar; se somos capazes de atuar, o risco vai ser zero.

Sabemos que depois há muitas outras camadas: muitos dos nossos riscos provêm de ações regionais, locais e pessoais que não são as mais resilientes, como construir em cima do mar ou outra coisa qualquer. Mas aí pensamos que se conseguirmos, pela via regulatória, que isso não aconteça, o risco vai ser zero. O que isto nos levanta é que em certas situações, mesmo com isso tudo, não funciona. É como a pandemia, vai ser mais rápido que nós.

Como é que podemos interpretar o facto de o EFAS, o Sistema Europeu de Alerta de Cheias, ter concluído que havia uma situação de alerta vermelho naquela região da Alemanha e não ter havido nenhuma reação? Como é que interpreta o facto no dia 17 de junho de 2017, e digo isto com todo o respeito pelas vítimas, tivéssemos um dos únicos alertas vermelhos que o IPMA alguma vez emitiu e mesmo assim as pessoas continuaram a sua vida normal?

Mas foi comunicado o suficiente? Havia essa perceção de que era um dia em que poderia acontecer algo extremo?
Nunca tínhamos lançado aqueles alertas, passou o dia todo na televisão.

As estradas estavam abertas. As pessoas não deviam ter circulado?
Não estou a querer dar lições a ninguém. O que estou a dizer é que em sociedades democráticas como as nossas, temos confiança nos vários sistemas.

Que o GNR vai lá estar.
E tem estado e normalmente está, é por isso que ganhámos tanta confiança. Mas as coisas podem ser rápidas de mais. Quando as coisas são rápidas de mais, temos de conseguir saber qual é a atuação que devemos ter numa situação de emergência.

Mas nos incêndios de Pedrógão houve várias falhas, limpeza, os postos de vigilância não estavam todos a funcionar porque a ativação do dispositivo seguia o calendário e não a meteorologia, o ataque inicial foi pequeno. 
Isso remete para a necessidade que temos de afinar os sistemas formais. Mas precisamos ao mesmo tempo que as pessoas tenham mais informação sobre como agir e que recebam informação mais rápida, usando as redes sociais. Temos de ter uma relação mais direta entre cada cidadão e os sistemas de previsão e as pessoas têm de se habituar a adotar os comportamentos à informação que recebem mesmo antes de ter a certeza se a informação está certa.

Há algumas páginas de meteorologia de amadores que costumam fazer alertas e previsões até antes do IPMA. Dão-se bem com isso?
Sim e tanto damos que temos todos os nossos dados abertos e disponíveis. Um organismo tem de ter protocolos e segui-los, se não poderia até usar meios desnecessariamente. Leio todos os dias todas as páginas nas redes sociais que têm a ver com meteorologia e mesmo críticas que às vezes lá há têm de ser tomadas em conta.

Essa perspetiva da ciência-cidadã é muito importante. Um mundo mais informado do que o atual é um mundo em que toda a gente é capaz de seguir a informação à medida que é produzida, é capaz de a entender em boa parte e isso leva à tomada de posições que podem ser mais conservadoras ou mais corajosas, como entender, e que seguem as orientações das entidades. Temos de usar o nosso melhor conhecimento para atuar de forma o menos arriscada possível e isso vai depender de cada um de nós. As autoridades têm de dar informações claras e compreensíveis, mas não chega.

Mas aí ainda vê falhas?
Acho que há falhas mas que se tem progredido excecionalmente. Não há comparação até na compreensão de cada ator sobre qual é o trabalho do outro. Mas é preciso desenvolver esta outra frente, que é o papel direto dos conhecimentos dos cidadãos no acompanhamento da meteorologia, da sismologia, da atividade marítima. Durante a crise tornaram-nos financeiros…

Agora epidemiologistas.
Sim e durante os fogos somos todos especialistas em incêndios rurais. E as pessoas costumam rir-se disso, mas não tenho nada essa visão: naturalmente que não somos todos especialistas, mas o conhecimento tem muitos níveis.

Não é habitual ouvir um cientista tão aberto a que leigos entrem pelas suas áreas.
Isso acabou. E neste caso do clima, estes acontecimentos vêm-nos alertar de que as pessoas têm de ter um conhecimento básico do sistema terrestre. Quanto mais compreensão houver e mais disseminação, mais seremos capazes de gerir este mundo de risco. Vamos ter um mundo com mais risco, não vamos ter um mundo com menos risco.

Qual é o trunfo que podemos ter? Educação.

Fazem falta conteúdos destes nos currículos escolares?
Faz falta estudar física, matemática, biologia, química, perceber mais. Mas também história, todas as disciplinas, independentemente da área que se segue. É isso que vai fazer com que cada vez mais pessoas participem na ciência, não tendo de ser cientistas. Temos um projeto no IPMA que já tem muita participação e que se chama GelAvista.

As pessoas podem mandar fotografias de medusas, caravelas que veem nas praias. 
Sim e tem um grande interesse científico. Fazemos muita força nisso e só não fazemos mais porque não podemos fazer tudo e temos de ter prioridades e a prioridade é que o sistema trabalhe todos os dias. Mas mesmo na monitorização do mar, existe cada vez mais uma cooperação com os pescadores e com os apanhadores. Diria que nos próximos anos, se tivermos cabeça para isso, cada vez mais seremos mediadores.

O IPMA é autoridade no sentido de dizer “isto é isto ou é aquilo”, mas na gestão do dia a dia queremos ser mediadores do cidadão, criar ambientes em que as pessoas deem informação e retirem informação.

Voltando aos problemas estruturais, em Portugal ainda se constrói mal?
A construção atual tem standards elevados para o risco sísmico que temos.

Mas em relação ao risco de inundação, a questão voltou a colocar-se com o plano para o aeroporto do Montijo numa zona vulnerável à subida do nível do mar. O mesmo no Hospital CUF de Alcântara ou mesmo a Fundação Champalimaud.
Bom, somos o IPMA, não digo coisas que não sou capaz de provar. Mas algumas da situações que descreveu não são certas.

Não há risco?
Há risco, mas tem de ser quantificado e analisado. 

Um edifício à beira da água não quer dizer que seja mal construído?
Exatamente. Hoje em dia os standards de construção são elevados. O ordenamento do território tem muitos problemas mas essencialmente são históricos e temos imensa dificuldade em vermo-nos livres deles. Temos construção no meio da floresta completamente desordenada, que nunca será sustentável, e temos efetivamente construção perto da linha de água que obviamente vai se inundada e destruída.

Por exemplo?
As zonas mais vulneráveis são sempre as zonas estuarinas. Têm de ser consolidadas. Agora isto é uma questão complexa. É verdade que exige músculo político, o que pode ser difícil. Temo vistos casos em que esse músculo aparece e exerce-se, noutros casos, como se costuma dizer, aquilo que o homem não corrigir a natureza encarregar-se-á de o fazer da pior maneira possível.

Acompanhei há uns tempos o trabalho feito em autarquias da zona de Lisboa e existe uma preocupação de haver normas que possam precaver a inelutável subida do nível do mar mas diria que o mais complicado é como corrigir situações históricas que não estão bem, com os custos sociais e económicos que isso implica. 

Mas está a falar por exemplo das ilhas-barreira no Algarve?
Estou a falar de tudo. Todas as coisas são simples de resolver na lógica do Mandarim do Eça de Queiroz: a gente toca uma campainha e morre um tipo na China. Mas as coisas não são assim. Tivemos essa experiência social muito difícil no pós-junho de 2017. Foi necessário ir ao local fazer medições e uma pessoa percebe que as situações que estão mal são todas tremendamente difíceis de resolver.

Tem uma pessoa de idade muito avançada que eu ou alguém acha que não se deve viver ali – como é que se vai dizer que não pode viver na terra que foi dos pais e dos avós? Vai para um lar até morrer? As coisas são fáceis quando não há pessoas, quando não há histórias.

Quando há tudo isto junto, são mais difíceis e por isso temos de respeitar os políticos que não têm capacidade de tomar uma decisão que no quadro branco parecia perfeita. A vida não é um quadro branco, é um quadro já muito pintado.

No meio dessa compreensão, há intervenções que não se deviam adiar?
Claro que há. Precisamos de ter um ciclo de investimento mais importante na economia circular da água. Aí temos falhas.

Medidas como dessalinização ou uso de águas residuais e pluviais? 
Sim. Temos de conseguir interiorizar que a água não desaparece, a água está cá, nós é que temos de conseguir utilizar o seu ciclo completo. Não podemos reduzir tudo à questão de consumir cada vez menos. Temos de consumir menos, mas uma parte da solução tem de estar na economia circular, nessa reutilização de águas residuais, na capacidade de dessalinização – apesar de haver alguns efeitos ambientais que não somenos importância, pelo efeito que tem no meio marinho na concentração de sal. Temos provavelmente de desenvolver mais métodos de produção agrícola em circuito fechado, em estufas.

Tem havido uma enorme discussão por exemplo em torno da agricultura intensiva. Considera que é necessária?
Acho que é a única possibilidade. Acho que voltarmos aos métodos tradicionais não é realista. O problema não é ser agricultura intensiva ou extensiva, o problema é a agricultura ser capaz de reutilizar significativamente a água que utiliza ou não. Esse é o principal problema.

E ser capaz de utilizar também de forma circular os principais elementos químicos que são precisos para a produção, o azoto, o fósforo. Uma parte de solução vai ter de estar nos hábitos alimentares mas outra naquilo a que posso chamar a industrialização da agricultura. A agricultura 4.0. 

Até porque vão reduzir as áreas cultiváveis?
Sim, temos de ser mais eficientes e conseguir métodos que garantam que a água que colocamos numa zona agrícola seja consumida por nós sobre a forma de frutos, legumes, que não seja desperdiçada. A água que é lançada de forma descontrolada e sem utilidade para o chão é que tem de ser diminuída. Acho que a chave vai ser mais por aí do que outra coisa qualquer.

Que culturas vão estar ameaçadas nos próximos anos?
Frutícolas e todas as culturas que precisem de horas de frio. Ou as culturas que dependem muito de água como o tomate ou o arroz, que vão ter de resolver o problema, lá está, a economia circular da água. Nunca até agora a humanidade resolveu problema nenhum voltando a ser uma sociedade de recoletores. Já não temos essa capacidade: somos muitos, temos standards de vida elevados e note-se que muitos dos nossos concidadãos não os podem ter.

Temos de nos preocupar com melhorar os padrões de vida de pessoas com menores rendimentos, que são muitas e em Portugal ainda são muitíssimas. Temos de nos virar para aí e não arranjar soluções que só têm sentido na perspetiva de pessoas que têm imensos recursos e que, por isso, podem fazer dietas muito finas.

Deduzo que não é então vegetariano.
Como muito pouca carne hoje em dia, mas para dormir melhor, porque é mais saudável, é verdade que temos um consumo excessivo de carne. Mas atenção ao jogo: a população que tem um consumo em excessivo de carne não é muita no planeta. Há populações que ainda têm de ascender a essa capacidade.

Nunca acreditei numa solução que não passe pela ciência, a solução vai ter de ser na ciência e na tecnologia e vamos ter de resolver os problemas naquela perspetiva que toquei há pouco e que parece um bocadinho fora deste mundo mas é mesmo assim: a Terra não perde elementos, só perde hidrogénio, hélio e pouco mais, o resto está tudo cá.

Nada se perde, tudo se transforma.
É Lavoisier. Portanto temos de ser capazes de ter circuitos de reaproveitamento eficientes. Claro que pagamos tudo em energia. O que pagamos em energia depende essencialmente dos custos da energia, que ainda é elevado para conseguirmos fazer uma reutilização sistemática de todos os elementos que a Terra tem, mas já há conhecimento e alguma experimentação sobre a possibilidade de seguirmos cada molécula, por exemplo dos elementos importantes para a tecnologia, o tálio, o cobalto.

As terras raras como são chamadas.
Sim, e o que se discute é a possibilidade de fazer seguimento das terras raras desde que são extraídas até que são utilizadas para depois serem reutilizadas.

Mas com chips?
Com identificação feita com tecnologia blockchain. A evolução é tremenda. Quando eu andava no liceu, um número muito grande era o número de Avogadro, 10 levantado a 20 e tal, quando passávamos da mecânica para uma interpretação mais termodinâmica.

Hoje em dia o número de Avogadro é processável por qualquer computador. Há uma história muito interessante e ilustrativa que tem a ver com os filmes do super-homem, como são filmadas as barragens a ser destruídas. É com uma tecnologia chamada SPH, desenvolvida inicialmente na Austrália, em que se simula o comportamento de cada molécula de água. Isso acaba por ser mais simples de fazer que usar as equações da termodinâmica, que trata a água como um contínuo. Passámos do contínuo para o descontínuo pelo número de Avogadro, que hoje está completamente ao nosso alcance. Vamos ser capazes de fazer coisas daqui a umas décadas que nem imaginamos.

Entrevistámos recentemente um autor de um livro contra um certo alarmismo ambiental, Michael Shellenberger, que diz que figuras como Greta Thunberg conquistaram a felicidade ou a fama à custa de semear o pânico nos jovens e que não há um apocalipse à porta. Percebe a ideia ou vê méritos na jovem ativista?
Como já percebeu não sou nada a favorável ao alarmismo em nenhuma das área, mas há um problema. Temos de ver que muitas das coisas que se ouvem são sintomas desse problema. Não quer dizer que o mensageiro nos traga a verdade, mas mostra que existe uma certa incomodidade.

Perante as declarações da Greta Thunberg podemos ter duas atitudes: uma é a que me está a referir, dizer que ela não sabe o suficiente de física de atmosfera para dizer se é verdade ou mentira e é verdade que não sabe. Mas também podemos ter a atitude de dizer: ela está a mostrar que existe uma incomodidade à volta deste problema e da dificuldade de o gerir.

E para quem, como eu, já teve a sorte de estar em Vancouver, no Canadá, e viu o que é aquela paisagem verdejante e imagina que estiveram próximos de 50 graus celsius, é chocante. Há um ponto em que passamos do alarmismo para a inconsciência. Não devemos ser alarmistas nem devemos ser inconscientes. E, neste momento, as previsões da evolução do clima na Terra, se pecam por alguma coisa, é por defeito, não é por excesso. 

Parece-lhe inevitável um aumento de temperatura de 2 graus?
Creio que é inevitável, penso que já passámos os limites. Se são os tipping points ou não, não sei. Isso são simulações de pontos em que os sistemas de retroação ou feedback começam a ser tão fortes que já não se consegue controlar o sistema.

Quando dava aulas, o exemplo que dava sempre era Vénus, que tem uma situação de efeitos de vapores permanentes de vários gases, que tornam a atmosfera opaca e com isso a temperatura ainda aumenta mais. É um círculo vicioso, fica fora de controlo e a vida não é possível.

Estamos muito longe disso.
Estamos muito longe, mas existem sinais de algum alarme. Mais uma vez, o alarmismo não serve para nada, não resolve problema nenhum. Agora temos de ter uma atitude sensata. Quando se fala do aumento de temperatura, lá está, é a média e o problema é o alargar da distribuição e a frequência de fenómenos extremos.

Uma coisa é estarmos sempre a bater recordes mas por 0,1 graus, 0,2. Todos os anos são batidos recordes e sabemos que são verdadeiros recordes, porque hoje temos estações calibradíssimas. 

Outra coisa é em vários sítios baterem-se recordes?
Ou por vários graus como aconteceu no Canadá. Não temos capacidade de gerir aumentos desta ordem.

Pode ter sido uma coincidência?
A Terra tem tudo menos coincidências. O que estamos a ver é um sistema mais energético. Se é porque o padrão do circulação do ar está a ter uma alteração significativa, se é porque começam a aparecer certos fenómenos que não estavam previstos, a verdade é que a civilizaçã o é possível numa gama muito pequena de condições de temperatura, pressão e humidade. Se sairmos dessa gama, as coisas não são possíveis. E mesmo num fenómeno limitado pode causar muitas mortes e pode destruir a agricultura numa zona extensa.

Um país como Portugal pode ficar mais dependente em termos alimentares?
Vamos ficar todos dependentes de todos. Se há coisa que até os fogos rurais têm mostrado é que há momentos em que os países precisam de ajuda. Quando temos essas situações, dificilmente haverá localmente meios. Estamos numa fase de pós-país no que diz respeito à Proteção Civil. Precisamos de uma resposta supranacional e dependemos todos uns dos outros de uma forma que às vezes temos dificuldade de compreender. E aí temos de voltar à covid-19, porque vemos o mesmo.

Mas já havia essa pressão, todos os anos há milhares de refugiados climáticos e mas era um problema do quintal dos outros. 
Nunca ninguém conseguiu exportar desenvolvimento, temos de ser honestos. Conseguimos com alguma dificuldade fazê-lo onde estamos, mas não é fácil. Criar condições mais justas em termos internacionais do ponto de vista económico é possível. As responsabilidades globais começaram a aparecer com as vacinas, com questões como a malária. Agora está-se a levantar o mesmo problema com a covid-19.

Percebe-se que se não for toda a gente vacinada, é inútil, vão aparecer variantes. As responsabilidades planetárias vão aparecer em muitas áreas e vão ter de ser encarada pelos diferentes países de uma forma diferente. E há um sentimento que tem mesmo de acabar que é aquela coisa de que quando pedimos ajuda internacional estamos a perder a face.

Ainda existe?
Basta ver as notícias. Esse sentimento tem de desaparecer. Todos precisam de ajuda internacional, os ricos e os pobres. Não é uma questão dos países ricos ajudarem os pobres, isso acabou. É uma questão de os países mutualizarem recursos para atacar situações de extrema gravidade.

Essa ideia de perder a face vem do receio da crítica “será que planearam o suficiente” e a formiga ter de dar a mão à cigarra?
A história da formiga e da cigarra no que diz respeito à mudança climática é uma fábula sem cabimento. Quem é que foi a formiga e a cigarra na Alemanha agora? Há a forma como um país se desenvolveu, os recursos que temos e os riscos que todos corremos.

Olhando para os boletins climatológicos do IPMA deste ano, janeiro foi muito frio e seco (o quarto mais frio dos últimos 20 anos); fevereiro quente e chuvoso, o quinto mais quente desde 1931; março quente e seco, só com 25% da precipitação normal, abril muito quente e maio quente e muito seco. Junho foi o único mês normal. Ainda podemos falar de estações do ano normais?
A estações do ano existem porque há alteração da duração do dia, é uma questão astronómica. Agora esta questão da variabilidade climática é uma coisa real que nos afeta muito do ponto de vista da agricultura e do entretenimento. E por isso digo que temos de ter uma estratégia abrangente.

Do ponto de vista da agricultura, vai ser preciso mais tecnologia. Do ponto de vista do entretenimento precisamos de ter investimentos mais diversificados e resilientes. Todos os investimentos que se fizerem na recuperação de património histórico, que se permita que se consiga ter umas férias fantásticas, serão uma mais-valia. Temos locais lindos para visitar, milhares de anos de história, temos de os pôr à superfície.

Temos de ter mais confiança em nós e sermos capazes de passar um dia na praia mas também um dia num fantástico monumento megalítico. Diria que o caminho é este, diversificar, porque a temperatura do ar e a temperatura da água não há ninguém que consiga controlar.

Depois do verão vem o outono/inverno. Tem havido alertas para épocas de tempestades mais fortes, porque a água está mais quente e “alimenta” os furacões. Tivemos o furacão Ophelia em 2017.
Foi o primeiro furacão que entrou em território continental.

É possível que venhamos a ter mais furacões a chegar à Europa?
Geralmente entravam mais a norte e já numa situação menos preocupante, para nós claro, mas para Irlanda e na Holanda dava muita chuva. Aqui a perspetiva é que vão aumentar esses fenómenos, mesmo chegando cá como tempestades tropicais.

No caso desse furacão Ophelia, acabou por ser um dos fatores que alimentou os incêndios de outubro de 2017. Havendo temperaturas elevadas, há esse risco também?
Se isso pode voltar em outubro, pode. Temos de fazer mais pelo território, sim. Provavelmente vai ser preciso começar a pensar nas limpezas das florestas não só na primavera mas ao longo o verão. Nesses incêndios também houve questões relacionadas com a rede elétrica. 

Mas a tendência é o período de incêndios prolongar-se?
Historicamente quando temos um verão mais fresco costumamos ter um verão mais longo, mas já tivemos até o ano sem verão, que não me parece que seja o que está a acontecer, temos tido alguns dias ótimos.

A sua área de estudo são os riscos sísmicos e os tsunamis. Para esses, menos visíveis no dia-a-dia, estamos menos despertos?
Podemos estar mas historicamente entraram mais na máquina da Proteção Civi. Quando falamos de risco sísmico, pensamos naturalmente na resistência da construção e existe a esse nível imenso trabalho feito pela engenharia civil portuguesa, sabe-se o que é preciso fazer.

E é feito?
É feito. Claro que temos construção de má qualidade dos anos 50, mas houve avanços. A dificuldade são mais os riscos emergentes, de cheias, de que temos menos experiência, e então de furacões as pessoas nem sabem se devem abrir as janelas, fechar as janelas, fechar os estores. 

Mas se calhar deviam saber, não?
Sim, e a culpa é nossa, vamos ter de disponibilizar mais informação. Alguns acontecimentos na zona da Figueira da Foz tiveram a ver com a variação de pressão fazer com que fosse chupado todo o interior das salas para fora. Os estores deviam estar corridos.

Começamos a ter conhecimento de coisas que só víamos nos filmes da Florida. E não é só os filmes, vamos ter de usar as experiências dos outros para lidar com este tipo de fenómenos. Muitos têm de aprender connosco sobre fogos rurais e nós teremos de aprender com outros sobre cheias instantâneas, tempestades tropicais. 

Voltando ainda aos sismos, estamos em risco de voltar a ter um grande sismo em Lisboa.
Claro que estamos, mas não é possível prever.

Existe uma periodicidade?
Não, o único calculo que existe é de 2000 em 2000 anos, mas pode acontecer em qualquer altura. Em termos de acompanhamento temos um sistema como nunca tivemos, as redes de monitorização tanto aqui como nos Açores melhoraram bastante.

Com os investimentos do PRR vamos passar a ter uma rede moderna em todo o território, tanto atmosférica como sismológica. O que estamos também à beira de fazer é conseguir prever, quando um sismo começa, se vai ser grande, um sistema de alerta precoce que permitirá prever a magnitude.

Vai servir para quê?
Para acionar resposta mas também para desligar infraestruturas críticas. Tudo o que seja alta-velocidade, instalações de hidrogénio, vão precisar deste tipo de informação. À medida que queremos descarbonizar, vamos criar situações que têm de ser muito bem controladas. Se queremos fontes concentradas de energia, precisamos de sistemas de alerta precoce que sejam tremendamente eficientes.  

É autor de um catálogo de tsunamis em Portugal. Tivemos assim tantos ao longo da nossa história?

Tivemos, uns pequeninos e outros grandes. O último estudado, que nem sequer está no catálogo, tem estado a ser desvendado por um jovem austríaco que trabalha em Portugal e teve a ver com o sismo de 1858 em Setúbal. Sempre nos tinha feito alguma confusão porque é que não tinha gerado nenhuma onda de tsunami, não havia informação nesse sentido. O Martin, quando começou a pesquisar, descobriu que há relatos dessa onda, sentidos pelos barcos de pesca. O último tsunami foi em 1975, recebido em Lisboa, mas pequeno.

Um metro?

Não chegou. O maior foi o de 1755. A água passou no Bugio a cinco metros de altura do farol. Estavam lá guardas que dispararam tiros para avisar Lisboa. A inundação foi grande em Cascais, Oeiras, Carcavelos e até Terreiro do Paço. No pós-sismo, nos planos de reconstrução, o nível da Baixa foi subido 2,5 metros. Percebia-se já no século XVIII que algumas medidas de reestruturação do território podiam reduzir os riscos. Mas Portugal tem uma tal tradição de tsunamis que numa viagem de Vasco da Gama, o navio sofre uma sacudidela e ele sabia na altura que aquilo era o que chamamos hoje um sea quake, uma onda gerada por um sismo. Depois tivemos o tsunami de 1531, que na minha opinião é um tsunami dentro do estuário do Tejo e de que ninguém já se lembrava até ser descoberto um documento num alfarrabista da Baixa. Descobriu-se que até poemas de Garcia de Resende existem. Isto para dizer que a nossa memória às vezes é mais curta do que a gente imagina. Muita dessa história foi reescrita ao longo do século XX.

Indo para as alterações climáticas, sendo desconhecido este território para nós, já foi vivido antes pelo homem?

Penso que com esta rapidez de mudança não. Transumâncias sempre existiram, variações de clima em que as populações abandonam um local e vão para outro, mas eram coisas suficientemente lentas para acontecerem ao longo de gerações. Hoje temos variações rápidas no espaço de uma única geração, mas isto é tanto verdade na agricultura e clima como na indústria, em que as pessoas também ficam desadaptadas. Não é o pai ter uma profissão, o filho ter outra, é o pai que ao longo da vida se calhar vai ter três profissões. E isto é um stresse à vida dos cidadãos como provavelmente nunca existiu na história.

O que é que o levou para geofísica nos anos 70?

O primeiro curso em que me inscrevi foi Engenharia Eletrotécnica. Na altura o fascínio era a energia nuclear. Depois mudei para Física na Faculdade de Ciências, estive muito ligado ao movimento associativo e portanto tive as oscilações correspondentes, fui expulso umas vezes. Havia uma altura em que se decidia se se fazia micro física ou macro física, escolhi macro e acabei por me interessar por geofísica.

Na altura as alterações climáticas entravam nas aulas?

Não se falava. O professor Peixoto, que era o nosso mestre, dizia: “Ambiente? O ambiente é o complementar do sistema.” Esgotos e essas coisas? Isso é para os engenheiros do ambiente.

Para um cientista da sua geração, houve um momento de negação ou de ceticismo?

A comunidade meteorológica não aderiu logo. Foi uma ideia que nasceu muito na geografia e na política. A cultura foi sempre a mesma: falar do que se demonstra. A partir do momento que é demonstrável, estamos aqui para prever, para desenhar modelos e foi isso que se fez no final do século XX.

Foi presidente do Centro Europeu de Previsão de Tempo a Médio Prazo. Ouvi-o dizer noutro dia que o ‘el-dourado’ seria prever o tempo para uma década. É o objetivo?

Há três objetivos interessantes. O primeiro é termos uma previsão sustentada a 12 dias com muita fiabilidade, era muito importante para a agricultura. 

O Borda D’Água então não tem utilidade…

É uma brincadeira. Depois era muito importante prever uma estação, prever o verão na primavera. Há uma previsão mundial com a junção de todos os modelos mas falha muitas vezes. Isto era essencial. E depois sim, perceber o clima a dez anos em áreas limitadas, em particular em ilhas, que é um esforço que estamos agora a fazer com a Faculdade de Ciências para prever o clima nos Açores e na Madeira década a década. É muito importante para estabelecer aspetos como o funcionamento dos aeroportos, o que podem ter na agricultura em sequeiro e em regadio. Estão a ser corridos os modelos e em setembro/outubro teremos os primeiros dados.

E prever ondas de calor e vagas de frio?

Isso já é razoavelmente previsto, o que não somos capazes de fazer tão razoavelmente é saber o que fazer. Mas muita coisa tem sido feita, quando se começaram a prever ondas de calor havia movimentos de doentes de um lado para o outro porque nem todos os locais havia ar condicionado.

E ainda não há em muitos sítios.

Mas há em mais e os sistemas estão a adaptar-se. Intervir a nível social é mais complexo porque temos muitas pessoas a viver sozinhas. Numa onda de calor, o maior perigo é a desidratação. As pessoas não têm sede mas têm de beber água. E aí voltamos ao mesmo: desenvolvermos uma maior rede social é a única forma de respondermos. A empatia e a entreajuda. Vamos começar a desenvolver sentimentos positivos perante os outros por necessidade.