A obra de Rui Nunes é já longa: 40 anos de um único livro contínuo – tentarei explicar esta ideia daqui a pouco – e uma visibilidade paradoxal, ao mesmo tempo em crescendo nos últimos anos, com a multiplicação de entrevistas e de trabalho crítico, sem que isso, no entanto, viole esta espécie de segredo partilhado que é, em última análise, a sua escrita.
O espaço público, no que diz respeito à literatura, tem os seus protocolos: um certo uso da linguagem, uma boa vontade, a consideração de que isso, a literatura, tem um certo valor intrínseco – formativo, dizendo respeito à criação do bom cidadão. Já não se pede ao escritor que seja um intelectual – figura que desapareceu há muito –, já não se lhe pede que tenha uma opinião sobre os assuntos mundanos e até se pode defender que ele próprio não precisa de se pautar por uma conduta irrepreensível – pode ser, enfim, um mau carácter; pede-se-lhe, no entanto, que faça o elogio daquilo que faz, que aquilo que escreve se ligue, de uma forma ou de outra, ao seu tempo, que se preocupe, que aquilo que faz siga motivos edificantes – que se aprenda qualquer coisa, portanto, que seja possível subsumir-se o que faz numa qualquer economia, mediática ou não. Aliás, seria talvez interessante, um dia, tomar atenção ao género menor da entrevista, observar os seus protocolos, a forma como os escritores tendem a falar sempre da mesma forma, o uso da linguagem que nelas se vê, as intenções que nelas se espelham, a boa vontade que as percorre (o amor à coisa literária, a paixão pela escrita).
Da mesma forma, também a escrita tem os seus protocolos, o primeiro dos quais diz respeito à ligação que se estabelece entre ela e o leitor. Há outros, sem dúvida: um realismo generalizado que não tem nada que ver com a conhecida corrente literária, mas com uma “imitação” que o texto literário deve transportar: os diálogos, que se devem aproximar dos nossos, as personagens, que devem ser como nós, com motivos, intenções, desejos, interioridade, a própria narrativa que pode não ser temporalmente linear sem com isso afectar a capacidade que o leitor tem de identificar o tempo enquanto motor da história (uma coisa por causa da outra e não apenas uma coisa depois da outra, como reza um conhecido princípio de Aristóteles). Tudo isto, que se declina de diversas maneiras consoante o escritor, que é mais ou menos bem-sucedido de acordo com o trabalho oficinal e que nos últimos decénios se naturalizou de tal forma que já nem passa pela cabeça dos escritores que há outras formas de prática, é colocado em causa por Rui Nunes, e este último livro mostra, nem que seja porque condensa, como um cristal, todos os motivos desta escrita, esta dimensão de montagem que existe neste conjunto de textos que são um livro contínuo, infinito.
Quem conheça a oficina de escrita de Rui Nunes sabe que “No Íntimo de uma Gramática Morta” – não é caso único e não é a primeira vez que ele o faz – não corresponde propriamente a um livro, a um texto autónomo. Chamemos-lhe, de forma um tanto arbitrária, de marginalia, este termo latino que designa o conjunto de notas pessoais, comentários, que se situam ao lado de um texto principal. E se me parece que neste pequeno texto, que nem 50 páginas tem, encontramos condensado todos os motivos da escrita de Rui Nunes é também porque os textos que foi escrevendo ao longo destes 40 anos são uma espécie de marginalia, de notas que foi juntando, de restos que foi coligindo e armazenando, nas margens deste texto maior que é este tempo, o nosso e o dele. Sei bem que talvez não se deva usar formulações do género “o nosso tempo” ou “este tempo” – são frases vazias de sentido, usadas por um jogo de linguagem de feição jornalística que tenta encontrar um centro onde já há muito que não há centro nenhum, uma retórica que chama a si o poder de designar o seu tempo. Mas o “nosso tempo” de Rui Nunes não é o “nosso tempo” que quer desvendar um segredo qualquer – pelo contrário, é esse “deus a gesticular num palco o sem enigma do mundo”; é feito de minúcia e intimidade, palavras recorrentes nos textos de Rui Nunes, a intimidade da palavra silenciada à palavra silenciosa (a primeira é a pobreza de gestos que não chegam a terminar, a segunda é a retórica eloquente de qualquer “sangue e solo”) e a minúcia de todos os resíduos que “ramificam o cimento”. O início do texto é, aliás, exemplar:
“Não mortas as palavras, mas quase-mortas, estremecendo como as patas de um cão moribundo, um cão na sua plenitude, o cão qualquer: vê-me aquele pêlo a perder o brilho, aqueles olhos a velarem-se, aquelas moscas que ainda não pousaram, equilibradas no seu zumbido, não deixes o cão morrer, mantém-no próximo da morte, e verás a vida, e não uma vida, verás a vida não de um cão, mas num cão, a vida anónima de todos os cães, um cão quase a morrer já não é o teu, nem o meu, é o cão de ninguém”
Não é qualquer cão, como se houvesse aqui uma universalidade, mas um cão qualquer, coisa bem distinta e que diz respeito a essa vida anónima, anterior a toda a individuação e que só se torna visível na vizinhança da morte – não o aproximar da morte, que facilmente cai em heroísmo fátuo, mas a vizinhança: as patas, o “pêlo a perder o brilho”, os “olhos a velarem-se”, as moscas, todas estas declinações da minúcia, não tanto signos da morte, mas o seu desdobramento. É este “qualquer”, digamos assim, o cão qualquer, o homem qualquer, a casa qualquer, que vamos encontrando em todos os textos de Rui Nunes, em qualquer texto de Rui Nunes. As margens do tempo, a marginalia, apesar de Rui Nunes não gostar do termo “margens” – e nisso tem razão: há sempre demasiado conforto na retórica de quem se acha à margem – e preferir o termo “infiltração” (“infiltram-se nas nossas cidades e no nosso tempo, a infiltração é a sua vingança: um espaço poroso e incerto”).
É daí que vem essa ideia de um único texto contínuo, de uma montagem imensa, infinita – que por vezes é literal (“No falsete da voz, no indicador esticado, ouve-se/ a pátria não se discute”). Trata-se de dar conta da destruição, de juntar, não a margem das coisas, mas “o que há de primitivo na sombra das palavras”, partindo do pressuposto de um mundo desde sempre estilhaçado, aberto a uma contabilidade e a um registo: “o teu olhar não te absolve, nem sabe absolver, mostra: todos os massacres, todos os tormentos, todos os lutos”. Não é uma questão de destruição do sentido ou mesmo de reificação, de cristalização destes gestos que não terminam, destas vidas sem lugar; pelo contrário, a destruição é pressuposta e a questão que se coloca é exactamente o que fazer com todas estas sobras e como escrever, como dar conta, de todo este mundo destruído que se agita por baixo de todas as retóricas que o tentam salvar, dar-lhe uma forma, conferir-lhe um sentido (em tons mais ou menos humanistas).
“Há sítios que não passam de descrições: subúrbios intactos até à expulsão: o desabrigo das arcadas, das luzes de néon sobre as portas, dos canteiros raquíticos onde cagam os cães, sempre a rasar uma parede, ou encostados a uma porta. Passa-se de prédio em prédio como se não nos movêssemos. Nestes lugares que ramificam o cimento, as palavras não se encontram umas às outras, e perdem-se sem nunca deixarem de ser nítidas, um silêncio de palavras nítidas”
O que Rui Nunes faz é construir uma escrita que esteja à altura destes sítios de uma destruição sem fim, quase sem tempo (“uma dor tão antiga que não chegou a nascer”). Que significa isto? Que é a própria escrita enquanto gesto que tem de se tornar consciente de si mesma. Não se trata, evidentemente, de um qualquer resquício de meta-narrativa ou algo nas imediações desse experimentalismo tantas vezes inconsequente, mas de algo diferente, de uma recusa da naturalização e dos mecanismos que estabelecem uma continuidade entre texto escrito e mundo. O conjunto de sinais de pontuação deixados sozinhos, as frases que não terminam e cuja mancha gráfica tantas vezes parece poesia, todo esse atrito que tem de ser ignorado para que a leitura possa avançar, para que o pacto com o leitor possa ser restabelecido: é a forma que Rui Nunes encontra de desnaturalizar a linguagem e de, consequentemente, não subsumir a destruição a um qualquer sentido, de quebrar qualquer encontro possível entre texto e mundo, isto é, de contrariar o realismo generalizado.
A essa destruição sem fim, ao estilhaçamento do mundo que nada tem de nostálgico e que desde sempre aconteceu – já há muito que a catástrofe foi declarada permanente –, esta escrita responde através destes restos que vai juntando, destes lugares na proximidade da morte, destas vidas, quaisquer, que se infiltram, que conhecemos e vemos. É um outro realismo, talvez – que destrói os protocolos que tentam dar consistência ao real. É marginalia, texto qualquer que se infiltra nas retóricas eloquentes.