“Testa-de-ferro” é a designação que se dá a todo aquele que, com ou sem o seu conhecimento ou consentimento, vê o seu nome ser associado a uma qualquer actividade ilícita ou criminosa, com a função de ocultar o(s) nome(s) daquele(s) que verdadeiramente lucram com o crime.
Os “testas-de-ferro” são uma espécie de escudos protectores, “homens de palha” ou “espantalhos”, que os cérebros das organizações criminosas utilizam para ocultar o seu envolvimento na organização e nas suas actividades.
Do ponto de vista da criação, o mentor de qualquer organização criminosa, ou esquema fraudulento ou de corrupção, que queira ter sucesso com esse “projecto”, tem de pensar muito bem na forma de acautelar pelo menos dois elementos fundamentais:
- Preservar-se de eventuais efeitos punitivos, ou seja “se a coisa correr menos bem, como garantir o afastamento do seu nome de qualquer suspeição no envolvimento nas actividades criminosas?”; e
- Assegurar que os lucros do crime são de origem insuspeita, ou seja “como garantir o branqueamento desses valores de modo a que pareçam ter sido obtidos de forma legal?”.
E é precisamente para responder com sucesso a estas questões que muitas vezes estas organizações, sobretudo aqueles que as concebem (os arquitectos do crime), recorrem aos “testas-de-ferro”. A alguém que “empreste” o seu nome e outras referências identificativas para que, se alguma coisa falhar no funcionamento do esquema criminoso da organização, se tornar o “suspeito natural” aos olhos das autoridades policiais e permitir que os verdadeiros autores saiam de cena de fininho.
Há fundamentalmente dois grandes perfis de “testas-de-ferro”:
Os que não sabem nem desconfiam que o sejam, e que por isso nada ganham com o esquema criminoso em que o seu nome se vê envolvido. Por exemplo a utilização dos elementos identificativos de uma qualquer pessoa que perdeu ou a quem foi furtado o cartão de cidadão, para abrir contas bancárias pelas quais circularão os lucros do crime. Há uns anos atrás, quando exercia funções operacionais de investigador criminal, era comum os toxicodependentes e as prostitutas venderem os seus cartões de cidadão a redes mafiosas que depois os faziam entrar no mercado negro dos documentos de identificação, onde eram muito procurados pelo grande crime organizado, precisamente para assegurar essa tarefa de “testas-de-ferro”.
Nestes casos, e sempre que as polícias e os investigadores criminais se cruzam com as actividades criminosas em questão, acabam por chegar a pessoas que nada sabem do que se está a passar nem porque razão estão a ser incomodadas pelos Inspectores. Estes são provavelmente os “testas-de-ferro” mais frequentemente utilizados pelas organizações na medida em que nada saberão acerca dos projectos criminosos a que os seus nomes surgem ligados. Nada de útil terão para contar às autoridades de investigação. Mostrarão grande surpresa e indignação ao descobrirem que estão também a ser vítimas do crime.
Esta tipologia de “testa-de-ferro” é frequente nas organizações criminosas ligadas por exemplo aos tráficos de drogas, de armas ou de seres humanos.
Existem depois os “testas-de-ferro” que sabem que o seu nome é utilizado em esquemas desta “natureza”, e que por isso recebem uma parte do produto do crime como forma de pagamento dessa tarefa, e, sobretudo, para ficarem também vinculados, por relações de cumplicidade e co-autoria, às acções criminosas da organização. Um cúmplice ou co-autor do crime é um delator menos provável.
Do ponto de vista dos mentores da organização criminosa, dos tais arquitectos do crime, este tipo de “testa-de-ferro” será menos desejável do que o primeiro. E é-o desde logo porque, estando a par (pelo menos em parte) da actividade criminosa ou fraudulenta a que o seu nome ficará formalmente ligado, poderá fornecer essas informações às autoridades policiais se para tanto vier a existir alguma investigação nesse sentido. Por isso, este tipo de “testa-de-ferro”, geralmente com um perfil de alguma ingenuidade, requer um controlo frequente e apertado que lhe é feito pela própria organização, e que nem suspeitará que sucede. Por isso, em regra, não dispõe de informação completa sobre as actividades da organização nem de quem sejam todos os membros que a integram. Por isso é controlado sobre todos os contactos que realiza: Por isso é frequentemente testado quanto à sua vinculação à organização e aos seus propósitos. Por isso, quando interceptado pelas autoridades, é informado do que deve dizer exactamente ou, nos casos limite, que deve manter o silêncio. Por isso, em organizações mais violentas, de tipo mafioso, é eliminado depois de detectado e detido pelas autoridades policiais.
Este perfil de “testa-de-ferro” surge particularmente associado às organizações criminosas dedicadas a grandes esquemas de fraude e corrupção nos negócios, no âmbito da gestão de grandes empresas, públicas ou privadas, por exemplo de sectores tão importantes como a banca, a actividade seguradora, e também, sobretudo a partir do último ano, das actividades do Estado que têm sido particularmente solicitadas pelo contexto da pandemia, como sejam as áreas da prestação de cuidados de saúde, dos apoios sociais e dos estímulos à economia.
Adquire particular importância, na componente das ajudas de Estado para enfrentar a pandemia, o Plano de Recuperação e Resiliência recentemente adoptado pela União Europeia e o potencial de risco de fraude e corrupção que oferece, como vimos aqui em A pandemia e o jogo da fraude e da corrupção, e como o Observatório de Economia e Gestão de Fraude alerta na sua mais recente publicação, Riscos de fraude e corrupção no programa de financiamento europeu – reflexões e alertas.
Os recentes dados da Europol, divulgados através do Relatório EU SOCTA 2021, sobre a evolução da criminalidade organizada de natureza económica e financeira no espaço europeu, vêm alertar precisamente para um conjunto de elementos que devem ser objecto de preocupação e cuidado pelas instâncias de controlo da União Europeia e dos Estados-membros relativamente a esta problemática. Dos diversos alertas que o relatório apresenta relativamente às tendências evolutivas do fenómeno da fraude, da corrupção e da criminalidade organizada, destaca-se precisamente a tendência para o crescimento deste tipo de crime, com a presença de maiores índices de violência e com crescentes graus de sofisticação organizacional, designadamente através do recurso a “testas-de-ferro”.