Epidemiologia de águas residuais

Epidemiologia de águas residuais


A crise da água residual na Europa começou no século XVIII com um grande surto de cólera no Soho, em Londres.


“A Água é estranha”. Foi desta forma que o Dr. Yuan Lee, laureado com o Prémio Nobel da Química, descreveu a água. De facto, a água é estranha!!!… Se por um lado, a vida tal como a conhecemos não é possível sem a sua existência (podemos passar semanas sem acesso a alimentos, mas não sem água), por outro lado a mesma pode ser um veículo transmissor de doenças, caso não seja apropriadamente tratada. Apesar da importância que a água tem, tendemos a não lhe dar o devido valor. Abrimos uma torneira, e…ali está ela…

No entanto, a história deste importante recurso natural, encontra-se bastante ligada à própria história do ser humano. David Sedlak no seu livro Water 4.0: The Past, Present, and Future of the World’s Most Valuable Resource dividiu a história da água em quatro grandes pontos: i) Roma Antiga; ii) A Era do Balde; iii) A Grande Crise dos Esgotos na Europa; e iv) Solução “Da Sanita para a Torneira”.

A crise da água residual na Europa começou no século XVIII com um grande surto de cólera no Soho, em Londres. Até esta data, existia a ideia de que as doenças, como cólera e a peste, eram transmitidas por poluição que existia no ar, denominada pela Teoria do miasma. No entanto, esta corrente não era aceite por todos, incluindo pelo médico John Snow que, após entrevistas com habitantes da zona afetada, verificou que a fonte de contaminação era uma bomba de água e que pessoas que viviam nessa zona obtinham a sua água de uma zona mais poluída do rio, possuindo uma probabilidade 14 vezes superior de contrair cólera que os habitantes de outras regiões abastecidas por uma outra companhia de água que a obtinha de uma zona a montante do rio, com menores índices de contaminação. Foi, portanto, estabelecida pela primeira vez a relação causal entre a ingestão de água contaminada por esgotos e o desenvolvimento de doença. Este incidente conduziu a alterações, com criações de sistemas de esgotos, que mais tarde passariam a ser encaminhados e tratados nas estações de tratamento de águas residuais. As águas residuais, se não tratadas corretamente, podem, ao ser descarregadas no meio hídrico, causar problemas a jusante, incluindo em águas balneares e alimentos irrigados por águas superficiais. No entanto, também as águas residuais possuem uma faceta positiva: Como englobam toda a população, contêm toda a informação em termos de compostos químicos e agentes microbiológicos que circulam nessa comunidade, servindo como o reflexo da saúde e hábitos de uma população. O exemplo de maior sucesso da utilização da vigilância ambiental utilizando águas residuais é a Iniciativa Global de Erradicação da Poliomielite (GPEI). A poliomielite (polio) é causada por um vírus entérico, poliovírus, cuja vigilância tem dois indicadores: i) vigilância de paralisia flácida aguda; e ii) vigilância ambiental de águas residuais e outras águas contaminadas. Através da vigilância ambiental é possível confirmar a circulação do vírus da polio, mesmo na ausência de casos de paralisia, monitorizar os programas de vacinação, e em zonas em que a doença se encontra erradicada é possível monitorizar a propagação internacional do vírus e o aparecimento de novos casos de doença.

Os vírus SARS-CoV-2, embora transmitidos primariamente pelas vias respiratórias, foram também encontrados na matéria fecal de doentes infetados, independentemente da gravidade da doença e da existência de doença gastrointestinal. Adicionalmente, as pessoas assintomáticas têm também a capacidade de excretar SARS-CoV-2. A excreção poderá ocorrer 3 a 7 dias antes do aparecimento dos primeiros sintomas, facto que levantou a questão da potencialidade de, tal como acontece com a polio, utilizar as águas residuais como um sistema de alerta precoce para a circulação do vírus na população. Diversos países, incluindo Portugal, começaram imediatamente a monitorizar as suas águas residuais para a presença de SARS-CoV-2 com resultados bastante positivos. Alguns dos países, como os Países Baixos, Espanha, Escócia e Suíça já têm inclusive um sistema implementado que demonstra as variações semanais das concentrações de SARS-CoV-2 nas águas residuais com comparação com os dados epidemiológicos. Um exemplo muito prático da utilização de águas residuais como um sistema de alerta precoce e como complemento para a vigilância clínica, ocorreu na Universidade de Phoenix em que foi pedida a monitorização das águas residuais de uma residência aquando do regresso dos alunos e foi detetada a presença do vírus. Todas as pessoas que se encontravam na residência foram então testadas e duas deram positivas, pelo que foi evitado um surto naquela residência. Muitas vezes, e devido a diversos fatores, a testagem clínica não consegue acompanhar o desenvolvimento da doença na população e a utilização de águas residuais para seguir a circulação do vírus significa a análise de comunidades inteiras podendo oferecer uma melhor visualização da saúde de numa determinada comunidade.

A vigilância de SARS-CoV-2 permite avaliar a circulação do vírus na população, verificar tendências de subida ou descida, identificar zonas de interesse para uma testagem mais direcionada e seguir o surgimento de novas variantes que já se encontram em circulação no país, mas que ainda não foram diagnosticadas clinicamente. Como tal, as águas residuais, são um ativo muito valioso não só no contexto desta pandemia, mas também em futuras crises de saúde pública. Podemos, portanto, dizer que as águas residuais são um bem inestimável e não apenas um cheiro desagradável com que algumas vezes temos que lidar.

 

Investigadores do Laboratório de Análises do Instituto Superior Técnico