Foi, por ironia, no ano do quinquagésimo aniversário que o primeiro centro comercial do país chegou ao fim da linha. Fechou este sábado as portas o centro comercial Apolo 70, que a 26 de maio de 1971 veio mudar por completo a maneira como a capital e o país viam o comércio. Com três mil metros quadrados e situado a dois passos da praça de touros do Campo Pequeno, o Apolo 70 era um espaço que unia milhares pessoas, tanto no estúdio de cinema como no famoso snack-bar. Aos domingos muitos eram aqueles que cumpriam o ritual: chegavam ao Apolo 70 em grupo, atravessavam os corredores, “deitavam olho” à livraria onde acenavam ao senhor António Almeida (fundador da livraria Apolo) e desciam as escadas que não eram permitidas a crianças e que davam acesso ao snack-bar, conhecido pelos banana splits – gelados enormes e trabalhados com bolas de cores “coroadas” por uma torre de chantilly e xarope de morango que terminavam com uma pequena cereja caramelizada.
Nas redes sociais são hoje muitos os que lembram o espaço com nostalgia. O cinema, a loja de gelados e o salão de bowling de quatro pistas eram verdadeiros clássicos lisboetas. “Do Apolo 70 recordo o restaurante onde ia com a minha irmã, o Bowling com o meu pai, excelente jogador, e mais tarde de uma discoteca (loja de venda de discos) onde passava algum tempo”, afirma um internauta. Nas respostas deste tweet alguém relembra o “snack-bar com os balcões redondos, onde se comiam uns gelados espetaculares”.
A Livraria Apolo e a Barbearia Pinto’s foram as duas lojas que resistiram ao passar dos anos. Numa reportagem à RTP, em 2015, António Almeida recordava os tempos em que “fazia sestas de baixo da mesa”, onde via passar personalidades “ilustres”. O então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, continuava a “escolher” a barbearia do senhor Joaquim Pinto.
O golpe final
Se as coisas já não estavam fáceis, entretanto veio a pandemia e o Apolo 70 perdeu mais de 80% da clientela. O golpe final chegou por intermédio de um litígio judicial, que opõe a concessionária do centro comercial, a Companhia Proprietária de Estabelecimentos Vários, COPEVE, e o proprietário do edifício.
“Já há muitos anos que se sabe que isto iria acontecer”, disse à Lusa uma funcionária do centro comercial mais antigo do país. Ninguém esperava era que isto acontecesse “de um dia para o outro”, uma vez que não houve qualquer alerta da proprietária do shopping.
A funcionária ouvida pela Lusa acrescentou ainda que os comerciantes receberam uma carta para irem buscar os seus pertences no próximo dia 10 e que, pelo que se sabe “a COPEVE já não paga a renda do espaço há muito tempo, apesar de continuarmos a pagar-lhes”. “Também sabemos que a senhoria nunca quis ficar com o espaço, já que não recebe o dinheiro das rendas, e que o queria vender”, rematou.
O primeiro estúdio de cinema num centro comercial
O Apolo 70 foi também o primeiro centro comercial a ter sala de cinema. Estreou-se com o filme O Vale do Fugitivo, de Abraham Polonsky, marcado pela polémica de ser “uma metáfora da guerra do Vietname”. O “estúdio”, como lhe chamavam na altura, possuía sessões à meia noite e à hora de almoço – a ideia era “revolucionar o ambiente cinematográfico em Portugal” – e de facto foi pioneiro numa tendência que viria a impor-se nas décadas seguintes. Apesar do país estar então sob a chamada “Primavera Marcelista”, que proibia filmes sobre a guerra colonial, muitos outros foram transmitidos: desde os clássicos, às comédias e aos filmes fantásticos e de terror.
Com a revolução de abril, que resultou na abertura do país ao mundo, também o cinema “abriu”. A partir daí, os portugueses começaram a poder ter contacto com linguagens cinematográficas outrora proibidas, como foi o caso do cinema soviético, húngaro e checoslovaco.
Por agora, resta apenas a farmácia, o único espaço comercial que continuará a funcionar, ainda que com atendimento para o exterior.
Conceito moderno
Drugstore: era este o nome que em 1971 se dava àquilo que hoje designamos por centro comercial. O conceito começou por surgir nos Estados Unidos, passando depois por França, até que chegou a Portugal: “um conceito unitário de espaço que agregava ambientes diversificados, mas integrados através das formas, das cores, dos materiais, da luz”, explicou ao Público o historiador Nuno Ludovice em 2011. Também o nome escolhido para aquele espaço remetia para a modernidade que estava a instalar-se: depois da missão Apolo 11, que levou o homem à Lua em 1969, abria-se uma nova era em que nem o céu era o limite. Uma era de optimismo que chegou ao fim com o encerramento das portas e das grades decoradas com estrelas.